A história sefardita vai para além de sobrenomes e nacionalidades. Está criptografada em ruas, prédios, dinâmicas e costumes construídos desde o Brasil colonial e desvendados com dedicação por historiadores brasileiros. E apesar de ela começar em Portugal, no século XV, ela perpassa muitos outros países até chegar em terras brasileiras.
Isso porque os judeus sefarditas, ao fugirem da Inquisição Ibérica, espalharam-se pelo globo. Um dos países em que encontraram bom refúgio foi a Holanda, onde a fé era livre. E quando ela invadiu Pernambuco em 1630, marcando o início da dominação holandesa em alguns estados do Nordeste (Paraíba e Sergipe), muitos sefarditas vieram ao Brasil.
Afinal, entre os anos de 1630 a 1654 ― esse último ano com controle holandês apenas em Recife ―, essas terras nordestinas eram as únicas, em toda a América, com
Fundada em 1637, a sinagoga recebeu seu primeiro rabino em 1641, o luso-holandês Isaac Aboab da Fonseca (1605-1693). Após a Batalha dos Guararapes, as famílias judias fugiram para Nova York, onde formaram a primeira comunidade judaica da América do Norte, a Congregação Shearith Israel.
O prédio abriga, atualmente, o Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco
Exterior
Interior
Mas nem todas as famílias judias que residiam em Recife foram embora. A teoria do jornalista e historiador Nilton Melo Almeida é de que a impulsionadora da migração sefardita para o Ceará tenha sido a Guerra dos Mascates (1710 - 1711). “Foi muito brutal, afetou a necessidade das pessoas saírem”, comenta. “E o Ceará era interessante porque aqui era uma terra distante.”
Pelos mapeamentos do pesquisador no livro Cristãos-novos e seus descendentes no Ceará Grande: a Inquisição nos sertões de fora, os judeus sefarditas e seus descendentes ocuparam principalmente nove vilas do Ceará Grande. Sobral, então chamada de Vila Distinta e Real de Sobral, parece ter sido um reduto importante, destaca Nilton. O porquê, no entanto, ainda é desconhecido.
Infelizmente, assim como eles chegaram ao estado, a Inquisição também o fez. Como colônia portuguesa, o Santo Ofício tinha jurisdição no Brasil. De acordo com o historiador e doutorando Ademir Schetini Júnior, foram penitenciadas no País 1.076 pessoas “contra a fé e a moral”. Dessas, 604 cristãos-novos, dos quais 81% dos homens e 46% das mulheres foram condenados por praticar o judaísmo em segredo (criptojudaísmo).
Isso só foi possível porque a Inquisição mantinha agentes na colônia. Na verdade, o Santo Ofício era extremamente organizado, com muitas pessoas de funções diferentes fazendo as engrenagens dos processos funcionarem. Entre elas, os comissários “(representantes da Inquisição em distritos onde não houvesse ofício da instituição)” e os familiares “(espiões habilitados pela Inquisição)”.
"Você conhecia a história da Inquisição Ibérica e a dinâmica dela no Brasil? Vamos conversar nos comentários da reportagem!"
Os familiares são os que mais estiveram presentes no Ceará Grande. Pelo trabalho, eram isentos de impostos e do serviço militar, além de terem licença para o porte de armas. Mas apesar de qualquer pessoa poder denunciar ao Santo Ofício, os familiares precisavam se submeter a uma investigação genealógica que comprovasse a ausência de “indícios de sangue infectado” ― evidenciando como a Inquisição tinha um intrínseco preconceito racial.
Ou seja, mesmo que o Ceará fosse um local remoto, longe da sede da Inquisição Ibérica, os cristãos-novos e seus descendentes nunca estiveram verdadeiramente seguros. Por isso o criptojudaísmo continuou e, mais importante ainda, foi cada vez mais dissimulado.
As práticas eram ressignificadas e, aos poucos, a essência delas foi perdida. Esse fenômeno é muito perceptível no interior do Nordeste, como na Bahia e no Ceará, explica o historiador Ademir.
Em 2005, o documentário A estrela oculta do sertão, de Luize Valente e Elaine Eiger, vencedor do Prêmio de Melhor Documentário no Festival de Cinema Judaico de São Paulo 2005, retrata a prática judaica mantida em algumas famílias do “seridó nordestino, juntamente com a busca de sua identidade religiosa por vários marranos a partir do momento que tomam consciência de sua condição”. Confira:
Por falar em pureza de sangue, os judeus sefarditas sofriam várias sanções para além de um processo inquisitório. Tinham limitadas as possibilidades de exercício de professorado, não podiam ingressar nas universidades, eram impedidos de acessar muitos setores. “É uma nova configuração social”, reforça o historiador Ademir.
Com isso em mente, faz mais sentido ainda pensar no criptojudaísmo. Hoje em dia, a prática está diluída em costumes e ditos populares. Alguns exemplos:
Mas isso não significa que esses hábitos sejam práticas judaicas ou que as pessoas que as reproduzem sejam judias. São apenas reminiscências de uma cultura que precisou se esconder para sobreviver, mas que foi resistente o suficiente para persistir, mesmo inconscientemente, por séculos. “A influência (na cultura brasileira) é muito subjetiva. Houve sincretismo, não dá para atribuir a só uma religião, por exemplo”, conclui Ademir.
Além disso, o judaísmo está muito vivo no Brasil. De acordo a Confederação Israelita do Brasil (Conib), o País tem 120 mil judeus (declarados), correspondendo a 0,06% da população. Isso torna a comunidade judaica brasileira a segunda mais importante da América Latina, perdendo apenas para a Argentina.
As principais concentrações estão nas regiões sul e sudeste, especialmente em São Paulo (44 mil pessoas), no Rio de Janeiro (22 mil) e em Porto Alegre (7 mil). No Norte, destacam-se Manaus, com 1.200 membros, e Belém, com 1.300. No Nordeste, Recife tem 1.300 membros. Já a Sociedade Israelita Cearense (SIC) estima que existam, em Fortaleza, 180 judeus, enquanto 25 famílias (100 pessoas) estão associadas à SIC.
São essas famílias que podem discutir a identidade judaica. A economista e mestra em Estudos Judaicos Adriana Abuhab Bialski (judia filha de mãe e pai judeus) destaca: “Os judeus são plurais.” Simples e complexo assim. Coordenadora do Memorial do Holocausto, museu localizado em São Paulo, ela explica como se conhece pouco sobre os judeus, destacando apenas um imaginário de pessoas ricas e perseguição pelo nazismo.
Por isso, parte do trabalho de recepção dos visitantes do museu é desmistificar o judaísmo e apresentar a diversidade entre eles. “Os judeus têm costumes diferentes dependendo de onde eles vêm. E é mais complicado do que isso, porque o judaísmo não tem uma nacionalidade”, explica.
Mais: o judaísmo pode transcender a religiosidade. Pelo menos essa é a opinião de Adriana (“Para mim, é totalmente cultura!”), assim como é uma das definições que a própria Conib oferece: “Existem aqueles que encaram o judaísmo apenas como a religião do povo judeu. Há outros que consideram o judaísmo um modo de vida, refletido por costumes e expressões culturais próprias (judaísmo cultural). Há ainda outra definição, surgida após a fundação do Estado de Israel, que coloca o judaísmo como a nacionalidade do povo judeu.”
Considerando o aspecto cultural, entram no judaísmo a manifestação da dança, da culinária, da literatura, da história e até da língua hebraica. “Acho que você parte de uma religião, mas é muito mais do que isso”, diz.
Um dos valores judaicos, por exemplo, perpassa as entidades de ajuda mútua. “Não existe um judeu fora da escola”, exemplifica Adriana, mencionando o costume naturalizado de doar para uma entidade de crédito para que todas as crianças judias tenham garantido o acesso à educação. “Os judeus são conhecidos como o povo do livro. E agora existe uma preocupação também com um fundo que apoie a permanência na universidade.”
Leia os três cadernos especiais do O POVO, produzidos em 2010: Inquisição - No rastro dos amaldiçoados
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Série de reportagens do O POVO+ aborda o retorno simbólico de descendentes sefarditas à Portugal e explora a história sefardita no Ceará