“Eu vou à luta. Se não der, não deu, todos morremos”. A declaração é de Maria Concebida de Oliveira, de então 25 anos, pouco tempo após o diagnóstico de HIV positivo, em 1987. Uma época em que, diferente de hoje, o vírus era visto como uma sentença de morte. Concebida não pensava dessa forma. Era otimista: “A aids não é um bicho de sete cabeças, a gente não morre do dia para a noite”.
Ela foi a primeira mulher cearense diagnosticada com aids no Ceará. “O grande sonho dela era tomar uma medicação que havia sido lançada no mundo, o AZT, mas ainda não tínhamos”, lembra Anastácio Queiroz, professor de medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e ex-diretor do Hospital São José (HSJ).
O HIV chegou ao Ceará há cerca de 40 anos. As datas são confusas: de acordo com a Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa), a primeira notificação de HIV aconteceu em 1983. Foi um homem que teria sido atendido no HSJ. As primeiras notícias de casos suspeitos, no entanto, só datam de 1984.
Concebida nasceu em Milagres, a 482,5 km de Fortaleza, e se mudou para São Paulo aos 19 anos. Ela queria uma vida melhor. Estava em busca de trabalho. Mas, na capital paulista, contraiu o vírus.
Os primeiros sintomas apareceram ainda em 1986, enquanto visitava a família, em Milagres. À época, ela chegou a procurar um médico, que apenas lhe receitou um remédio para diarreia. Os sintomas persistiram e, assim que voltou para São Paulo, procurou o Hospital Emílio Ribas.
Fez alguns exames e o médico deu o diagnóstico: suspeita de aids.
Em São Paulo, ela começou o tratamento. Ficou internada por mais de um mês, até que um médico recomendou que voltasse para o Ceará. Foi o que fez. “A gente acompanhou a chegada dela na rodoviária. Ela foi para a casa da família e, depois, foi para o Interior”, recorda a jornalista aposentada Márcia Gurgel.
“A gente acompanhou todo o quadro dela”. “Ela melhorou, ela piorou, ela morreu”.
Nas décadas de 1960 e 1970, o Ceará, o Brasil e o Mundo viviam um período de liberação sexual. Até que o HIV apareceu. “Obviamente tiveram os radicais dizendo que era um castigo de Deus. Tinha de tudo”, lembra Tadeu Sobreira, médico imunologista e professor aposentado da UFC.
“Aos poucos foram se colocando os pingos nos Is: não era um castigo divino”. “Era uma exposição, por falta de conhecimento, a um agente viral”, sentencia.
No começo, a síndrome ficou conhecida como ‘a doença dos 4Hs’: viciados em heroína, haitianos, homossexuais e hemofílicos. Tirando o último H, todos faziam parte de grupos até então marginalizados. A sigla "Aids" foi usada pela primeira vez em junho de 1982. Significa Síndrome da Imunodeficiência Adquirida — ou Acquired Immunodeficiency Syndrome, no original. Já o termo HIV — Vírus da Imunodeficiência Humana — só veio a existir em 1986.
“Até então, era uma doença nova, ninguém sabia do que se tratava”, destaca Anastácio Queiroz. “A primeira coisa que chamava atenção era o medo de todos. Um preconceito absolutamente incalculável. Todos temiam, apesar de a aids ser uma doença que se transmitia pela intimidade”.
Quando os primeiros casos apareceram, muitos hospitais não queriam tratar os pacientes. “Criava-se um pânico muito grande no hospital. Os outros doentes faziam pressão para que o paciente fosse transferido. Ninguém queria ficar em um ambiente com uma pessoa com aids”. “Isso era bem claro”, lembra Anastácio.
“Eles eram rejeitados por todos, inclusive por membros da família”, continua. “A doença carregava muito medo consigo. Então, era muito triste. Lembro de dois pacientes que nunca aceitaram o diagnóstico e evoluíram de maneira muito negativa, porque nunca quiseram fazer o tratamento”.
Em 1984, Tadeu Sobreira trabalhava no departamento de patologia da Faculdade Medicina da UFC, localizado ao lado do Hospital das Clínicas (HC). A equipe do hospital recebeu um paciente e suspeitavam que ele pudesse ter o vírus. Então, convidaram o médico para fazer uma análise imunológica.
“Ele virou como se fosse uma curiosidade para muita gente”, lembra o imunologista. “A sensação que eu tive, na época, é que ele ficou extremamente incomodado de ser aquela figura, digamos assim, exótica. Que todo mundo queria conhecer. Deve ter sido muito traumático para ele, na minha visão”.
O paciente passou um tempo no hospital, mas preferiu voltar para o local onde vivia. “A imagem que ficou para mim é que ele preferiu morrer em casa — porque sabia que iria morrer — do que ficar em um hospital [sendo] motivo de curiosidade”.
Na época, Márcia Gurgel, então jornalista do O POVO, foi até a casa dele, no Conjunto Ceará, para que pudessem conversar. Ela foi a primeira repórter do Ceará a entrevistar uma pessoa com HIV. “Ele falou da vida dele, que tinha viajado para São Paulo, onde teve muitos companheiros”, recorda. “Pouco tempo depois que eu o entrevistei, ele morreu”.
Nos jornais cearenses, a história começou a rodar antes mesmo de o HIV chegar ao Brasil. Márcia ficou sabendo do vírus por meio do irmão, que é pneumologista e especialista em doenças infectocontagiosas. “Ele se interessava muito por esse tipo de coisa. Chegou para mim: ‘Marcia, tá sabendo que tá surgindo uma doença nova nos Estados Unidos?”.
Ele fez uma pesquisa bibliográfica e, com base nisso, Márcia escreveu a primeira matéria sobre o HIV publicada pelo O POVO, no dia 12 de dezembro de 1982. O texto, intitulado “Americanos descobrem nova doença que ataca crianças”, abordava um vírus misterioso que teria causado a morte de 300 pessoas homossexuais em Atlanta, nos Estados Unidos.
A aids chegou a ser chamada — pela mídia e profissionais da saúde — de Deficiência Imunológica Relacionada a Gays (GRID). O vírus costumava ser associado pela imprensa, nacional e internacional, ao público LGBTQIA+. No Brasil, chegou a ser chamada de “Peste Gay”, por alguns periódicos.
Érica Cavalcante é historiadora e autora do livro A aids vira notícia: os discursos sobre a 'doença nova' nos periódicos cearenses da década de 1980. Ela analisou 20 matérias do O POVO e do Diário do Nordeste relacionadas à epidemia. “Ao menos no que concerne à análise das notícias as quais tive acesso para a elaboração do trabalho, os periódicos cearenses não contribuíram para a difusão dessa concepção errônea, preconceituosa e moralizante em torno da Aids”, diz a pesquisadora.
“Pelo contrário, mesmo quando parte dos elementos evidenciados nas notícias referiam-se aos homossexuais, a abordagem utilizada primava pela abertura de espaço para que ativistas e demais representantes da comunidade LGBTQIA+ (que na época não contava com essa designação) [contestassem] nomenclaturas pejorativas como ‘Peste Gay’, ‘Câncer Gay’ e ‘Praga Gay’”, continua.
Por mais que o estigma não estivesse tão evidente nas páginas do jornal, a situação era diferente no entrelinhas. “Teve um lance muito interessante”, lembra Márcia. “Um rapaz chegou no jornal e eu já (o conhecia). Tinha lido uma entrevista com ele na Revista Veja: era funcionário de uma empresa de aviação, que tinha sido diagnosticado com aids e foi demitido. Ele entrou na Justiça e foi readmitido”.
Depois da situação, o homem começou a viajar por todo o país para falar sobre a discriminação contra pessoas com HIV. Uma das paradas foi a av. Aguanambi 282 (sede do O POVO). Márcia o recebeu e, para o entrevistar, deixou que ele se sentasse na cadeira de um colega, de um editor.
“Quando o colega, dono da cadeira, chegou… enlouqueceu”. “Jogou a cadeira longe. Disse que nunca mais sentava ali, porque eu tinha deixado um ‘aidético’ sentar na cadeira. (Em resposta) eu disse: ‘eu quero (a cadeira)’ e acho que fiquei com a cadeira até eu sair do jornal”.
Apesar da situação, Márcia acredita que o preconceito era mais uma coisa pontual. À época, ninguém sabia muito sobre a doença. Todos tinham medo. “Depois, colegas nossos morreram de aids. No O POVO, no Diário do Nordeste. O vírus foi chegando a todas as profissões e chegou na imprensa. Então, o preconceito foi diminuindo. A gente trabalhava ao lado de colegas que, de repente, estavam com aids”.
“Pra mim foi um baque”, lembra Cleide Carvalho (nome fictício), 49, sobre o diagnóstico de HIV. “Foi muito sofrido e doloroso”. Ela descobriu o vírus aos 19 anos, na década de 1990. Ela vivia com um homem, com quem tinha um filho. “A gente brigou, não lembro mais a razão, mas decidi dar um castigo nele. Deixei ele com a criança e me mandei (para uma festa)”. “Eu era muito nova, muito inexperiente das coisas”.
Ela foi para um show na Praça José de Alencar, no Centro de Fortaleza, onde conheceu um outro rapaz. Os dois passaram a noite juntos. “Quando foi de manhã ele falou: ‘tenho uma coisa pra te dizer’. Eu disse: ‘pois fale, não tem problema não’. Ele, (então), disse assim: ‘e se eu te disser que eu tô com aids?’. Aí o negócio desmoronou pro meu lado”.
O rapaz percebeu que Cleide ficou abalada e desconversou a história. Disse que tudo não passava de uma brincadeira. Ela, que não conhecia muito sobre o vírus, acreditou e se acalmou. Vale ressaltar que ela foi vítima de um crime. O que o homem fez pode, em tese, se enquadrar como perigo de contágio de moléstia grave — com pena de 1 a 4 anos e multa — ou como lesão corporal gravíssima — com pena de 2 a 8 anos. “Pela aparência dele, eu jamais acharia que ele tivesse (o HIV). Ele se apresentava muito bem”.
Depois da situação, ela começou a apresentar alguns sinais, mas não achava que pudessem ser o vírus. Tinha acreditado na palavra do homem. “Comecei a fazer exame em cima de exame. O médico suspeitava que eu estava com tuberculose”.
Ela fez o teste para a doença, mas deu negativo.
“Voltei para (o hospital) de novo e o médico disse: ‘Só tem um jeito: vou pedir o teste do HIV’. Aquilo pra mim foi um baque, mas eu acreditava que não tinha (nada). Não queria nem fazer (o teste)”.
Ela fez e, dessa vez, deu positivo.
A reação foi de negação. Mesmo com o resultado em mãos, ela decidiu não iniciar o tratamento. “Eu pensava assim: ‘Não vou me tratar, porque não estou com isso não’. Tu acha uma coisa dessa. Como que a pessoa tem um exame na mão e tá se negando desse jeito? Eu não aceitava de jeito nenhum”.
Depois do diagnóstico, ela chegou a ir atrás da família, mas foi desprezada. O preconceito nos anos 90 era menor que na década de 80, mas ainda era grande, comparado com hoje. “Me isolaram e eu percebi que essa rejeição estava me fazendo mal. Então, decidi que não iria mais procurar por eles. Iria morar só”.
Em casa — e sem começar o tratamento — os sintomas foram se agravando. “Quando vi que o negócio tava piorando mesmo, tomei a decisão de me tratar. Eu pensei assim: ‘vou me tratar porque senão vou morrer. E morrer rápido’. Aí eu comecei a levar a sério”.
Cleide e Concebida são retratos de uma outra época. De quando a aids representava uma condenação. Hoje as coisas são diferentes. É possível viver como qualquer outra pessoa, desde que siga o tratamento da forma adequada. Militantes, inclusive, pedem para que pessoas com aids não sejam chamadas de “doentes” ou de “soropositivos”, mas como “pessoas que convivem com HIV”.
No fim, Concebida estava certa:
“A aids não é um bicho de sete cabeças”.
Este é o primeiro de três episódios sobre o HIV/aids no Ceará. Na próxima semana, o tema será a mudança de perfil de pessoas soropositivas durante as últimas décadas.
Série de reportagens com três episódios narra a chegada do vírus HIV no Ceará, a luta para controlar a doença e histórias de pessoas que contribuíram para acabar com o estigma e os preconceitos em torno da doença