Em quatro décadas de história, a vida de pessoas que convivem com HIV passou por transformações significativas. Hoje, os remédios são mais fáceis de acessar, apresentam melhores resultados e não têm tantos efeitos colaterais.
O estigma persiste, mas em menor proporção do que no passado, quando o vírus era visto como sentença de morte e fazia com que pessoas infectadas fossem ostracizadas. No geral, hoje em dia, é possível ter uma vida cotidiana relativamente normal, mesmo após o diagnóstico positivo.
O POVO reuniu três histórias de diagnóstico, cada um confirmado numa das quatro décadas desde que o HIV/aids teve a primeira confirmação no Ceará. Em comum, uma palavra conjugada em verbos no presente: indetectável.
A pessoa se torna indetectável quando ela possui uma quantidade baixa o suficiente de vírus no corpo a ponto de impedir a transmissão por meio de relações sexuais. Dizer que a carga viral está indetectável é o mesmo que dizer que o vírus está intransmissível.
“Isso traz um componente psíquico, emocional muito importante para a pessoa que convive com HIV. Tira a culpa sobre ela no que se refere a sua sexualidade”, destaca Érico Arruda, médico infectologista do Hospital São José (HSJ). “É um grande benefício saber que não é um transmissor do vírus HIV”.
“Tem, [além disso], uma importância muito grande do ponto de vista do controle da doença, porque o vírus não replicando, não agride o sistema imune e a pessoa, portanto, não adoece. Essa é a meta principal do tratamento: impedir a reprodução viral que, em consequência, levaria a um dano imunológico”, adiciona.
O infectologista ainda ressalta que a indetecção é uma meta epidemiológica a nível coletivo. Não é importante apenas do ponto de vista individual.
“É uma das estratégias consideradas fundamentais pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a redução do número de novos casos. Poderemos conter a epidemia se tivermos a maioria das pessoas, 95% delas, com a carga viral não detectável”.
“Na época [do diagnóstico] foi horrível. Cheguei a tomar 28 comprimidos por dia. E, os efeitos colaterais, eram um pior do que o outro”, lembra Ana Paula, 59, sobre o início do tratamento de HIV. “Depois, foi evoluindo e evoluindo. Hoje, só tomo dois comprimidos por dia [...] só me lembro [do vírus], porque tenho um alarme no celular com o horário do meu remédio”.
Ela recebeu o diagnóstico em 1990, há 33 anos atrás, quando as coisas eram muito diferentes de hoje. “Eu descobri por acaso, mas tinha uma leve desconfiança. Meu finado marido era usuário de drogas”.
Antes do diagnóstico, ela já conhecia o vírus. Uma cunhada tinha falecido em decorrência dele. “Eu acompanhei todo o quadro dela. Então, no primeiro momento, foi um desespero. E, quando o médico pediu o exame do meu bebê, aí eu fiquei louca”.
Na época, ela morava em Maceió, na capital de Alagoas. “Entrei em desespero. Fiquei em depressão por dez dias, mas eu tinha dois filhos pequenos: um bebê e uma menina de dois anos. Então, me levantei e reagi. Fui à luta”.
No começo, ela sofreu bastante preconceito, mas não teve medo de se esconder. “Mostrei minha cara na televisão, no jornal e tudo. Depois que comecei a trabalhar, me reservei mais. Era como chefe de cozinha e as pessoas tinham medo”.
Com o tempo, ela acabou se mudando para Salvador, cidade natal de seu marido. “Passei mais de 10 anos indetectável, sem sentir nada. Só quando meu esposo morreu que eu tive uma baixa resistência, apareceu algumas coisas em mim. Mas, isso foi por causa do momento”.
Enquanto morava na cidade, no entanto, ela acabou abandonando o tratamento por cerca de cinco anos para procurar pelo filho, que era usuário de drogas. “Eu comecei a andar atrás dele na favela de madrugada, comecei a beber e a usar drogas para ver se conseguia tirar [ele] de lá”.
“Resumindo, em 2010 resolvi vir embora [para Fortaleza]. [Uma vez] o médico de Salvador me encontrou na emergência e falou: ‘Eu não vou mais atender a senhora. Você não quer mais fazer o tratamento, então não vou mais te atender. Essa é a última vez’. Aí foi, vim embora para cá e estou indetectável novamente”.
Hoje ela vive bem. Está longe das drogas e participa da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e aids (RNP+). A instituição, que existe há 28 anos, busca contribuir com fortalecimento de políticas públicas relacionadas ao combate à epidemia de HIV/aids no país.
Sabrina Luz, 41, passou e superou muitos estigmas. Ela descobriu o HIV em 2010. Por medo, evitava fazer testagens. Foi por isso que descobriu o vírus em um estágio mais avançado. “Eu estava doente há uns seis meses. Ia para o médico e não conseguia descobrir o que era”, lembra.
Na época, ela trabalhava em uma casa de família e, por conta de uma doença oportunista, ficou debilitada. “Eu não conseguia trabalhar direito. Sentia muitas dores”, recorda Sabrina. “Então, eu decidi fazer o teste. Naquela época era bem mais difícil, não existiam tantos [pontos] como hoje”.
Ela fez o exame e recebeu o diagnóstico: positivo.
“Quando eu saí do hospital e coloquei o pé na rua, eu tinha a sensação de que todo mundo que me olhava e me criticava", lembra. “[Mas], fui para casa e fiquei muito tranquila. Não chorei de jeito nenhum. Eu só tinha um amigo que era próximo a mim. Contei para ele e ele ficou admirado em como eu tinha ficado tranquila”.
Ela também contou aos patrões. De início, eles foram atenciosos, disseram para ela seguir o tratamento e que tudo ficaria bem. “Passou mais menos uns 15 dias e eles disseram que não precisavam mais de mim, porque não estavam com condições de me pagar, [falaram] que não era por causa do HIV”.
Depois da situação, ela ficou à toa, sem renda. “Eu, uma mulher trans, vivendo com HIV, desempregada, tendo que pagar aluguel, não tendo muito contato com a família, sem muitos amigos, apenas um. A partir daquele momento minha ficha começou a cair”.
“O que eu vou fazer, como vou me manter?”
Praticamente sozinha e sem dinheiro, ela foi encaminhada, por uma psicóloga, para o Centro de Convivência Madre Regina. Ela passava o dia no local e de noite voltava para casa. “Eles me ajudaram muito. Cheguei no local muito debilitada, com dificuldade de andar, não conseguia me alimentar direito”.
Depois de um tempo, Sabrina teve de se mudar da casa onde vivia. Chegou a morar com uma irmã, mas não deu muito certo. Sem ter para onde ir, ela foi parar na Casa Sol Nascente, onde viveu por cerca de 7 anos. Foi lá que ela reencontrou um sentido.
Ela continuou o tratamento e, aos poucos, foi melhorando. “Eu tinha vontade de sair para trabalhar. Fiquei sabendo que eles [da Sol Nascente] tinham um telemarketing, então pedi uma oportunidade de trabalho. Eles perguntaram se eu tinha experiência. Falei que não, mas [que achava] que seria uma coisa boa para mim”.
Sabrina conseguiu a vaga e aos poucos foi recuperando sua autonomia até ficar bem o suficiente para sair da Sol Nascente. Hoje ela está indetectável, é casada e tem seu próprio projeto social, o "Ser Luz". A iniciativa faz a arrecadação de roupas, calçados e a distribuição de quentinhas para pessoas em situação de rua em Fortaleza.
“[Pessoas em situação de rua] são muito julgadas pela sociedade. Acham que elas estão na rua porque querem, porque gostam. Mas, se a gente for parar para ver e ouvir a história de cada pessoa, te faz pensar 'nossa, eu realmente estava enganada sobre isso'”.
Sabrina, além disso, atua como influenciadora digital, soma mais de 19 mil seguidores. “Cada [pessoa] tem uma história e a gente não deve julgar sem conhecer”.
Márcio Roberto, 31, é professor e descobriu que convivia com o vírus em outubro de 2021. Foi por acaso. Ele estava com uma alergia e, enquanto tentava descobrir o que era, recebeu o diagnóstico do HIV.
“Costumo dizer que eu não romantizo [a descoberta do diagnóstico]. Tive [apenas] duas noites de luto, mas tive privilégios. Eu fazia terapia. No dia seguinte, tive uma sessão de duas horas, tive uma rede de apoio muito boa nesse quesito”.
“Sou um homem gay e a gente sabe dos preconceitos e discriminações que essa população já passa. Então, quando fui diagnosticado, dois dias depois eu disse: 'Cara, não tem o que fazer. Agora é tratar e enfrentar mais essas discriminações’”, continua.
No começo, Márcio contou sobre o vírus apenas para amigos e familiares. Ele só resolveu falar sobre o diagnóstico publicamente depois de um ano. “Eu fiz uma live e deixei alguns vídeos gravados no Instagram, falando sobre [a questão] e outras coisas que são até piores que o HIV, como a depressão”.
“As pessoas têm preconceito e acham que é grave você ter o HIV, mas eu já tinha uma doença muito mais grave e [elas] não se preocupavam: a depressão. Então, eu quis enfrentar esse estigma de pensar que o HIV é mortal e a depressão é frescura”.
Márcio começou a conviver com o vírus há pouco mais de dois anos. Teve o privilégio disso acontecer em uma época em que o tratamento é mais avançado, em uma época em que é possível ter uma vida tranquila. Ele, apesar dos privilégios, se comprometeu com a luta contra a estigmatização do vírus.
Em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o professor desenvolveu o podcast “Sextou com S de Sexo Seguro”, que tem como objetivo desmitificar temas relacionados ao HIV/aids. “Eu pude ressignificar esse episódio da minha vida. O que era para se tornar uma desgraça ou um estrago, virou uma luta, uma profissão, um trabalho”.
Depois da produção do podcast, Márcio continuou como bolsista da Fiocruz. Hoje, ele realiza oficinas sobre o estigma contra pessoas que convivem com HIV. Ele, até mesmo por ser professor, acredita na educação como uma forma de combater a discriminação.
“Eu não sou uma pessoa soropositiva. Sou uma pessoa vivendo com HIV. Eu não tenho uma doença. Eu vivo com o vírus”.
Série de reportagens com três episódios narra a chegada do vírus HIV no Ceará, a luta para controlar a doença e histórias de pessoas que contribuíram para acabar com o estigma e os preconceitos em torno da doença