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Antes os ricos, agora os pobres: a mudança do perfil de pessoas que convivem com o HIV
Reportagem Seriada

Antes os ricos, agora os pobres: a mudança do perfil de pessoas que convivem com o HIV

Por que, mesmo com o avanço das medidas de prevenção, o número de casos entre determinados grupos continua crescendo?
Episódio 2

Antes os ricos, agora os pobres: a mudança do perfil de pessoas que convivem com o HIV

Por que, mesmo com o avanço das medidas de prevenção, o número de casos entre determinados grupos continua crescendo?
Episódio 2
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O HIV chegou ao Brasil como uma doença da elite. Os primeiros diagnosticados eram pessoas que costumavam viajar para o exterior. Em sua grande maioria, brancos. Hoje a situação mudou. Pessoas de baixa renda, negros e sem educação formal são as principais vítimas do HIV no Ceará e no Brasil, segundo dados da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa) e do Ministério da Saúde (MS).

Até 2013, pessoas brancas representavam a maior parte dos casos. Depois disso, no entanto, houve um aumento de ocorrências entre pretos e, principalmente, entre pardos. Eles representam mais da metade das estatísticas desde 2015.

Atualmente, pessoas negras e com baixa renda estão entre os que mais morrem devido a complicações causadas pela aids(Foto: AdobeStock)
Foto: AdobeStock Atualmente, pessoas negras e com baixa renda estão entre os que mais morrem devido a complicações causadas pela aids

Entre 2012 e 2022, houve um aumento de 10,6 pontos percentuais na proporção de diagnósticos entre a população negra — pretos e pardos — no país. No Ceará, o crescimento na proporção foi de 4,5 pontos.

O número de óbitos a nível nacional também teve um aumento: foi de 6.256, em 2012, para 6.782, em 2022. A população representa cerca de 61,7% da quantidade total de mortes.

A situação foi diferente entre pessoas brancas. Entre 2012 e 2022, houve uma queda de 9,7 pontos percentuais no número de casos. Os registros de óbito, além disso, caíram de 5079, em 2012, para 3911, em 2022. Diante da situação, fica a seguinte questão: porque, mesmo com o avanço das medidas de prevenção, determinados grupos continuam sendo afetados?

“A população mais vulnerabilizada, com destaque para os pretos, baixa renda e analfabetos, [...] tem menor acesso aos serviços de saúde, que, no Brasil, se propõem a serem universais para todos, sem qualquer tipo de descriminação, o que a gente não vê na prática”, cita Iracema Lua, pesquisadora da Fiocruz e professora do Departamento de Saúde da Universidade Estadual de Feira de Santana (DSAU/Uefs), na Bahia.

Ela foi uma das responsáveis pela pesquisa “The effects of social determinants of health on acquired immune deficiency syndrome in a low-income population of Brazil: a retrospective cohort study of 28.3 million individuals”, publicada pela Lancet em agosto deste ano.

O estudo mostrou que pessoas de baixa renda possuem um risco 99% maior de morrerem de aids no Brasil. Segundo os resultados, 20 a cada 100 mil brasileiros de menor renda evoluem do HIV para a síndrome em si; já 7 a cada 100 mil morrem por conta dela.

 


 

Por que o sistema público de saúde não chega a todos?

Iracema Lua ressalta que o Sistema Único de Saúde (SUS), de fato, funciona e é importante que ele exista. O problema, é que os atendimentos não estão chegando a todo mundo, como evidenciado pelos dados. “O SUS tem como [um de seus] princípios básicos a universalidade, que propõe garantir direitos à saúde para todos. Seja ele preto, branco, amarelo, analfabeto, com nível superior, etc”, explica.

“Esses serviços, tratamentos e acompanhamentos não têm chegado para todos e têm chegado menos [ainda] para aqueles que têm uma vulnerabilidade social maior”, adiciona Iracema.

Uma das razões para essa dificuldade no acesso, de acordo com ela, é a comunicação. Muitas vezes as informações não são passadas de uma forma eficaz. “A gente também levanta outras hipóteses, como a [existência] de um tratamento diferenciado para aqueles que têm uma condição melhor, diante daqueles que são mais vulnerabilizados”.

Outro ponto determinante é o próprio racismo estrutural. “No Brasil, a gente tem a nomenclatura ‘negra’, [para] considerar pretos e pardos. Mas, quando a gente fala de uma população ‘preta’, que é quem mais sofre com o racismo estrutural presente no Brasil e em vários países da América Latina, a gente tem [no geral] um cenário de discriminação e menor acesso ao mercado de trabalho formal e adequado”, explica a pesquisadora.

“Por trás de ser preto [existe] toda uma questão de vulnerabilização e pior acesso a serviços de saúde, o que faz com que essa população tenha um diagnóstico muito mais tardio”, continua Iracema. “Tem estudos que trazem que os pretos sofrem discriminação na entrada, além de um atendimento diferenciado”.

“São diversas vulnerabilidades que se entrecruzam e produzem os piores desfechos em saúde”.

 


 

A importância de medidas assistenciais

 

“A gente precisa de medidas de assistência social”, destaca a professora. “O Bolsa Família tem se configurado como uma política muito importante nesse sentido, de diminuição das iniquidades sociais. Um indivíduo que recebe o [benefício] por cinco ou mais anos tem menos risco de desenvolver e morrer de aids, mesmo que esteja em uma situação mais vulnerabilizada.”

O Bolsa Família, além de ser um programa de transferência de renda, exige certas condicionalidades para que o indivíduo receba o benefício. Uma delas é o acompanhamento de saúde, o que torna uma parcela da população mais próxima desses serviços.

“[O programa] Também tem como condicionalidade o acompanhamento escolar de crianças e adolescentes, permitindo que eles tenham um progresso nessa questão da escolaridade e, consequentemente, acabam mais protegidas do desfecho relacionado ao HIV/aids”, explica Iracema.

 


 

Testagem, medicamentos e profilaxia

 

Os medicamentos contra o HIV foram incorporados ao sistema público de saúde em 1996, durante o governo José Sarney. “Isso foi um grande marco para o Brasil. O Brasil é um dos únicos países que oferece tratamento antirretroviral 100% gratuito. Não existe antirretroviral à venda. Independentemente da classe social, todas as pessoas que têm HIV se tratam pelo SUS. Isso é uma conquista”, destaca Claudevan Freire, farmacêutico do Hospital São José (HSJ) de Doenças Infecciosas.

Além disso, desde 2018 medicamentos preventivos contra o HIV também são oferecidos de forma gratuita pelo SUS, são eles: a profilaxia de Pré-Exposição ao HIV (PrEP) e a profilaxia de Pós-Exposição (PEP). O primeiro é um comprimido antirretroviral tomado diariamente e que impede a infecção pelo vírus, mesmo em cenários de risco. O segundo é um coquetel usado após uma eventual/possível exposição ao HIV.

Outro ponto importante são as testagens. “Uma das metas da Organização Mundial da Saúde (OMS) é testar regularmente as pessoas. [Existe] A meta de que 95% das pessoas que vivem com HIV saibam da sua condição virológica. Uma vez que a pessoa tem uma exposição, você tem que saber sua testagem. Se você tem, ou não, o vírus”, cita o farmacêutico.

Durante a pandemia, no entanto, a quantidade de testagens caiu e, consequentemente, também houve uma queda no número de casos registrados. Os dados de 2020, para o profissional, não refletem o cenário real. Eles ilustram a subnotificação.

“Em alguns casos, você vê que algumas doenças tiveram uma redução [de registros], mas isso acontece por conta da subnotificação. A gente não testava. A gente viveu para a Covid e teve que deixar [outras] doenças de lado, porque a Covid, no momento, era mais importante, tinha mais impacto.”


 

O acolhimento depois do diagnóstico

 

Um dos locais que acolhem pessoas portadoras do vírus HIV em situação de vulnerabilidade em Fortaleza é a Casa de Apoio Sol Nascente, localizada no bairro Castelão. A instituição conta com duas unidades. Uma, com 20 pessoas, atende adultos; a outra, também com 20, atende crianças.

“Eles chegam [na instituição] muito fragilizados e debilitados. Alguns foram moradores de ruas. Muitas vezes [a Sol Nascente] é a primeira experiência que eles têm de acolhimento, de uma casa”, explica Lyara Holanda, gerente da Instituição.

Conforme a gerente, os pacientes chegam debilitados à instituição por conta de questões sociais. Muitos não conseguiram ajuda para começar a tratar o vírus no começo. “Social em que sentido? Muitos eram moradores de rua, tiveram um diagnóstico tardio, e aí [já tinham complicações]”.

De acordo com Arilo Deodato, presidente e fundador da Sol Nascente de Fortaleza, muitos pacientes acabam em situação de rua por conta do abandono. É comum ouvir histórias de pessoas que não receberam apoio dos familiares, principalmente no caso de pessoas mais velhas, que receberam o diagnóstico nos anos 1980 ou 1990.

“Lembro de uma história. Uma família levou um paciente lá [no Hospital São José] e descobriu que era aids. Eles moravam na periferia, se mudaram de endereço e não avisaram para o hospital, porque não queriam mais aquele paciente em casa”. “Quando ele recebeu alta, a ambulância chegou na casa e viu que não tinha ninguém”.

A Casa Sol Nascente e outros centros de apoio existem, justamente, com o propósito de evitar situações como essa. Para que as pessoas que não têm para onde ir encontrem um local para viver e seguir o tratamento.


 

“É uma casa que cuida muito bem da gente”

 

Um dos acolhidos é Renato Almeida (nome fictício), 40. “Tem cinco anos que estou na Casa Sol Nascente e logo no primeiro ano eu já estava com a carga viral indetectável Quantidade de vírus inferior a 40 cópias por ml de sangue. A grosso modo, significa que o HIV está sob controle. Ele não correm risco de transmitir o vírus para parceiros sexuais, além de terem baixo risco de evolução da infecção . Aqui é uma casa que cuida muito bem da gente. Todos os remédios são na hora, alimentação é na hora”.

 

Especial sobre os 40 anos do começo da epidemia do HIV no Ceará. Casa Sol Nascente.(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Especial sobre os 40 anos do começo da epidemia do HIV no Ceará. Casa Sol Nascente.

Na época do diagnóstico ele tinha um “preconceito”, como cita. Tinha medo que descobrissem que ele convivia com o vírus. “Foi como se o mundo tivesse caído sobre mim. Eu, logo depois, fiquei muito mal e veio a depressão. Os coquetéis de antigamente, de 12 anos atrás, eram muito fortes. Eu também era viciado em drogas e, [por conta disso], não tomava os remédios”, recorda.

“Eu conhecia um cara que era skatista profissional e tinha vários amigos. Quando ele descobriu que tinha o vírus, a família botou ele para fora de casa e disse para todo mundo. Ele passou a beber, não se alimentava direito e acabou morrendo. O pior de tudo é a pessoa entrar em depressão e não aguentar”, adiciona.

Ele passou muito tempo sem conhecer a Sol Nascente. “Quem descobriu foi a minha irmã. Ela me tirou da favela [e me trouxe aqui]. Eu estava muito debilitado de tanto usar drogas”, continua. “Hoje estou indetectável. Estou de boa. Meu problema é que, por conta das drogas que tomei no passado, meu rim esquerdo parou”.


 

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