Superação, produtividade, autoaperfeiçoamento, eficiência, rendimento. A transferência de máximas corporativas para o âmbito das arquiteturas pessoais revolucionou a forma como nos enxergamos e, ainda mais importante, como nos idealizamos. A proliferação de coaches, municiados de palpites reveladores sobre assuntos os mais diversos — da carreira ao sexo, da criação dos filhos ao condicionamento físico —, é sintoma e causa de uma sociedade obcecada pelo sucesso.
“Há gente oferecendo fórmulas para ter mais, alcançar mais, chegar mais longe, porque sempre queremos mais”, afirma o psiquiatra Daniel Martins de Barros, que publicou recentemente o livro “Viver é melhor sem ter que ser o melhor”, no qual parte de referências da filosofia, da biologia, das religiões e das artes para refletir sobre essa obsessão que nos define e aprisiona.
Poucas datas conjugam tão bem essa tendência quanto os dias que antecedem e inauguram um novo ano. Se as últimas semanas de dezembro se prestam à elaboração de listas, e os minutos da virada são empregados na consolidação das promessas, os primeiros dias de janeiro são ocupados pelo ímpeto de instrumentalização dessas mudanças. Temos 365 dias para vencer.
Mas, em uma sociedade que opera com base na manutenção de desigualdades, nem todos podem ser vitoriosos. Como conviver, então, com a probabilidade do fracasso? É possível se contentar com a mediocridade, o mais apavorante dos destinos contemporâneos? E o que há de tão assustador, afinal, em pertencer à média?
Na entrevista que concedeu ao O POVO+, reproduzida na íntegra a seguir, Daniel, que é professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), parte desses questionamentos para refletir sobre as dores e os prazeres envolvidos nessa busca incessante por aprimoramento e produtividade, propondo que abracemos o potencial transformador de nossas falhas — “o erro é professor e o fracasso é mestre” — e a tranquilidade aconchegante da mediocridade.
O POVO+: Vivemos em uma sociedade que supervaloriza a vitória e a alta performance. Há todo um nicho de mercado pensado por e para esse público. É uma estratégia de mercado valorizar o sucesso, mesmo sabendo que ele não pode ser atingido por todos? Como isso afeta nossa vida e nossa saúde física e emocional?
Daniel Martins de Barros: Eu acho que o mercado oferece o que as pessoas desejam, e ao mesmo tempo as pessoas desejam o que o mercado oferece. Então a vontade de suprir a insatisfação que trazemos em nós vira um nicho: há gente oferecendo fórmulas para ter mais, alcançar mais, chegar mais longe, porque sempre queremos mais. Isso é péssimo para o bem estar e para a saúde mental, porque nos impede de nos satisfazer com o que é bom o suficiente e cria uma legião de insatisfeitos.
O POVO+: Em paralelo a isso, há uma condenação do fracasso e uma culpabilização do fracassado. Vende-se o conceito de meritocracia: se você vence, é por seus méritos; Se você falha, é por sua culpa. De onde vem essa ideia?
Daniel Martins de Barros: Existe um viés cognitivo — uma falha em nossa forma de pensar — chamado de falácia do mundo justo. Temos a sensação de que existe um equilíbrio no mundo entre causas e consequências, e se coisas ruins acontecem é porque houve falhas, e sucessos são sempre atribuídos exclusivamente aos méritos. Claro que pensando friamente qualquer um sabe que não é assim — há muitas coisas que são mero acaso, inexplicáveis. Mas essa tendência a pensarmos assim é difícil de combater.
O POVO+: O fracasso pode ser didático? Pode-se aprender com ele?
Daniel Martins de Barros: Eu digo que o erro é professor e o fracasso é mestre. Quando acertamos, simplesmente seguimos em frente, sem pensar muito no porquê. É só quando erramos que paramos para pensar e refletir no que deu errado.
O POVO+: O senhor fala da média, da mediocridade, como uma “força gravitacional”. Somos atraídos para ela e, se nada fizermos, ou se fizermos muito pouco, estaremos fadados a ela. Defender a mediocridade não seria contraproducente? Não no sentido da produtividade fordista, capitalista, mas sim porque essa “falta de ambição” poderia acabar freando progressos importantes em diferentes campos, da medicina à engenharia, por exemplo.
Daniel Martins de Barros: É um risco confundir a aceitação da média com a ausência de ambição, mas não é isso que eu defendo. Eu acho metas excelentes, gosto do esforço para o aperfeiçoamento. O que condeno é valorizarmos unicamente quem está acima da média, sendo que a maioria do mundo não está. A ambição e a vitória têm muito valor, mas não são as únicas coisas valiosas — e precisamos ter a coragem de assumir que certamente não são as mais importantes para muitos de nós.
O POVO+: É possível falar de uma felicidade média? De uma satisfação média? E o mais importante: é possível trabalhar para que isso seja suficiente?
Daniel Martins de Barros: Quando entendemos que o “suficiente” já nos deixa satisfeitos, paramos de gastar energia buscando o melhor dos melhores. Não defendo nos contentarmos com o que é ruim. Determine o que é bom para você — e uma vez que algo preencha seus critérios, não precisa mais continuar procurando para saber se outra opção seria ainda melhor. Isso faz gastar mais tempo, mais energia e gera — paradoxalmente — mais insatisfação.
O POVO+: O senhor também reflete sobre valores que são deixados de lado em nome de uma supervalorização do sucesso, como a compaixão, a moderação e a cooperação. Ainda há espaço para esses sentimentos hoje?
Daniel Martins de Barros: Com certeza. Há e sempre haverá, e não é por acaso que eles são apregoados por filosofias e religiões do oriente ao ocidente, do passado até hoje. As pessoas anseiam por isso.
O POVO+: De que forma é possível escapar dessa lógica anti-mediocridade — que é traiçoeira em sua obsessão pela produtividade — sem se alienar de nosso tempo, do mundo e da sociedade?
Daniel Martins de Barros: Não existe uma fórmula mágica, mas o primeiro passo é enxergar a armadilha. Quando a percebemos, passamos a vê-la em vários lugares. A partir daí, tudo bem se eu quiser dar o sangue para ser o melhor — mas porque eu quero, não porque estou agindo no automático sem saber se aquilo tem sentido para mim.
O POVO+: Logo na introdução do seu livro, o senhor fala da popularização do estoicismo nos dias de hoje. Às vezes tenho a impressão de que, em alguma medida, ele também foi transformado em produto. Há uma corrente mercadológica que nos incentiva a ter uma alta performance inclusive nessa busca pela simplicidade, pelo minimalismo. O senhor acha que houve uma apropriação mercadológica dessa filosofia?
Daniel Martins de Barros: Isso acontece com tudo — da contracultura ao cristianismo, da calça jeans a Frida Kahlo. Se por um lado isso pode tornar os conceitos mais superficiais, por outro divulga ideias que de outra forma não atingiriam um público tão amplo. Onde houver terreno fértil a ideia vingará.
O POVO+: O senhor destaca a importância de dedicar atenção ao que está sendo consumido — o que tem se tornado cada vez mais difícil em meio ao excesso de estímulos, ao número gigantesco de notícias, marcas, celebridades e informações que disputam nossa atenção. Como fazer esse filtro?
Daniel Martins de Barros: Minha sugestão é focar no prazer. Para, de fato, saborear algo, para aproveitar mesmo, temos que fazer devagar, pensando naquilo. Ao fazer isso, iremos ser mais seletivos, reduzindo o que não nos agrega.
O POVO+: Mas como se conectar e sair do automático em tempos de estímulos infinitos?
Daniel Martins de Barros: Para isso é preciso gastar energia. Lembrar que estamos em modo automático e fazer força para sair dele: pare, olhe, escute, como dizem as placas nos cruzamentos dos trilhos de trem.
O POVO+: Ainda refletindo sobre o consumo desenfreado, o senhor fala das dimensões do desejo e do prazer. Afirma que “quanto mais descontrolado o desejo, menor o prazer obtido”, e que a “compulsão é o oposto do prazer”. É possível controlar o que desejamos?
Daniel Martins de Barros: Há um ditado que diz que “o que não se vê, não se cobiça”. Se controlarmos os estímulos a que estamos nos expondo, já gerenciaremos, em parte, nossos desejos. Mas para além de controlar o que desejamos, é preciso controlar como satisfazemos nossos desejos: com que atenção, com que velocidade, com que intenção.
O POVO+: Algumas religiões trabalham com o constante reforço de conceitos de culpa e pecado. Em outras palavras, promovem a necessidade de uma constante evolução, uma espécie de alta performance espiritual. As religiões (e a espiritualidade) podem ser aliadas nesse processo de descoberta e autoconhecimento?
Daniel Martins de Barros: O problema da religião costuma ser o religioso. As interpretações, as culpas, o lucro que se obtém a partir daí, são problemas usualmente causados por pessoas em nome de uma religião, não pela essência dos ensinamentos. Em essência, creio que todas apontam para direções parecidas, valorizando o outro, os vínculos, a proatividade bondosa.
O POVO+: Uma das ideias centrais da filosofia budista é a da impermanência, o reconhecimento da transitoriedade de todos os elementos. Lendo seu livro, percebi algumas referências a esse conceito, e em algumas ocasiões o senhor cita diretamente as religiões orientais. Estar atento a essa transitoriedade pode nos ajudar a encarar com mais serenidade as situações e aflições que nos rodeiam?
Daniel Martins de Barros: Essa é daquelas ideias que está presente em diversas filosofias e religiões. A popularização de ideias budistas nas últimas décadas nos faz pensar nelas diante dessa realidade de vida, mas a verdade é que em muitos ensinamentos, filosofias e psicoterapias somos encorajados e encarar de frente a finitude para que tenhamos uma vida melhor.
O POVO+: O senhor observa que o "carpe diem" vem sendo distorcido ou compreendido de forma equivocada. Defende que o lema não é apenas “chamamento ao prazer”, mas um recado de que precisamos nos ligar à vida, um “lembrete de que o amanhã não está garantido”. Em que sentido essa noção de finitude, de “amanhã não garantido”, pode nos impulsionar?
Daniel Martins de Barros: Quando sabemos que aquela rosa diante de nós pode estar murcha amanhã, não deixamos sua colheita para depois. Essa é a ideia original: esteja atento à sua vida, não porque você pode morrer amanhã, mas porque o que hoje te alegra amanhã pode não existir mais. Essa ideia é muito poderosa para nos conectar ao presente.
O POVO+: O senhor também fala da lição de humildade que a natureza nos oferece — sua assumida imperfeição, seu apego ao caos. De que forma podemos aprender com ela?
Daniel Martins de Barros: Nós esquecemos que somos parte da natureza. Então tudo o que vemos nela — caos e ordem, imperfeição e beleza, esforço, sobrevivência, perecimento — está presente em nós também. Ela pode ser um espelho que nos mostre para nós mesmos, o que sempre é uma lição.
O POVO+: Diversos escritores e artistas são citados ao longo do seu livro, de Mário Quintana e David Foster Wallace. Como a arte colaborou com o estabelecimento das suas reflexões? E como ela pode nos ajudar nessa busca?
Daniel Martins de Barros: A arte é fundamental para mim. Os insights que os artistas nos trazem — as percepções que eles têm e dividem conosco, na literatura, na pintura, no cinema, nos quadrinhos — são como lentes que nos revelam aspectos da realidade que até então não notávamos. Como quando uma escultura ressalta um detalhe que, depois de vermos na estátua, passamos a notar nas pessoas. Como a ciência, a arte é uma forma de investigação sobre a realidade. O conhecimento que ela produz é diferente, não é necessariamente instrumental, mas ainda assim essencial.
O POVO+: O senhor abre o livro lançando ao leitor a pergunta “Quais são os seus valores?”. Gostaria de perguntar ao senhor: quais são os seus?
Daniel Martins de Barros: Eu não fiz o planejamento estratégico da minha vida, então também não tenho essa resposta assim tão fácil. Mas valorizo demais os vínculos interpessoais significativos — conexão seria um valor, então. Valorizo a perspicácia — a capacidade de compreensão profunda do que não é evidente. E valorizo também o autoconhecimento como guia para nossa vida — coerência talvez seja uma forma de descrever o que quero dizer.
O livro anterior de Daniel, “Rir é preciso”, de 2022, investiga o papel do riso ao longo da história da evolução humana e sua capacidade de melhorar nossa saúde física e mental.
Daniel também é autor de livros para o público infantojuvenil: “Viagem por dentro do cérebro”, de 2013, e “O caso da menina sonhadora”, de 2016.
Ele mantém um canal no YouTube (@DanielMartinsdeBarros) com 153 mil inscritos e mais de 500 vídeos no qual reflete sobre temas como ansiedade, demência, depressão e fobias.
Grandes entrevistas