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"Dinheiro não, por favor": como o real evolui de físico para digital
Reportagem Especial

"Dinheiro não, por favor": como o real evolui de físico para digital

Com Pix, mudanças comportamentais pós-pandemia e aumento das transações com cartão, brasileiros usam cada vez menos o dinheiro em espécie. Ascensão de inteligências artificiais e digitalização mostram que não é só dinheiro que é eletrônico — e aumento do desemprego tecnológico no Brasil preocupa especialistas

"Dinheiro não, por favor": como o real evolui de físico para digital

Com Pix, mudanças comportamentais pós-pandemia e aumento das transações com cartão, brasileiros usam cada vez menos o dinheiro em espécie. Ascensão de inteligências artificiais e digitalização mostram que não é só dinheiro que é eletrônico — e aumento do desemprego tecnológico no Brasil preocupa especialistas
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Depois de reclamar do preço do arroz e que “tá tudo caro, você compra cinco coisinhas e dá quase 100 reais”, dona Maria Zulene, 78, chega à fila do caixa do supermercado com duas certezas — que passaram a ser rotina desde a pandemia de Covid-19 — sempre que vai fazer a feira do mês: é preciso higienizar tudo quando chegar em casa, hábito que a aposentada não tinha antes; e certamente vai levar um tempo até a operadora do caixa conseguir troco para R$ 100.

A sequência já é batata: a atendente termina de passar os produtos, vira a maquininha e pergunta, sem rodeios, se é no débito ou no crédito. Acrescenta: se for no Pix, é nesse QR Code. Dona Zulene saca a carteira estampada com imagens religiosas e retruca: aceita dinheiro?

“Já aconteceu de esperar meia hora. Atrasei meu almoço esperando eles conseguirem troco. Falaram no microfone, chamaram fulano, ciclano, aquele pessoal que anda nos patins. E nada, nada, nada, nada (canta, em tom bem-humorado, uma música que se tornou meme)”, relata.

Dinheiro em circulação não resolve problema da falta de troco(Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Dinheiro em circulação não resolve problema da falta de troco

A dona de casa está entre os milhões de brasileiros que ainda utilizam o dinheiro em espécie como principal meio de pagamento no dia a dia, uma parcela que tem diminuído nos últimos anos com a popularização do Pix, mas que ainda é responsável pela base das transações financeiras no Brasil.

Cria da roça, Zulene só aprendeu a ler aos 18 anos, quando mudou-se de Maranguape para Fortaleza, e nunca teve oportunidade de ir além nos estudos porque precisou dedicar-se aos filhos e à casa — embora se identifique, até hoje, com talentos para a engenharia mecânica.

Cresceu distante de tecnologias e o mais perto de celular que chegou foi o aparelho que ela chama de “Pai de santo, porque só recebe (ligações)”. Sem redes sociais, informa-se exclusivamente pela televisão e pela neta, a confeiteira Ana Eliza, 29 — esta, sim, cronicamente online, como diz a sua geração.

“A minha empresa é basicamente toda online. Chega muita gente pelo Instagram, o pedido é feito no site, os clientes me passam os detalhes e a gente conversa pelo WhatsApp, as entregas e as retiradas são feitas por motorista particular ou Uber e os pagamentos a maioria são digitais. E eu também uso muito (pagamentos digitais), só uso cartão se estiver sem internet”, detalha a jovem.

Eliza conta que aceita todas as formas de pagamento, mas poucos clientes preferem usar o dinheiro físico — e quando usam, ela pede que já mandem o valor trocado ou que aceitem o troco via Pix para que seja mais prático para ambos: “Antes era mais complicado, eu tinha que pegar emprestado com ela (a avó, Zulene) pra passar o troco, aí pra devolver era uma dificuldade, porque ela também não tem Pix. Então eu já deixo isso bem claro”.

“Tenho uma amiga que foi ao médico fazer exame e só aceitavam dinheiro. Aí sim deu problema, porque não aceitavam débito, crédito e nem Pix, e o caixa 24 horas era longe para sacar. Resumo da ópera: desistiu do atendimento. Não vou nem entrar na questão de quem foge de receber em banco”, destaca.

A realidade da pequena confeitaria não é tão diferente da de grandes empresas como a rede de cafeterias The Coffee, importada do Japão para capitais brasileiras como Fortaleza.

Lá, você pede num tablet, paga na sequência e espera o seu nome ser chamado. Para os mais apressados, o pedido também pode ser feito pelo aplicativo, aí é só retirar e sair pelas ruas com sua bebida quente ou fria a caminho do metrô como numa cena de filme. Um roteiro inimaginável para dona Zulene.

Há uma particularidade, aliás, que chama a atenção de quem passa com um pouco menos de pressa pelo balcão do café urbano minimalista: é a plaquinha que pede “dinheiro não, por favor”. Eles explicam que aceitam pagamento em espécie, mas preferem que seja feito com cartão por questões de “agilidade, higiene e segurança”.

Acompanhe uma publicação de fevereiro no X (ex-Twitter) que viralizou o assunto:

 

 

Em resposta à publicação, uma ex-gerente de uma franquia da rede de cafeterias afirma que “sim, eles orientam que não se aceite dinheiro em espécie e, caso o cliente insista, deve-se dizer que é uma norma da empresa e que, por conta disso, não tem troco”.

“Isso é terrível porque você impede que pessoas em situações vulneráveis possam consumir na loja. Elitismo puro. Tomei um ranço absoluto desse lugar depois de trabalhar lá. Quando apareciam pessoas em situações mais vulneráveis eu dava de graça, tirava como se fosse para mim. Geralmente a pessoa só queria um expresso mesmo, sabe?”, ressalta.

A ex-funcionária ainda narra que “eles [The Coffee] teoricamente implementaram isso por conta da (pandemia de) Covid. Mas já estamos há algum tempo sem pandemia e isso continuou porque virou uma medida da empresa”.

Loja da rede de cafeterias The Coffee na Avenida Beira-Mar, na Praia de Iracema, em Fortaleza(Foto: The Coffee/Divulgação)
Foto: The Coffee/Divulgação Loja da rede de cafeterias The Coffee na Avenida Beira-Mar, na Praia de Iracema, em Fortaleza

Essa é uma situação que acompanha as mudanças de comportamento dos brasileiros em relação ao dinheiro e que tem se tornado comum em estabelecimentos de grandes metrópoles, o que também desperta questionamentos como: é permitido recusar meios de pagamento?

Conforme adianta a publicação feita por Mário Adolfo, a legislação brasileira diz que não.

O pagamento em espécie é assegurado por lei e a recusa em receber pagamento em dinheiro na moeda corrente do País pode gerar multa para o estabelecimento ou prestador de serviço, de acordo com o artigo 43 da Lei das Contravenções Penais.

Além disso, está previsto no Código de Defesa do Consumidor, no artigo 39, parágrafo IX, que “é vedado recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais”.

O POVO+ tentou contato com a equipe de assessoria de imprensa da The Coffee por meio do endereço de e-mail fornecido no site da empresa a fim de saber se há algum posicionamento oficial sobre a medida ou, ainda, se algum representante poderia conceder entrevista e falar a respeito. Até o fechamento desta reportagem, no entanto, nenhum retorno foi obtido.

 

 

Revolução do Pix e evolução dos meios de pagamento no Brasil: o dinheiro em espécie vai entrar em extinção?

Os primeiros nativos digitais hoje já são considerados os tios do “pavê ou pacumê” (que têm o seu valor nos almoços de família) ou da piada que “a nota de 100 reais tem um peixe para lembrar que, dinheiro que é bom, nada”.

Caráter do humor à parte, a segunda anedota faz referência ao garoupa, um peixe encontrado em águas profundas por todo o litoral e que, junto à onça-pintada da nota de R$ 50 e de vários outros animais ameaçados de extinção cujas imagens estão impressas e circulam de mão em mão pelo País, estampa a biodiversidade brasileira nas cédulas do Real "O Real brasileiro foi criado em julho de 1994 com um design totalmente diferente do cruzeiro: no verso de cada célula é estampado um animal de nossa fauna. Isso foi feito com o intuito de estimular o interesse ao meio ambiente e à proteção da fauna. Os animais nas cédulas de 1, 5, 10, 50 e 100 reais foram escolhidos pelo Banco Central (veja abaixo). Já a tartaruga-de-pente (2 reais) e o mico-leão-dourado (20 reais) foram escolhidos pelos brasileiros em uma consulta pública, já que foram lançadas apenas em 2001." .

Em 2020, o lobo-guará foi o escolhido para estar na nota de R$ 200, a mais recente desde 1994 — quando o Banco Central escolheu dar visibilidade à fauna ameaçada no Plano Real. 30 anos depois do lançamento, a revolução do Pix e a evolução dos meios de pagamento digitais pós-pandemia sugestiona: o dinheiro em espécie também vai entrar em extinção?

A biodiversidade brasileira estampada nas cédulas do Real


Mais jovem e mais popular entre os meios de pagamento existentes no Brasil, o Pix surgiu alguns meses antes da nota de R$ 200, mas se consolida como favorito: em 2023, os brasileiros realizaram quase 42 bilhões de transações por meio desse sistema instantâneo de transferências, o que representa um crescimento de 75% em relação ao ano anterior.

Sem limitações de dia ou horário, o número de transações do Pix superou os de cartões de crédito e débito, boleto, Transferência Eletrônica Disponível (TED), Documento de Crédito (DOC), cheques e Transferência Especial de Crédito (TEC) no País, que, juntos, somaram quase 39,4 bilhões de operações.

Os dados são da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), baseados em levantamentos divulgados pelo Banco Central do Brasil (Bacen) e pela Associação Brasileira das Empresas de Cartão de Crédito e Serviços (Abecs).

Meios de pagamento mais utilizados pelos brasileiros


Criado em 1985 e descontinuado em 2024, o DOC foi o primeiro meio eletrônico de transferência bancária brasileiro e passou por cinco moedas: do Cruzeiro ao Real. Com ele, tornou-se possível transferir dinheiro com o valor debitado da conta no mesmo dia da operação e creditado na outra no dia útil seguinte — uma grande mudança no sistema financeiro da época, mas um processo demorado para os parâmetros atuais.

As operações de Transferência Especial de Crédito (TEC), realizadas exclusivamente por empresas para o pagamento de benefícios a funcionários, também foram encerradas no início do ano deste ano.

Continua em vigor apenas a Transferência Eletrônica Disponível (TED), que permite o envio de recursos até as 17 horas dos dias úteis e cuja transação leva até meia-hora.

A evolução dos meios de pagamento no Brasil


Na visão de Joseph Vasconcelos, que é doutor em economia e professor da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (Facc) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), antes lotado na UFC, o fato de o dinheiro físico ter sido cada vez menos utilizado como forma de pagamento nas transações entre os agentes econômicos está relacionado, sobretudo, a três principais razões.

“A primeira delas se deve à expansão dos bancos digitais e das fintechs. Com custo operacional muito mais baixo, essas startups conseguiram ofertar serviços bancários gratuitos ou a baixo custo para milhões de brasileiros que até então estavam fora da cobertura bancária tradicional”, expõe.

Para o docente, o incentivo e a autorização dada pelo Banco Central a esses bancos digitais rompeu com uma estrutura oligopolista do mercado bancário no Brasil em que antes apenas poucos bancos tradicionais eram prestadores de quase a totalidade dos serviços financeiros e, assim, limitava o acesso à rede bancária pelos custos dos serviços cobrados.

Joseph Vasconcelos é doutor em Economia e professor da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (FACC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)(Foto: Joseph Vasconcelos/Acervo pessoal)
Foto: Joseph Vasconcelos/Acervo pessoal Joseph Vasconcelos é doutor em Economia e professor da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (FACC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Ele observa que hoje a inclusão bancária já atinge mais de 80% da população brasileira, indicador que há cinco anos mal chegava a 50% — e, com o que chama de “bancarização”, vieram o acesso a cartões de crédito e débito e ao sistema de pagamentos instantâneos.

Em relação ao Pix, Joseph considera que “a ampliação da cobertura bancária realizada pelo crescimento dos bancos digitais possibilitou que a proposta de transferência instantânea se tornasse mais efetiva pelas mais diversas camadas sociais. O aumento dessa utilização só foi possível graças ao maior acesso do público a aparelhos smartphone conectados à rede de internet, item essencial para acesso às contas digitais”.

Como terceiro motivo, o professor aponta a criação das contas sociais para Bolsa Família, FGTS, seguro-desemprego, dentre outros: “A plataforma Caixa Tem foi criada pelo governo via Caixa Econômica Federal, um banco público, para conceder aos brasileiros uma conta digital gratuita para usar no dia a dia. Nela é possível receber e mandar dinheiro com Pix, poupar, pagar contas e boletos, fazer recarga de celular, contratar seguro, pagar na maquininha, fazer empréstimos e saque sem cartão”.

“Nesse sentido, foi possível atingir boa parte da população brasileira, sobretudo aqueles que recebem benefícios sociais do governo e que até então estavam fora do sistema bancário. Penso que os pagamentos instantâneos via Pix aliados à expansão dos bancos digitais fizeram o público reduzir massivamente a sua demanda pelo dinheiro físico para realizar transações”, desenvolve.

“A praticidade trazida pela digitalização e fluidez do sistema monetário tem colocado como antiquada ou obsoleta a portabilidade do papel moeda no mundo moderno e cada vez mais inovador. Penso que entramos numa nova era dos meios de pagamento”, conclui.

 

 

Dinheiro físico versus dinheiro digital

Ao analisar a evolução das formas de pagamento brasileiras, é possível identificar uma série de pontos positivos e negativos dentro do debate “dinheiro físico versus dinheiro digital”.

É o que afirma Edemilson Paraná, professor do departamento de Ciências Sociais da LUT University, na Finlândia, e filiado ao programa de pós-graduação em Sociologia e ao Núcleo de Estudos em Economia, Tecnologia e Sociedade (Nets) da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Entre o que destaca como favorável, o pesquisador cita que as transações se tornaram mais rápidas, seguras e baratas: “Esse processo de melhoria da infraestrutura digital de pagamentos, tanto pública quanto privada, é algo que beneficia a diminuição dos custos de transação na economia e faz parte de um processo de evolução que já vem de muitas décadas”.

Edemilson Paraná é professor de Sociologia Econômica da LUT University, na Finlândia, e também vinculado ao programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC)(Foto: LUT University)
Foto: LUT University Edemilson Paraná é professor de Sociologia Econômica da LUT University, na Finlândia, e também vinculado ao programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC)

“O setor de tecnologia bancária brasileiro é um dos mais avançados do mundo, e o Poder Público, na figura do Banco Central, sempre agiu em parceria com os maiores bancos para estimular e avançar o desenvolvimento dessa tecnologia. Seja com os Automated Teller Machines (ATMs), lá atrás, os caixas eletrônicos, ou mais recentemente com sistemas como o Pix, o Brasil sempre teve uma taxa de penetração relativamente grande, inclusive comparado com países avançados”, evidencia.

Na opinião de Paraná, essa digitalização mais recente tem um conjunto de pré-requisitos: “parte de uma infraestrutura tecnológica muito robusta, um setor de tecnologia bancário muito bem capilarizado, desenvolvido e estruturado, e uma boa vontade tanto dos atores privados quanto dos agentes públicos para estimular essa digitalização”.

Cenário que, prossegue ele, encontra um processo de “popularização da computação pessoal, da telefonia móvel, dos smartphones, da internet, dos apps, do avanço do setor de tecnologia bancária no Brasil; principais forças a impulsionar essa digitalização”.

Apesar do progresso tecnológico, o pesquisador não acredita que o panorama leve a uma extinção do dinheiro físico.

“Acho que pode ocorrer uma diminuição da base monetária de dinheiro impresso físico, mas ele ainda é importante em vários lugares do País, para vários estratos socioeconômicos da população, para algumas faixas de idade, de renda, algumas localizações geográficas. Por uma questão de democratização e de acesso às trocas monetárias, o dinheiro físico ainda vai continuar existindo por um bom tempo”, coloca.

“Muitas pessoas recebem seu salário, benefícios do Estado, e sacam imediatamente para pagar suas despesas básicas. O dinheiro físico é usado na economia local, nos pequenos estabelecimentos, ainda é depositada certa confiança por parte de pessoas que são muito receosas a utilizar tecnologias digitais e smartphones. A economia informal utiliza muito do dinheiro físico”, continua.

Fábrica da Casa da Moeda, no Rio de Janeiro(Foto: Divulgação/Casa da Moeda)
Foto: Divulgação/Casa da Moeda Fábrica da Casa da Moeda, no Rio de Janeiro

Paraná endossa que ainda é “muito arriscado e problemático” pensar em uma digitalização total, compulsória e absoluta, do dinheiro no Brasil.

“A gente sabe que a infraestrutura de comunicação ainda não é das melhores e ela é distribuída de maneira extremamente desigual: algumas pessoas têm smartphone, mas não conseguem pagar um plano; quando consegue, ele é de baixa qualidade e os dados acabam. Não é todo lugar que tem wi-fi, que tem condições estáveis de conexão”, constata.

O professor julga que “enquanto o Brasil mantiver essas desigualdades que colocam a situação de necessidade para o dinheiro físico, haverá um cenário complexo para as trocas monetárias. Essa é uma tendência crescente, mas ainda estamos distantes da extinção do dinheiro físico”.

Para especialista, o dinheiro ainda vai continuar existindo por um bom tempo porque é importante em muitas áreas do País(Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil)
Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil Para especialista, o dinheiro ainda vai continuar existindo por um bom tempo porque é importante em muitas áreas do País

“O Pix é um grande sucesso, não há dúvidas. A digitalização dos pagamentos é uma realidade no Brasil. Ela está largamente disseminada e as pessoas fazem uso amplamente desses mecanismos. E vão continuar fazendo, vai continuar sendo crescente. Acho que vai ser cada vez mais comum os pagamentos digitais, seja na economia formal, seja na informal”, reconhece.

“Mas o padrão de consumo das famílias deriva de vários fatores que não só a digitalização das transações monetárias e financeiras. Vai do perfil, da renda, da natureza dos desejos de consumo, das capacidades de gasto, das opções individualmente, uma série de questões”, contrapõe.

O professor identifica que a inclusão digital no sistema de pagamentos facilita, a depender das condições e do poder socioeconômico, acessar crédito ou microcrédito de maneira rápida, o que pode levar a contextos como aumento do endividamento, por exemplo, mas que “não tem como dizer que isso é regra, porque há vários outros fatores, inclusive a educação financeira ou a falta dela”.

“O Brasil é muito complexo, desigual, então é difícil generalizar. Mas é um elemento a mais para possibilitar a liquidez rápida, uma tendência muito clara à aceleração, à facilitação, seja do acesso ou do gasto. Se isso vai significar mais endividamento ou uma busca das pessoas por mais consciência em relação aos seus gastos, é difícil de prever”, acentua.

Banco Central de Fortaleza(Foto: Camila de Almeida/O POVO)
Foto: Camila de Almeida/O POVO Banco Central de Fortaleza

Em resposta a esta reportagem, o Banco Central do Brasil assegurou, em nota, que “apesar de o surgimento de novos meios de pagamento como o Pix apresentar impactos sobre os hábitos de uso dos meios de pagamento anteriormente existentes, será necessário algum tempo para que a evolução desses impactos possa ser claramente mapeada, e, consequentemente, avaliar seu impacto na produção de dinheiro”.

“Sobre a circulação de cédulas, apesar da evolução do uso dos pagamentos digitais, a quantidade de dinheiro em circulação tradicionalmente crescia ano a ano. Em 2020, em parte devido a efeitos causados pela crise sanitária, essa quantidade apresentou crescimento atípico, bastante superior ao crescimento anual médio observado nos últimos anos antes deste período”, ratificou o comunicado da autarquia federal ao O POVO+.

O BC demonstra que atualmente, embora inferior ao valor alcançado em 2020, a quantidade de dinheiro em circulação ainda se encontra acima do valor que alcançaria caso houvesse mantido, desde 2019, o mesmo crescimento médio anterior. É o que também mostra a reportagem “Dinheiro vivo segue circulando acima de nível pré-pandemia”, publicada pelo O POVO em fevereiro.

“Embora no ano de 2022 o dinheiro em circulação tenha voltado a crescer, em R$ 3,3 bilhões, variando de R$ 339 bilhões para R$ 342,3 bilhões, ainda é cedo para que se possa avaliar com precisão o seu comportamento a longo prazo”, pontuou o órgão.

Procurada para comentar sobre o cenário de mudanças de comportamento dos brasileiros em relação ao uso do dinheiro físico nos últimos anos, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) respondeu que, após verificar internamente, constatou que não teria porta-voz para esse tema.

 

 

Transformação digital: com avanço da tecnologia, não foi só dinheiro que se digitalizou

A digitalização tem se infiltrado em todos os aspectos da vida cotidiana, desde os formatos de trabalho e pagamento de contas até o acesso a serviços como os de saúde.

Para permanecer no contexto, durante a pandemia era necessário ter acesso à internet para realizar o agendamento da vacina, por exemplo — uma barreira digital que quase se tornou física para pessoas como dona Zulene, que contou com a neta para agendar e acompanhar a chegada do imunizante contra uma doença que foi responsável por deixar a idosa viúva.

Essa redefinição do modo de viver dos brasileiros faz parte de um movimento mundial de transformação digital e a escassez de dinheiro físico é apenas um reflexo desse avanço — mudanças que trazem consigo desafios significativos como o desemprego tecnológico "Desemprego tecnológico é quando a incorporação maciça de novas tecnologias na sociedade substitui postos de trabalho." .

Paulo Feldmann é professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da Universidade de São Paulo (USP)(Foto: Roberta de Paula/USP)
Foto: Roberta de Paula/USP Paulo Feldmann é professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da Universidade de São Paulo (USP)

É o que alerta ao O POVO+ o economista Paulo Roberto Feldmann, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da Universidade de São Paulo (USP).

“A moeda é um dos componentes da transformação digital. Ela (transformação) está acontecendo em todas as áreas. E tem um lado bom, o Brasil é um país que sabe usar tecnologia, veja que temos uma Receita automatizada e eficiente como a nossa, o sistema de imposto de renda daqui é um dos mais avançados do mundo, a eleição no Brasil é totalmente automatizada. Isso tudo é fruto da capacidade e competência do brasileiro no uso da automação”, analisa.

“Mas tem um outro lado que ninguém está olhando, que é o desemprego tecnológico. É algo maciço apertando toda a economia brasileira que segue sem reação nenhuma”, continua.

Feldmann pontua que “a digitalização de todas as atividades em todas as empresas é uma questão séria, porque a tendência é que gere muito desemprego. E o Brasil já é um país de muitos desempregados, não pode se dar ao luxo de informatizar tudo. Um dos setores que mais arrecada é o da agricultura e ele não é um setor que ajuda a gerar tantos empregos porque é totalmente automatizado, feito por máquinas”.

O professor explica que “muitas das grandes empresas estão deixando de contratar seres humanos para contratar robôs e começou a se falar um pouco mais disso por conta das inteligências artificiais”.

Feldmann adiciona: “Eu sou idoso e infelizmente continuo trabalhando, então acompanho a tecnologia, mas eu vejo meus colegas, amigos, até familiares, eles têm uma dificuldade enorme para lidar com os apps. Tudo é app hoje, você não vai mais na agência bancária, é tudo pelo celular. Mas para o idoso é difícil e se torna até perigoso, porque às vezes ele acaba sendo vítima, passa a senha”.

“Quem está na faixa dos 75, 80 anos, precisa lidar com a falta de sensibilidade por parte dos bancos. Essa é uma questão que tende a se agravar com o decorrer dos anos, principalmente porque a população idosa está aumentando no Brasil. E nosso nível educacional é um dos mais baixos, tem uma porcentagem bem alta de estudantes da escola pública e que depende dela porque a renda do brasileiro é baixa”, reflete.

O relatório “Chasing cashless” prevê que, até 2025, pelo menos um dos países nórdicos esteja completamente sem dinheiro físico em circulação, com um uso limitado de notas e moedas restrito a segmentos que não possuem outras opções de pagamento eletrônico disponíveis.

Dinamarca, Noruega, Suécia, Holanda e Tanzânia estão à frente dessa discussão e muitos desses países já declararam a extinção do dinheiro vivo.

“O Pix é uma coisa brasileira, mas em outros países também existem meios de pagar tudo através do celular para evitar o dinheiro em papel ou moeda. E acho que é uma tendência, porque os governos estão estimulando isso. É mais prático, mais seguro, controlável, auditável”, opina.

Como observa Feldmann, até mesmo as pessoas em situação de rua no Brasil agora aceitam doações através de mecanismos eletrônicos, o que reflete, segundo o economista, uma tendência global em direção à digitalização das transações financeiras.

“O Brasil é considerado um dos países mais avançados do mundo em automação bancária, está sempre nos primeiros lugares em termos de moeda digital. O Banco Central do Brasil sempre estimulou a modernidade, as tecnologias. Então essa é uma tendência irreversível, na minha opinião a moeda realmente vai ser extinta. Não sabemos exatamente quando, mas não estamos longe”, observa.

"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"

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