Tem sido cada vez mais constantes nos últimos anos relatos de pessoas ameaçadas ou impedidas de acessar locais e serviços públicos devido aos conflitos entre facções criminosas. Agora com a proximidade das Eleições Municipais de 2024, um novo desafio se apresenta em Fortaleza: a incerteza da participação de eleitores em áreas controladas por esses grupos. Esse contexto lança uma sombra sobre o processo eleitoral, especialmente para aqueles que enfrentam dificuldades para votar devido à forte influência do crime.
A problemática da criminalidade na Cidade já é amplamente conhecida, com histórias divulgadas pela imprensa e atestadas por instituições do Estado. Muitos indivíduos, mesmo sem qualquer envolvimento com a criminalidade, já foram expulsos ou impedidos de utilizar postos de saúde, hospitais e escolas porque moravam em “bairros rivais”. Além disso, há informações de moradores sendo extorquidos para permanecerem em determinados locais ou até mesmo sendo forçados a deixar suas residências para garantir a própria segurança.
Morar em um território reivindicado por uma facção e transitar em uma localidade dominada por outra pode ser uma verdadeira sentença de morte em alguns locais na Capital. Por isso, em meio a esse emaranhado de negação de direitos, a ida aos locais de votação também emerge como mais uma área sujeita à interferência do crime, cujos integrantes também buscam garantir seus interesses a partir das urnas eletrônicas.
Conforme reportagens produzidas pelo O POVO, mesmo já havendo proximidade a prefeitos e vereadores cearenses, organizações criminosas enxergam as Eleições Municipais de 2024 como possibilidade real para lançar seus próprios representantes no Poder Público do Estado. Para chegar aos resultados desejados no pleito, inclusive, elas não devem medir esforços.
Justamente por isso, os temores são dos mais diversos, principalmente com a possibilidade dos grupos criminosos atuarem em “seus” territórios impedindo adversários de fazer campanha e/ou proibindo o acesso aos locais de votação daqueles eleitores suspeitos de terem preferência diferente dos faccionados.
Diante disso, tanto o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE) quanto a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS-CE) têm buscado traçar e adotar estratégias efetivas para garantir a integridade de moradores de áreas onde as facções exercem seu poder como verdadeiras “autoridades”, ditando regras e controlando os destinos dos habitantes locais com o uso da força e do medo.
As perspectivas são de realizar trabalhos conjuntos, entre TRE-CE e SSPDS-CE, na tentativa de combater a influencia direta e indireta de grupos criminosos no pleito que se aproxima. Ainda assim, a estimativa é de que haja um índice relevante de votos comprometidos em Fortaleza devido aos mandos e desmandos de organizações criminosas.
Criadas dentro de presídios de São Paulo e Rio de Janeiro no fim do século passado, as facções expandiram sua atuação para o Ceará no início dos anos 2000. A priori, esses grupos operavam no Estado de forma esporádica, com ações isoladas e sem ligação estreita com as altas cúpulas das siglas criminosas. A partir da década de 2010, no entanto, suas atividades se tornaram mais coordenadas e abrangentes, impactando diversos setores da sociedade local, incluindo a esfera política.
No artigo “A evolução das facções criminosas no Ceará”, o ex-chefe da Casa Militar do Ceará, coronel Alexandre Ávila de Vasconcelo, traça uma linha temporal sobre a atuação dessas organizações em território cearense.
Como prova da forte influência das facções por estas terras, em 3 de março de 2024 O POVO publicou reportagem que revela investigações em andamento sobre a presença de grupos criminosos em prefeituras locais. Tanto em Fortaleza quanto no Interior, vereadores e secretários municipais se tornaram alvo de investigações conduzidas pelo Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas (Gaeco), do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), por suposto envolvimento com facções.
Paralelamente, a Procuradoria dos Crimes contra a Administração Pública (Procap), também do MPCE, passou a apurar indícios de relações entre prefeitos e grupos criminosos. As informações sugerem que as facções estariam envolvidas em esquemas de fraude em procedimentos licitatórios, direcionando as concorrências para favorecer empresas associadas ao crime. Somente em 2023, o MPCE conduziu 21 operações em 13 municípios, a maioria relacionada a irregularidades na contratação de empresas.
A reportagem que deu luz à essa questão é assinada pela repórter Júlia Duarte, que publicou novo material em 26 de março, desta vez narrando a atuação de autoridades do Estado para tentar evitar que facções lancem candidatos nas Eleições de 2024. Especialistas ouvidos pela reportagem explicaram na ocasião que chefes desses grupos veem nos pleitos municipais uma boa oportunidade para ampliar seus poderes nas cidades.
Diante disso, são trabalhadas duas hipóteses nesse cenário. A primeira é de que as próprias facções lancem candidaturas de representantes que, se eleitos, passem a atuar em seu benefício. Para tentar impedir que alguma postulação suspeita tenha seu registro concretizado, o Gaeco deve analisar informações das pessoas que concorrerão aos cargos eletivos, como declaração de bens e certidões criminais. Em caso de detecção de suspeitos vigiados pelo MPCE, a exclusão do processo deve ser realizada.
Outra hipótese levantada é a de que as facções possam trabalhar para pressionar a população a votar em determinados candidatos. O receio acontece vide às suspeitas ocorridas nas eleições municipais passadas (veja o quadro abaixo). “A nossa preocupação com relação à eleição é grande, mas nada concreto. O Gaeco tem feito e vai continuar com o trabalho de prevenção para que isso não venha a ocorrer”, explicou sob sigilo um representante do Gaeco ao O POVO na oportunidade.
Atuação de facções criminosas como poder paralelo
Diante destes dois cenários, uma outra preocupação se levanta: das facções impedirem eleitores de acessar os locais de votação por meio de ameaça implícita ou explícita.
As facções introduziram uma dinâmica peculiar no cenário criminal do Ceará, conforme explica o professor de Ciências Sociais, da Universidade Federal do Ceará (UFC), Luiz Fábio Paiva. No artigo “‘Aqui não tem gangue, tem facção’: As transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil”, ele cita que, ao contrário de como acontecia antigamente, quando pequenos grupos fragmentados (as gangues), identificados com territórios específicos e envolvidos em disputas internas, muitas vezes limitadas a um único bairro ou região, as facções trouxeram um novo cenário.
Os grupos faccionados importaram dos seus estados de origem, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, estruturas de organização mais centralizadas e que coordena as atividades criminosas em uma escala mais ampla. “As gangues e quadrilhas de traficantes se moviam em territórios estáticos, e enquanto cada grupo dominava seu pedaço, matando sem mexer no pedaço do outro, as facções invadem, matam, ocupam e expulsam moradores de suas casas”, escreve.
“Os líderes de gangues e os traficantes locais sempre tiveram um peso dentro da comunidade, mas sua capacidade de agência era limitada, e as negociações com eles eram consideradas como algo ‘tranquilo’. Em muitas comunidades, prevaleciam apenas os acordos tácitos de não delação dos esquemas ilegais. Desde as facções, esse equilíbrio foi quebrado, e os moradores relatam que as pessoas que fazem o crime querem ‘botar moral’ e determinar o que pode e não pode ser feito na comunidade”, continua.
Deste modo, ao longo dos últimos anos, não faltam denúncias de abusos e arbitrariedades cometidas por grupos faccionados. Como ressalta Jamieson Simões, pesquisador do Laboratório Conflitualidade e Violência (Covio) da Universidade Estadual do Ceará (Uece), há relatos de grupos criminosos restringindo o acesso e a circulação de pessoas em diferentes comunidades de Fortaleza há mais de uma década, no mínimo.
Ele destaca que o cerceamento de direitos já é uma realidade antiga na cidade, e não algo recente. “Lembro-me que no início da década de 2010 já tínhamos demandas de pessoas que precisavam ir a postos de saúde mas não conseguiam, porque quando cruzavam a rua o pessoal mandava voltar. Eram grupos armados de criminosos que controlavam quem podia acessar ou não aqueles locais. A política pública não se preocupou com isso e o problema se adensou”, aponta.
Como militante social e líder religioso, ele menciona que, nos primeiros meses de 2024, chegou a ser procurado por uma mãe residente do Conjunto Palmeiras, que relatou ter sido ameaçada por criminosos ao tentar levar seu filho para a escola, localizada em um bairro vizinho. “A facção que controlava aquela área fez ela voltar correndo com o filho. Ela e outras mães”, releva, destacando a possibilidade de agravamento dessas questões durante o período eleitoral.
Em sua análise, Jamieson Simões compreende que a maior circulação de pessoas durante a corrida eleitoral em territórios controlados deve gerar um “fechamento do acesso às comunidades”. “Em alguns bolsões de pobreza ao redor da cidade, direitos como mobilidade e acesso a serviços vão ficar completamente comprometidos”, diz.
O pesquisador também levanta questões fundamentais sobre a liberdade necessária para garantir a participação nas eleições. Ele questiona: "O que um corpo precisa para exercer o direito do voto? Ele precisa de liberdade. Mas e se essa pessoa for coagida por um grupo armado a votar em determinado candidato? Quem que vai garantir sua integridade física ou que ela não sofra represália depois de passado o período eleitoral?”
Jamieson afirma ainda que o Estado já dispõe de ferramentas de inteligência que podem e devem ser utilizadas para lidar com essas situações. “Qualquer cruzamento da cidade ou nas entradas das comunidades temos câmeras de monitoramento, que podem identificar a mobilidade do crime. Capacidade e inteligência o Estado já tem, então nada justifica que uma pessoa que mora na periferia tenha seu direito cerceado, seja para acessar uma assistência de saúde, de educação ou mesmo para exercer seu direito do voto”, pontua.
Comandante da Polícia Militar do Ceará (PMCE) revelou à reportagem que em determinadas comunidades de Fortaleza facções criminosas “já estão negociando quem vai ser o candidato. Lá só entra quem eles mandam”, diz. Mantido sob sigilo, ele continua: “As facções daqui estão copiando não outras facções, mas as milícias mesmo. Alguns bairros eles só aceitam determinados serviços clandestinos, como de internet. Estão criando sucatas para poderem comprar fios roubados, jogo do bicho... Tudo o que pode gerar lucro, dinheiro, eles aproveitam”.
“Agora vêm as Eleições que também é fonte de renda. É financiamento do partido, do caixa dois. E só entra, meu irmão, quem eles querem. Na última eleição proibiram de fazer propaganda em algumas comunidades e acabou. Tenho policiais que trabalham comigo e que moram em comunidades que dizem: ‘Lá já estão negociando, só vai poder fulano e sicrano. E outros nem ousam entrar na disputa.’”
Em meio a esse cenário saltam aos pensamentos perguntas que movem esta reportagem: Como o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE) e a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS-CE) estão se preparando para lidar com esse problema? Quais estratégias estão sendo traçadas para fazer o enfrentamento às facções? E, afinal, quantos votos podem estar comprometidos no próximo pleito na Capital?
Ao O POVO+, a SSPDS informou que tem realizado levantamentos para averiguar se há indícios ou probabilidade de participação de grupos criminosos nas Eleições Municipais de 2024. O trabalho, inclusive, é executado pela Coordenadoria de Inteligência (Coin), que deve concluí-lo até as proximidades das eleições. "Vamos conseguir, a várias mãos, fazer um trabalho de excelência, com dedicação e, assim, evitar qualquer problema nas eleições", declara o secretário da Pasta, Samuel Elânio.
Os dados coletados nessas investigações devem servir de base para esquematizar as ações ostensivas da Polícia Militar ou investigativas da Polícia Civil nas áreas críticas identificadas. “É importante salientar que esse trabalho é feito em parceria com o Tribunal Regional Eleitoral (...). A pasta ressalta ainda que haverá reforço das Forças de Segurança para garantir que o pleito eleitoral deste ano transcorra dentro da normalidade”, concluiu a SSPDS por meio de nota.
OP+ também tentou contato com o TRE-CE nos dias 26 de março, 1º e 8 de abril, por email. Nas oportunidades, entre os questionamentos feitos estão as perguntas: O TRE-CE reconhece que eleitores podem estar em risco durante as Eleições de 2024 em Fortaleza devido à influência da criminalidade? Quantos votos estão comprometidos? Se, de fato, o Tribunal trabalha em colaboração com outros órgãos do Estado? Entre outros questionamentos.
Até o momento, porém, o TRE-CE não prestou nenhuma das informações solicitadas.
Assista agora mesmo às duas temporadas da série documental "Guerra sem fim", produzida pelo O POVO+ sobre as operações das facções criminosas no Ceará.