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O drama de quem mora nos territórios demarcados por facções
Reportagem

O drama de quem mora nos territórios demarcados por facções

Casos como o do coroinha Jefferson, morto por andar em território "inimigo", trazem o sofrimento das comunidades à tona. Pesquisa mostra que 98% dos profissionais que atuam em territórios conhecem famílias impedidas de circular livremente
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FORTALEZA - CE, BRASIL, 30-06-2020: Bairro Bom Jardim sofre com a ção de facções criminosas que disputam o território. Moradores são colocados para fora de suas casas a mando dos criminosos. Pichações nas ruas mostram quais as facções que mandam no local. (Foto: Júlio Caesar / O Povo) (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR FORTALEZA - CE, BRASIL, 30-06-2020: Bairro Bom Jardim sofre com a ção de facções criminosas que disputam o território. Moradores são colocados para fora de suas casas a mando dos criminosos. Pichações nas ruas mostram quais as facções que mandam no local. (Foto: Júlio Caesar / O Povo)

Morar em um território reivindicado por uma facção e transitar em uma localidade dominada por outra facção pode ser uma sentença de morte em alguns bairros da Grande Fortaleza. Foi o que aconteceu com Jefferson de Brito Teixeira, coroinha de 14 anos, morto em 18 de agosto último no bairro Barra do Ceará por homens ligados à facção Comando Vermelho.

Uma pesquisa realizada pelo Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA) aponta a dimensão do problema no cotidiano das comunidades. Dos 235 profissionais entrevistados, envolvendo funcionários de todos os centros de assistência social e de atenção psicossocial e de 60% das unidades de atenção primária à saúde em Fortaleza, entre abril de 2018 e abril de 2019, 98,3% revelaram conhecer famílias impedidas de circular livremente onde moram por causa da presença de organizações criminosas ou da disputa entre as facções.

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Conforme Jamieson Simões, pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas Conflitualidade e Violência (Covio), da Universidade Estadual do Ceará (Uece), o impedimento de livre circulação se situa no contexto da disputa entre facções pelo controle do tráfico internacional de drogas, já que Fortaleza passou a ser importante interposto para o comércio ilegal para a Europa. "Para consolidar essa rota, precisa consolidar os territórios", afirma. E "para consolidar o domínio dessas rotas, as facções fazem tudo".

A literatura policial vem acumulando casos assim ao longo desses anos. Na denúncia dos acusados de matar José Wedson Vitor Filho, em 24 de abril de 2019, no bairro Praia do Futuro, o Ministério Público do Estado (MPCE) escreveu que a vítima foi morta por ter costume de visitar o seu pai, na Comunidade da Embratel, que é dominada pelo Comando Vermelho (CV), sendo que morava em local com atuação da Guardiões do Estado (GDE). "O presente homicídio, portanto, é mais um capítulo de violência no confronto de gangues rivais, tendo cada grupo o objetivo de sobrepujar o outro pela violência desmedida, pelo medo e por atentados cada vez mais explícitos", traz o documento.

Linhas semelhantes constam em outras denúncias. No caso de Joélio Cavalcante Nascimento, morto em 3 de julho de 2017, no Edson Queiroz, a denúncia apontou que a vítima morava em território do CV e estava proibido, "assim como os demais moradores", de transitar em área da GDE. "Ele não tinha envolvimento com nada. Os recados eram que se ele subisse, lá pra cima, ele ia morrer", afirmou uma das testemunhas do caso. Conforme a investigação, Joélio foi morto quando voltava para casa, depois de ter ido fazer cópias de documentos que seriam entregues no novo emprego que acabara de conseguir.

Mais recente foi o assassinato de José Jesus da Silva, 18, no Conjunto Palmeiras. Em 12 de fevereiro último, ele foi rendido quando descia de um ônibus por um grupo de quatro homens, que o agrediu com paus e pedras até a morte. A vítima havia ido deixar a namorada em casa, após sair do colégio. Apesar de boatos de que ele haveria assaltado um ônibus, a tese foi descartada pelos investigadores. José Jesus não tinha envolvimento com a criminalidade, conforme familiares. "Percebe-se que José Jesus teve sua vida ceifada simplesmente por ser morador de outro bairro, fato que fez com que os acusados passassem a suspeitar por qual motivo o mesmo rondava pela área", pontuou o MPCE na denúncia contra os suspeitos do crime.

Para Simões, as facções usam essas mortes para ampliar mensagens de poder e controle. Há, afirma, uma "legitimação do poder" pela violência que chega, inclusive, a ser institucionalizada com a valorização, entre outros, de uma polícia mais letal. Para ele, a situação chegou a esse patamar, entre outros motivos, com a baixa responsabilização de homicidas causada pelo baixo efetivo da Polícia Civil. "A primeira coisa é a impunidade, (o assassino) se sente legitimado."

 

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