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Desinformação e risco: Ceará tem mais de 107 mil barragens não cadastradas
Reportagem Especial

Desinformação e risco: Ceará tem mais de 107 mil barragens não cadastradas

Do total de reservatórios mapeados no Ceará, com paredes a partir de 20 metros de comprimento, só 788 constam no Cadastro Estadual de Barragens, como exige a Política Nacional de Segurança de Barragens. A falta de registros tanto impressiona quanto preocupa. Em 2023, pelo menos 17 reservatórios romperam total ou parcialmente no Ceará

Desinformação e risco: Ceará tem mais de 107 mil barragens não cadastradas

Do total de reservatórios mapeados no Ceará, com paredes a partir de 20 metros de comprimento, só 788 constam no Cadastro Estadual de Barragens, como exige a Política Nacional de Segurança de Barragens. A falta de registros tanto impressiona quanto preocupa. Em 2023, pelo menos 17 reservatórios romperam total ou parcialmente no Ceará
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O que parece ser solução, na ideia de atravessar períodos frequentes de estiagem no semiárido, traz também um risco de proporções atualmente desconhecidas para os gestores hídricos e coordenadorias de defesa civil no Estado. O Ceará tem, espalhados em todo seu território, mais de 107 mil reservatórios que não constam no Cadastro Estadual de Barragens (CEB). Desde pequenos barreiros, de poucos metros de altura, a açudes de porte médio. A quantidade tanto impressiona quanto preocupa.

Sem os dados, não se sabe oficialmente, por exemplo, quanta água está armazenada, qual o nível de segurança e qual a dimensão do risco de cada um em eventual rompimento. O pior é que o dano só é medido quando a circunstância já é crítica ou trágica. O contexto é diferente das cheias atuais no Rio Grande do Sul, com inundações sem precedentes pela intensidade de chuvas desde o fim de abril e início de maio.

São apontamentos que ajudariam a definir qual população pode ser impactada em caso de acidentes e incidentes. No ano passado, houve 17 ocorrências com barragens no Ceará, em 12 municípios, entre situações de comprometimento parcial ou colapso total das estruturas. Os casos foram anotados pela Defesas Civis locais e Estadual, gestores hídricos regionais e portais de notícias.

Abril de 2023 concentrou grande parte dos casos mais recentes de rompimento ou risco de rompimento de pequenos açudes no Estado. Na cidade de Piquet Carneiro, a Prefeitura chegou a orientar a população a deixar os imóveis residenciais e comerciais da área do Centro da cidade, diante da inundação que se aproximava.

Em Farias Brito, uma barragem particular foi vencida pela cheia do rio Cariús e 23 casas e uma escola restaram alagadas. Pelo menos 32 pessoas foram desalojadas. No mês anterior, outra barragem já havia rompido na cidade caririense.

Fortes chuvas ocasionaram o rompimento de uma barragem do município de Farias Brito, e a água invadiu casas e comércios da cidade(Foto: WhatsApp O POVO)
Foto: WhatsApp O POVO Fortes chuvas ocasionaram o rompimento de uma barragem do município de Farias Brito, e a água invadiu casas e comércios da cidade

Outros episódios aconteceram em Maranguape, Pedra Branca, Uruburetama. Tiveram casas inundadas, deslizamentos, perdas de lavouras ou animais. Em Itapipoca, duas barragens sofreram incidentes simultâneos no chuvoso abril do ano passado. As barragens rompidas não estariam no Cadastro, que é feito junto à Secretaria Estadual dos Recursos Hídricos (SRH), também responsável pela fiscalização.

A totalização de barragens no Ceará é resultado de um mapeamento feito pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), a pedido da SRH — depois de o Estado atravessar uma longa seca de sete anos na década passada. No critério, foram destacados todos os reservatórios com paredes ou escoramentos a partir de 20 metros de comprimento. As imagens, de alta resolução, foram obtidas via satélite. O levantamento é de 2020, foi revisado em 2021 e, segundo Clécia Cristina, coordenadora da Unidade de Estudos Básicos da Funceme, “há um plano de atualização novamente para 2024”.

Foram 108.357 reservatórios contabilizados. As principais concentrações dos açudes “desconhecidos” foram identificadas nas bacias hidrográficas do Alto Jaguaribe (22 mil unidades), Banabuiú (18 mil), Salgado (13,5 mil) e Médio Jaguaribe (12 mil). A bacia Metropolitana (11 mil) também se destaca.

 

107,5 mil

barragens no Ceará, das 108,3 mil, não possuem qualquer cadastro junto aos gestores hídricos. O critério são reservatórios com paredes a partir de 20 metros de extensão

788

reservatórios são cadastradas no Estado, somente, segundo informação da Defesa Civil do Estado, sendo 157 delas com volume monitorado diariamente pela Cogerh

 

“No Ceará, só 788 barragens são cadastradas junto à SRH”, informa Carlos Araújo, capitão do Corpo de Bombeiros e engenheiro da Defesa Civil do Estado. São apenas 0,72% do total. A quantidade é diferente do que consta no último Relatório Estadual de Segurança de Barragens, de 2023, publicado em fevereiro de 2024, que trouxe 400 açudes cadastrados.

O número até melhorou. Em 2022, eram 355; menos de 200 em 2018. Dentre eles estão incluídos os 157 principais reservatórios do Estado, monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh). Os dados dos relatórios, obrigatórios desde 2017 no Ceará, alimentam o Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SNISB). A plataforma, inclusive, evidencia que esse é um problema em todo o País. No Brasil, o SNISB só tem 26.627 barragens cadastradas (atualização até 24/5/2024).

Mapeamento de barragens no Ceará por bacia hidrográfica

Apesar do cadastro sendo gratuito, autodeclaratório, com o formulário no formato online, a procura é muito abaixo do necessário. O registro é importante por conter informações que podem ser utilizadas na tomada de decisão em situações de emergência. É obrigatório, parte da Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB). Dentre os dados básicos, a identificação do empreendedor (usuário), coordenadas da localização e o município. Se acrescentados altura e volume, as autoridades conseguem indicar a classificação de risco.

Não se sabe quando esses represamentos não cadastrados foram construídos. Alguns deles seriam quase centenários. Nem qual tipo de projeto e material foi usado em cada obra, quem são seus proprietários ou empreendedores (atuais usuários) ou qual a operação de cada açude não registrado. Até mesmo se estão sendo utilizados e se já não deveriam ter sido destruídos. Acabam sendo mais dúvidas que certezas. Além dos perigos não calculados.

Ocorrências com barragens no Ceará em 2023

 

Perigo aumenta com barramentos construídos "em cascata"; faltam punições a não cadastrados

 

A maioria das barragens fora dos registros oficiais, segundo a engenheira Fernanda Furtado, da Célula de Segurança de Barragens da Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), são as de pequeno porte. Num eventual arrombamento ou colapso, elas têm potencial para grandes estragos pelo caminho. "Mas de risco mesmo, o que preocupa a Secretaria são as chamadas barragens em cascata", aponta a técnica.

O termo é usual por indicar represamentos posicionados ao longo do leito de rios. "Às vezes é uma barragem pequena, ela não apresenta tanto risco, mas acaba arrombando, cai dentro de outra barragem que tem outra a jusante (na sequência), que vai ter um risco maior por ter algum assentamento ou cidade também a jusante", descreve.

A Célula de Segurança de Barragens da SRH responde pelo cadastramento e fiscalização dos reservatórios. "Infelizmente a gente tem muitos problemas justamente na campanha de cadastro de barragens, porque muitos dos empreendedores não querem dar as informações. Acham que vai ser cobrada alguma coisa da água ou do valor da outorga", explica a engenheira.

Barragens por categoria de risco


Ainda com as visitas in loco, segundo ela, os proprietários ou empreendedores relutam. No início de 2024, a SRH ministrou um treinamento junto aos operadores da Defesa Civil dos municípios para melhorar a coleta de informações e cadastramento. Os órgãos locais também passaram a alimentar essa base de dados.

O empreendedor é responsável pelo cadastro e atualização de todos os dados do reservatório perante o órgão fiscalizador, conforme a legislação que rege a segurança de barragens. Em caso de acidente, será ele que responderá criminal e administrativamente. Uma das exigências é uma inspeção regular, com laudo assinado por um engenheiro.

A Secretaria aponta o Dano Potencial Associado (DPA), com riscos baixo, médio ou alto, a partir dessa inspeção, e indica correções a serem feitas. "É obrigação do empreendedor vir à SRH cadastrar e regularizar a barragem. Muitas das nossas barragens são antigas, feitas em épocas de seca, em momentos emergenciais. O problema da seca é uma realidade no Nordeste, então a cada ano vão surgindo mais e mais barragens", fundamenta.

Apesar disso, segundo Fernanda Furtado, não há nenhuma multa aplicada a dono ou usuário dos 107 mil reservatórios não registrados no Ceará. Só teriam sido feitas notificações e advertências. “A gente só tem exatamente a localização. O empreendedor, altura e volume ainda são um desafio muito grande para nós”, admite.

As sanções da Política Nacional de Segurança de Barragens foram implementadas na atualização da lei em 2020. A situação estaria pendente de decreto do governo estadual. "A gente está tentando regulamentar essa parte dentro do Ceará", informa a engenheira.

Riscos e Dano Potencial Associado (DPA)

 Orós já rompeu 

 

Açude rompe e causa inundação

Na madrugada de 26 de março de 1960, a barragem do Orós rompeu. Por causa das fortes chuvas daquele ano. Nos três dias anteriores havia chovido mais de 750 milímetros (mm) na região. Mais de 100 mil pessoas ficaram desabrigadas, moradores de várias cidades inundadas do Vale do Jaguaribe. Foi na véspera de ele ser inaugurado pelo então presidente Juscelino Kubitschek.

 

Reservatório é 2º maior

O Orós era à época o maior reservatório do País, capaz de armazenar 1,94 bilhão de metros cúbicos (m³) de água. Ele foi inaugurado menos de um ano depois do colapso da barragem, em 11 de janeiro de 1961. Em 2002, passou a ser o segundo maior, depois da construção do Castanhão, com capacidade para 6,7 bilhões de m³.

 

 

 

Rompimento de reservatórios é uma das principais preocupações de gestores de defesas civis

 

Quais os principais riscos locais existentes, na percepção dos próprios coordenadores das defesas civis municipais? Numa consulta a gestores dos órgãos, feita no ano de 2023 em 79 das 184 cidades cearenses, o item "rompimento de barragens" apareceu somente em quarto lugar (57%) entre os principais problemas a serem enfrentados e que mais preocupam. "Mas o rompimento de barragens é o primeiro acidente de fato, dentro das situações indicadas na percepção de riscos", aponta o capitão Carlos Araújo, engenheiro da Defesa Civil do Estado.

Em primeiro na pesquisa, aparece o cenário "seca/estiagem" (93,7%), seguido do oposto "inundação/enxurrada/alagamentos" (76%) e "incêndio florestal" (74,6%). As três situações são o que Araújo define como casos inerentes à região, "normais de acontecer". O risco do "rompimento de barragens" foi o mais indicado por 45 dos 79 coordenadores das defesas civis. "Você vê que mais da metade dos gestores reconhecem o risco das barragens e admitem como um grande problema", analisa o oficial. O índice chama atenção, mesmo sem a consulta ter sido com todas as coordenadorias.

Percepção de riscos, segundo as Defesas Civis Municipais

"Muitos desses barramentos são feitos sem nenhum critério construtivo. Ali não deixa de ser uma edificação. Um barramento com má compactação, com material que não é o adequado, a água pode passar facilmente carregando esse material e acontecer uma erosão interna ou externa", descreve. E admite: "Não temos pessoal para fazer esse monitoramento de mais de 100 mil barramentos. Assim como a SRH (Secretaria de Recursos Hídricos) também não tem".

A visita aos barramentos acontece por demanda. Ele conta que muitas prefeituras acionam o órgão logo que a temporada de chuvas se intensifica — "antes das chuvas, muito não se preocupam". Em 2023, segundo o oficial, a Defesa Civil do Estado cumpriu 39 ações em 27 municípios relacionadas a riscos com barragens, entre inspeções e chamados de urgência para possíveis rompimentos ou ocorrências confirmadas.

Entenda os termos 

A Defesa Civil não é o agente fiscalizador da segurança de barragens, atua nas situações já consolidadas de colapso das estruturas ou rompimentos parciais. Mas Araújo considera que o órgão age como coparticipante do processo de fiscalização. Dentre as condições analisadas, estão estabilidade dos taludes (parede), se há presença de vegetação no escoramento da água, rachaduras, erosões ou até tocas de animais que possam comprometer a segurança.

Carlos Araújo trata as informações cadastrais de uma barragem como imprescindíveis. São dados como volume de água e população situada a jusante do reservatório que ajudarão a definir uma rota de fuga em caso de acidentes mais graves. "A gente não tem a dimensão do perigo de uma barragem dessa", afirma o oficial, sobre mais de 107 mil barragens serem "desconhecidas no Ceará".

Linha do Tempo: Legislações relacionadas à segurança das barragens

 

 

 

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