Este ano de 2021 marcou os 20 anos da fundação de uma nova cidade em Jaguaribara, planejada e construída para receber os moradores transferidos da antiga sede, transferidos para a construção do açude do Castanhão. A história foi contada e revisitada nas duas primeiras partes do especial do O POVO Mais, Cidades Inundadas. Nesta terceira parte, o OP+ traz a história de outras comunidades inundadas para a construção de um açude, décadas antes do Castanhão. A história da construção do açude Orós, que começa com a mal planejada transferência dos moradores e se segue com a tragédia da parede se rompendo.
Em 7 de janeiro de 1929, O POVO publicou um poema de Demócrito Rocha intitulado "O Rio Jaguaribe". O jornalista descreveu aquele que era conhecido como "maior rio seco do mundo", que pulsou e amedrontou muitas pessoas na cheia de 1924, mas, diante da seca que assolava o território, podia ser um alento através da reserva. A escritora Ana Miranda se referiu àquela assim: "Uma das maiores poesias escritas no Ceará, para o Ceará, talvez a maior de todas".
Décadas antes do Castanhão, uma tentativa de domar as águas do Jaguaribe fez submergir outras localidades, onde vivia a população de Orós, à época distrito de Icó.
O Orós foi o primeiro grande projeto de barragem no Ceará desde o Cedro, em Quixadá iniciado na época do Império e concluído em 1906. Com capacidade para pouco mais de 125 milhões de m³, atualmente ele está seco, com 0 de capacidade segundo o monitoramento da Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh).
Desde a época do Brasil Império, quando se iniciou a discussão sobre sobre açudagem na região do Jaguaribe para os problemas da seca, debatia-se a perenização e represagem das águas do rio. A barragem começou a ser construída ainda no governo de Epitácio Pessoa (1919-1922). Porém, as obras foram paralisadas e recomeçaram apenas no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Este último, aliás, é homenageado como nome oficial do reservatório.
Diferentemente do que ocorreu em Jaguaribara, não houve plano de reassentamento para os moradores que moravam nos arredores de onde hoje fica a barragem de Orós. Antes mesmo do arrombamento da barragem, em 1960, já existiam famílias impactadas pelo açude.
O misticismo é uma marca na história do açude de Orós. No começo de 1960, quando se temia mais um ano de seca, profetas do clima anunciavam nos jornais da época que durante a quadra, choveria copiosamente. Em fevereiro, no entanto, as perdas de safras devido à falta de chuvas já eram anunciadas na região do Baixo Jaguaribe. O ano anterior, de 1959, havia sido bom, mas os prejuízos da seca de 1958, uma das piores da história, ainda rondava o imaginário no sertanejo. Foi, aliás, aquela estiagem que levou JK a retomar a construção do Orós.
Diante do temor de mais um ano de penúria, foi organizada uma procissão. Em "O Jaguaribe a partir da construção do açude Orós", o historiador Kamillo Ribeiro ouviu o relato de Avani Almeida, morador do local que tinha 13 anos, na época. Almeida contou que, na tarde de 28 de fevereiro, o monsenhor Aluísio de Castro Filgueiras, vigário da freguesia de Sra. Sant'Ana, na cidade de Jaguaruana, celebrou a missa e fez um sermão alertando sobre a seca. Ele organizou uma procissão para pedir que viesse um bom tempo com chuva para região. Em 5 de março de 1960, começaram as chuvas. Naquele mês, caiu água até demais.
Na terceira semana da março, por volta do dia 19, data dedicada a São José, santo padroeiro do Ceará e relacionado ás chuvas, os engenheiros do Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs) já previam o arrombamento do açude.
No dia 22 de março, com as fortes chuvas, chegavam as notícias de que o rio Jaguaribe, na altura da ponte de Iguatu, já havia subido 6 metros em menos de 15 horas. O túnel da evacuação do açude contava com seis metros de diâmetro e a elevação da descarga do Jaguaribe elevou-se em 400%.
Na edição de 25 de março de 1960, O POVO trazia em manchete: "Orós com as horas contadas". "Agrava-se a situação a cada instante", dizia o jornal, informando que voltara a chover torrencialmente no Jaguaribe, e o açude recebeu 130 milhões de metros cúbicos em três horas. O uso de um sangradouro de emergência havia fracassado.
Aos 17 minutos do dia 26 de março de 1960, as águas fizeram romper a parede do açude ainda em construção. "Rompida a barragem do Orós na ombreira direita", noticiou O POVO na edição daquele dia.
Na entrevista citada acima ao historiador Kamillo Ribeiro, Avani Almeida contou como soube do arrombamento do açude. "Essa notícia chegou pelos motoristas. Naquele tempo não era rápido, não tinha a comunicação que tem hoje. Era o telegrama e mais o caminhoneiros que viajava e trazia as notícias. Tinha Seu Rochinha e me lembro também do Dodoca. Meu pai e meu irmão Dedé trabalham lá no Rochinha e eu vivia por lá. Quando foi uma noite, Seu Dodoca chegou e disse assim: 'Rochinha, tão dizendo que o Orós se quebra nesta semana. Já ia enchendo, sabe?' Eu tinha também uma radiadora na cidade manobrada pelo seu Antonio Alexandre. Ele colhia as notícias através de rádio amador e anunciava. Quando foi uma noite ele falou que tinha tomado conhecimento, que era preciso o povo do Baixo Jaguaribe procurar local. E aí começou o povo a se retirar, sem água, tudo no seco. Chovia, mas não tinha água invadindo a cidade. E o pior era os aviões que passavam bem baixinhos. Você ouviu falar? Tinha dia de passar três aviões em pouco tempo de um para o outro. Pedia que o povo se mudasse para um lugar seguro. Procurasse os serrotes. Os aviões soltavam uns boletins. O povo era tudo correndo como se fosse pegando dinheiro. Eu me lembro daqueles boletins que os aviões soltavam."
Na época delegado em Limoeiro do Norte, José Camilo disse ao historiador, no livro, que o Estado enviou três oficiais do Exército para ajudar na divulgação do arrombamento da barragem, que já era dada como certa em previsões feitas semanas antes, com o aumento das chuvas. "Alugamos um jipe, com um serviço de alto-falante e corríamos aquelas comunidades todas, anunciando que o açude ia arrombar e havia necessidade deles deixarem os distritos e a cidade porque toda aquela área seria inundada. Houve então a evacuação. O pessoal era transportado numa espécie de navio, para atravessar o rio que já estava com muita água e instalou-se um ponto de apoio onde passamos lá mais ou menos uns dez dias, dando alimentação para o pessoal. Graças a Deus cumprimos nossa missão."
Em 28 de março, O POVO registrou: "Inundado todo o Vale do Jaguaribe". O jornal elencava: "Cidades parcialmente destruídas e vilas submersas. Cortadas as comunicações com o resto do Estado. Fome na região. O rio ainda descendo em avalanche". Era registrada a destruição de dois terços das cadas de Jaguaribara e mais de 60% das de Jaguaribe.
O professor Pedro Sisnando Leite informou que o Departamento de Estudos Econômicos do Banco do Nordeste fez detalhado levantamento e concluiu que 170 mil pessoas foram diretamente afetadas.
A professora aposentada Meirismar Augusto, lembra, hoje com humor, que na época do arrombamento o Governo Federal achou que conseguiria conter as águas represadas com lonas dispostas ao redor da barragem, que havia atingido a cota máxima. Foram três bilhões e meio de metros cúbicos de água lançados Jaguaribe abaixo. De forma catastrófica o Jaguaribe voltava a correr pelo seu leito, transbordando novamente como uma artéria aberta.
O uso do termo arrombamento é discutido. De fato, Orós não chegou a se arrombar por completo, pois só parte da ombreira direita tinha cedido. No entanto, para evitar mais estragos, toda a ombreira foi dinamitada para que a água seguisse o seu caminho com mais intensidade diminuindo o risco de a parede do açude também ser levada pelas águas. Assim, também seria possível conservar 70% da obra já realizada.
Não existe registro oficial sobre o número de vítimas. Jornais da época chegaram a registrar, por exemplo, o caso dos três cadáveres vistos boiando na localidade de Peixe Gordo, entre as cidades de Tabuleiro do Norte e Limoeiro do Norte.
O Orós foi inaugurado em 11 de janeiro de 1961, com a presença do presidente Kubitschek, antes do início da nova quadra chuvosa.
A perenização do rio Jaguaribe só veio de fato na década de 1980, com a inauguração da válvula dispersora. Antes disso, o Orós se provou pela primeira vez durante o inverno de 1974, quando caiu um volume de chuva de 17,8 bilhões de m³ de água. Mesmo assim, a região do alto e médio Jaguaribe já não sofreu os impactos da cheia do rio como em 1924.
Na padaria Esmeralda, local que resiste ao tempo em Orós desde a década de 1970, Meirismar mantém um acervo reunido ao longo dos seus 74 anos. Ela conserva de maneira informal a história da cidade a partir de recortes de jornais, objetos da época, como as placas de identificação dos funcionários da antiga Ifocs, atual Dnocs, e muitas fotografias feitas pelo seu falecido tio, Pedro Augusto.
Quando O POVO foi ao Município, Meirismar foi indicada por moradores como "a pessoa mais certa para falar sobre esse assunto". A Associação Pedro Augusto Neto completa 20 anos de história em 2021. Apesar de não ter formação acadêmica, o tio de Meirismar atuava como radialista e jornalista na região. Era um dos únicos que possuía uma câmera ali, e registrava os passos de desenvolvimento que Orós foi tomando após o açude.
Meirismar recorda que a maior tragédia não foi o rompimento da barragem. Foi, sim, para os que já estavam sendo atingidos antes, transferidos para a construção do reservatório. "Aqui, os problemas maiores foram pelas pessoas que perderam suas terras para abrigar a bacia hidráulica. É o caso do distrito de Conceição que existia no local onde hoje é o açude. Esse distrito foi o começo do Orós na época e hoje em dia, as pessoas de lá estão nos distritos de Guassussê e Palestina", explica a professora aposentada.
No dia seguinte ao rompimento, a jornalista Adísia Sá expressou o sentimento de muitos cearenses diante da tragédia ocorrida no baixo Jaguaribe: "Milhares de famílias estão desabrigadas; velhos, crianças e mulheres perderam suas casas, seus pertences e como molambos, são levados, evacuados para outras terras, levando na retina e na memória e para sempre, o retrato de tudo aquilo que findou, acabou, desapareceu. Se nas secas o homem fugia de sua terra, levava consigo, entretanto, a esperança de retornar um dia à gleba natal quando beijaria de novo a natureza ingrata, é verdade, mas mãe — antes e acima de tudo. O retirante, o flagelado, o imigrante da seca, este chorava a saudade da terra ter ficado longe, mas não era um desterrado porque alimentava na sua alma o ideal de retorno, o sonho da volta — isso que constitui o élan da vida humana. Agora, o homem que deixa obrigado a sua terra porque tragada pelas águas — é um farrapo, um espectro — já que no seu espírito não correm os sentimentos da fé — que constrói; da esperança — que sustenta, estando dominado pela descrença — que aniquila, pelo desespero - que mata.", escreveu a jornalista na Gazeta de Notícias, em 26 de março de 1960.
Na mesa da padaria, Meirismar se emocionou ao lembrar que, na época, as pessoas esperavam o açude como a chegada de tempos de prosperidade para aquela região que padecia à medida que o rio Jaguaribe secava ou transbordava. "Ele (o açude Orós) iria realmente fazer com que mudasse a realidade do nosso Estado com esse manancial maior que a baía de Guanabara. Foi muito importante também por muitas décadas pela infraestrutura de turismo que aconteceu aqui", pontua.
A percepção na cidade é de uma maior adoração pela barragem do que o luto que ainda permanece em Jaguaribara em relação ao Castanhão. São nítidas as diferenças na relação das duas cidades com o mesmo rio.
Jaguaribara surgiu do rio Jaguaribe, era ele que movia a cidade ao longo do seu curso, por isso o rompimento com a população parece mais melancólico, mais doído e é mais recente. Com a barragem, a cidade de Orós já obteve seus louros.
"Nos últimos oito anos o movimento tem sido muito fraco", reclama Junior "Candim", gerente de uma pousada que começou como um empreendimento do seu avô. A sensação dele é de que a cidade está abandonada. O turismo que já não era estimulado, foi esquecido durante a pandemia. Segundo ele, nos últimos dois anos fecharam duas das quatro pousadas. Só restam duas na cidade, a do Candim e outra no centro da cidade.
No ano passado, com a redução do nível das águas, os barqueiros chegaram a ver vestígios da torre da igrejinha onde antigamente ficava o Guassussê. "Foi forte demais (o impacto do acidente), mas hoje está sendo bom. O açude ajuda muita gente", afirma Raimundo Nonato, funcionário do Dnocs em Orós desde 1985. Atualmente, o açude abastece os municípios de Iguatu, Quixelô e Orós, desce o rio e se encontra com o Salgado, que segue até o Castanhão.
A instalação da válvula que perenizou o Jaguaribe ajuda o rio a não secar, sendo útil para famílias que mantêm vazantes ao longo do rio e aproveitam para irrigação. Mas, também existe o uso irregular dessas águas. O roubo de águas é comum e tem ficado cada vez mais frequente. Ambos os administradores do Dnocs no Castanhão e no Orós queixaram-se da falta de "braços" para fiscalizar os arredores dos dois maiores açudes do Ceará.
As histórias de localidades do Ceará que, de forma planejada ou emergencial, foram evacuadas e transferidas para a construção dos maiores açudes do Ceará
