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Savannah: o gato doméstico híbrido com genética selvagem
Reportagem Especial

Savannah: o gato doméstico híbrido com genética selvagem

O gato híbrido da raça Savannah reconquistou a internet após vídeos do rapper Oruam. Oriundas do cruzamento de um gato doméstico com um serval (felino selvagem subsaariano) as primeiras gerações de Savannahs carregam características nunca domesticadas: como isso afeta o seu comportamento?

Savannah: o gato doméstico híbrido com genética selvagem

O gato híbrido da raça Savannah reconquistou a internet após vídeos do rapper Oruam. Oriundas do cruzamento de um gato doméstico com um serval (felino selvagem subsaariano) as primeiras gerações de Savannahs carregam características nunca domesticadas: como isso afeta o seu comportamento?
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Há uma janela de pelo menos 10 mil anos entre a domesticação dos cães e dos gatos. Enquanto os cachorros começaram a ser domesticados há 20 mil anos, no período Neolítico, os gatos provavelmente só começaram a interagir bem com os humanos entre 10 mil (segundo estudos genéticos na região do Crescente Fértil) e 3,5 mil anos (no Antigo Egito).

Essa diferença etária entre os Canis lupus familiaris (cães domésticos) e os Felis silvestris catus (gatos domésticos) faz com que os gatinhos ainda guardem mais instintos e hábitos relacionados à vida livre que os cães. Não à toa os gatos continuam sendo taxados como calculistas, ultra-independentes e indiferentes aos seus tutores.

Quem tem gato de estimação sabe bem que esses rótulos são injustos — guardadas as personalidades de cada indivíduo, os gatos são carinhosos, brincalhões e muito apegados às famílias humanas. Por outro lado, é bem verdade que eles ainda mantêm traços marcantes da genética dos exploradores e caçadores de outrora.

Cães têm pelo menos 10 mil anos a mais de domesticação que os gatos(Foto: Tamhasip Khan / Pexels)
Foto: Tamhasip Khan / Pexels Cães têm pelo menos 10 mil anos a mais de domesticação que os gatos

Se 10 mil anos de espaço entre uma domesticação e outra são capazes de marcar tão visivelmente a diferença de cães e gatos, imagine quando o assunto são felinos híbridos oriundos do cruzamento direto entre animais selvagens e domésticos.

É o caso da raça Savannah (Felis catus × Leptailurus serval), possível por meio da reprodução entre um gato doméstico e um serval (Leptailurus serval), felino de porte médio da África subsaariana. Os Savannahs são criados e vendidos especificamente como animais domésticos, mas guardam em sua existência reflexões biológicas e éticas sobre a tutela e o bem estar de animais.

 

 

Quem é o Savannah

Esbelto, com patas longas, cabeça pequena e orelhas enormes, o Savannah exibe as características do serval, lado selvagem da família. Com até 1,25 metro de comprimento, da ponta do focinho até o fim da cauda, o serval é um caçador habilidoso, paciente e noturno; combinando a força elástica das patas, ele é capaz de capturar desde pequenos roedores e lagartos até gazelas.

Tudo na genética desse felino é perfeito para uma vida ativa na savana, como as pernas ideais para longas caminhadas e corridas de explosão e a cor da pelagem combinando com os tons terrosos do bioma de poucas árvores.

Um serval fotografado por Morten Ross em Botswana, no ano de 2019(Foto: Morten Ross / Creative Commons 4.0)
Foto: Morten Ross / Creative Commons 4.0 Um serval fotografado por Morten Ross em Botswana, no ano de 2019

Por isso, o Savannah é um felino que demanda muito exercício físico e um ambiente espaçoso e estimulante, incluindo corpos de água. Para a alimentação, os de gerações mais recentes também demandam carnes cruas. Ao mesmo tempo, o temperamento dele é menos reativo e bem carinhoso, consequência do cruzamento com o gato doméstico.

De acordo com Alberto Klefasz, analista ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Savannah precisa de objetos, móveis e instrumentos que simulem o habitat natural africano.

Savannah F1 da Reserva LuckyStone(Foto: Geisa Narcisa / Reserva LuckyStone / Reprodução do Instagram)
Foto: Geisa Narcisa / Reserva LuckyStone / Reprodução do Instagram Savannah F1 da Reserva LuckyStone

Caso contrário, o “animal pode sofrer com a restrição de movimento e de comportamentos, podendo sofrer com depressão”, explica o biólogo. “O Savannah tem carga genética do serval, então só pela estrutura física é um animal que se desloca bastante.”

No Brasil, a raça é criada por um único criadouro legal: a Reserva LuckyStone, localizada em Valinhos (SP). Há 13 anos, o empreendimento tem autorização para a hibridização de animais, focando na produção de Savannahs e no gato abissínio (não-híbrido).

O valor por filhote varia de 100 mil a 120 mil reais, dependendo da geração do bicho. Por exemplo, se for um filhote nascido diretamente do cruzamento de um serval com um gato doméstico, então ele é de primeira geração (F1). Se o filhote for nascido de um Savannah F1 (ou seja, um animal híbrido de primeira geração) com um gato doméstico, então é de segunda geração (F2). A lógica se repete até a sexta geração (F6).

Os Savannahs F1 são os mais caros e os que mantêm mais características dos servais, como as orelhas grandes, a cabeça pequena, o corpo esguio e as pernas longas. Já os Savannah de gerações mais distantes são mais parecidos aos parentes domésticos.

É a beleza e o jeitão exótico que atrai compradores do Brasil inteiro. Um deles é o rapper Oruam, que compartilha nas redes sociais o dia a dia com o Savannah F1 chamado Malandrex (foto abaixo); incluindo os arranhões e picos de energia do híbrido.

 

 

 

 

Como é o comportamento de um híbrido com animal selvagem?

Os animais híbridos são parte do nosso cotidiano. Todos já vimos ou conhecemos mulas (Equus asinus × Equus caballus), híbridos entre os cavalos e burros, que são totalmente acostumados com a presença humana, mansos e sociáveis. Ou seja, ser um animal híbrido não significa ter um comportamento próximo do selvagem.

A questão com o Savannah F1 é que o hibridismo é diretamente com uma espécie nunca domesticada pelos seres humanos. Por isso, a carga genética desses animais resulta em comportamentos não compatíveis com o ambiente doméstico comum, como casas e apartamentos pequenos ou sem adaptação para os felinos.

Savannah F1 de quatro meses de idade(Foto: Jason Douglas / Domínio púbico)
Foto: Jason Douglas / Domínio púbico Savannah F1 de quatro meses de idade

“Esses animais não passaram por um processo de domesticação prolongado. Durante milhares de anos, os humanos foram selecionando os animais mais dóceis, mais adaptados ao ambiente humano, e por isso eles foram perdendo características de animais selvagens”, narra Alberto. Ele também destaca que esse processo de domesticação de cães, gatos, vacas e cavalos foi “natural, gradativo” e tinha um motivo, seja para proteção ou alimentação, seja para outros serviços.

Por isso, levanta-se a pergunta: por que queremos criar um animal com características selvagens? “Se for justamente porque ele tem essa carga genética, não tem porque submeter o animal a um sofrimento (pela falta de ambientes adequados à espécie)”, responde o biólogo. “Eles são indivíduos e precisam ser tratados como indivíduos (garantindo o bem-estar deles).”

 

Raças de gatos domésticos pelo mundo

 


Atenção: Savannah é exótico, não silvestre!

A hibridização de animais silvestres (ou seja, naturais do Brasil) é crime ambiental. O Savannah só pode existir e ser comercializado no País porque é um animal exótico.

Além disso, o criadouro deve ter uma licença de importação do serval, que deve vir esterelizado "Na Reserva LuckyStone, o principal pareador é um Savannah F1 " , ter um certificado de origem e uma nota fiscal. Além disso, ele deve ter um atestado sanitário, garantindo que cumpriu período de quarentena. Licenças de funcionamento e autorização dos órgãos ambientais são obrigações de todos os criadouros de animais e devem ser conferidos antes da compra de qualquer espécie.

No Brasil, a fauna e flora silvestre são considerados patrimônio público. Isso significa que ninguém pode ser dono de um animal silvestre: apenas tutor, e em casos específicos. Todos os zoológicos, instituições e organizações responsáveis por cuidar de animais silvestres brasileiros, por exemplo, o fazem com autorização de tutela.  “Não podemos confundir tutor com proprietário”, reforça Alberto.

O tráfico de animais silvestres ainda é um grande problema brasileiro. Aves, mamíferos e alguns répteis e anfíbios são sequestrados dos habitats naturais para serem ilegalmente vendidos como animais "domésticos". Os psitacídeos (como os periquitos) e os macacos são alguns dos mais almejados pelo público. 

Diferente dos Savannahs, esses animais são totalmente alheios a domesticação. Afastá-los de suas famílias e/ou habitats e submetê-los a ambientais inadequados atenta contra os direitos contitucionais dessas espécies: o direito à vida e à liberdade na natureza.

Por outro lado, ainda precisamos avançar na legislação sobre os animais, incluindo os domésticos. De acordo com a advogada animalista Karine Montenegro, cofundadora do Instituto Pró-Silvestre, a legislação brasileira ainda está aquém do reconhecimento adequado dos animais. Por aqui, eles ainda não são considerados sujeitos de direito, mas como coisas: "Ainda que os animais hoje no Brasil sejam protegidos pela Lei de Crimes Ambientais, tais seres ainda não são tidos como sujeitos de direito, não possuindo permissão legal para serem autores processuais", explica.

"Isso é uma problemática no direito animalístico, pois não retira o status de 'coisa' dos animais, se distanciando enormemente da atual tendência mundial de descoisificação animal, uma vez que são seres sencientes", continua. A senciência se refere à habilidade de ter sensações e sentimentos de maneira consciente. Ou seja, eles não reagem inconscientemente ao mundo ao seu redor, mas criam sentidos em seus relacionamentos e também podem sofrer.

Um serval fotografado por Morten Ross em Botwana, no ano de 2019(Foto: Morten Ross / Creative Commons 4.0)
Foto: Morten Ross / Creative Commons 4.0 Um serval fotografado por Morten Ross em Botwana, no ano de 2019

O projeto de lei que dará origem ao Novo Código Civil prever, no artigo 91-A, prevê que o animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica por Lei Especial, saindo do status de 'coisa'. No entanto, isso só ocorrerá com a publicação da tal Lei Especial. Até lá, seguem admitidos como bens. "Ou seja, com a manutenção de tal parágrafo da forma como está escrito, os animais continuarão a ser judicialmente tratados como coisa, sendo um retrocesso no direito animalístico", critica Karine.

Mais do que seres lindos e exuberantes, os animais são sujeitos sencientes e com comportamentos complexos. Híbridos, exóticos, silvestres ou domésticos, todos merecem viver em ambientes próprios aos seus hábitos e estilos de vida. E cabe aos humanos garantir o acesso deles aos seus direitos constitucionais.

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