Responder a uma mensagem de “bom dia”, compartilhar uma fofoca do trabalho, comprar uma blusinha pelo site da sua loja chinesa favorita ou verificar o limite do cartão de crédito. Pedir um carro ou um lanche por aplicativo, assistir a uma série ou acessar as notícias do dia.
Tudo isso é possível graças às extensas conexões de internet, que hoje fazem parte de nossas vidas de forma quase que “natural”. No entanto, a possibilidade de um colapso total desses sistemas é uma realidade que não pode ser ignorada.
Em 19 de julho de 2024, parte do globo experimentou essa situação até então impensável para muitos. Milhares de pessoas e empresas em diferentes países tiveram suas rotinas diretamente afetadas após o que ficou conhecido como “apagão cibernético”. A responsável por isso foi uma falha na atualização de um sensor de segurança que afetou principalmente o sistema Windows, da Microsoft, o mais popular do mundo.
Ao longo de pouco menos de 12 horas, uma grande "tela azul" apareceu em milhares de computadores, principalmente nos Estados Unidos, resultando no cancelamento de voos, interrupção de transações bancárias, queda de comunicações e atrasos em atendimentos hospitalares.
Embora a possibilidade de ataque hacker tenha sido descartada, o incidente expôs certa fragilidade das estruturas digitais que sustentam nossa sociedade, levantando uma pergunta preocupante: “E se a internet acabar?”
O incidente cibernético mencionado acima paralisou repentinamente sistemas utilizados por setores empresariais, de saúde, de tecnologia e governamentais. De início, serviços de emergência americanos e europeus apresentaram interrupção, com os hospitais registrando problemas para realizar atendimentos e até cirurgias.
Ainda nos EUA e na Europa, serviços de transporte público, como ônibus e metrôs, sofreram atrasos; e instituições financeiras ficaram praticamente inoperantes.
De acordo com a plataforma FlightAware, que monitora a aviação global, mais de 40 mil voos foram impactados em todo o mundo pelo apagão cibernético. Ao todo, foram mais de 4 mil voos cancelados e quase 36,1 mil voos com atrasos. A animação abaixo permite ver um breve “clarão” dos céus dos Estados Unidos durante a falha computacional.
No Brasil, impactos também foram sentidos, mas em menor intensidade. Operadoras de telefonia tiveram instabilidade, assim como serviços bancários ficaram fora do ar ao longo da manhã do dia 19 de julho.
Em nota à imprensa, a Microsoft explicou que o apagão ocorreu porque a CrowdStrike (empresa independente de segurança cibernética) fez uma atualização do sistema, o que levou ao apagão de softwares em todo o mundo. Ao todo, 8,5 milhões de computadores da Microsoft foram afetados, gerando prejuízo estimado em R$ 1 bilhão.
Em seu informe, a gigante da tecnologia afirmou que o apagão demonstra a natureza interconectada de todos os sistemas que cercam o ambiente cibernético.
“Também é um lembrete de quão importante é para todos nós, no ecossistema de tecnologia, priorizar a operação com implantação segura e recuperação de desastres usando os mecanismos que existem.”
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Saber como a sociedade iria se comportar caso um apagão cibernético como o da Microsoft tivesse sido a longo prazo e atingido outros sistemas operacionais é a dúvida que move esta reportagem. Isto é, como a sociedade reagiria caso o acesso à internet fosse interrompido por um logo período?
É possível prever possíveis efeitos causados e ações a serem tomadas em um hipotético cenário “sem internet”? O POVO+ conversou com especialistas de diferentes áreas em busca de respostas.
Mas antes de apontar para qualquer eventual cenário “pós-paralisação-da-internet”, bem como tentar identificar suas potenciais consequências, é importante mencionar uma ressalva realizada de maneira unânime.
Seria impossível pensar em um mundo hoje sem acesso à rede mundial de computadores por dois principais motivos: (1) a quase “natural” incorporação dessa tecnologia nos mais diversos setores da sociedade; e (2) as sólidas estruturas mantidas no conceito de World Wide Web (WWW).
Deste modo, mesmo na acidental ocasião em que um grande apagão cibernético ocorresse em escala global, as sequelas não deveriam ser tão duradouras graças à natureza resolutiva do ser humano.
Segundo aponta o professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) Érico Veras Marques, as pessoas iriam tentar resolver esse problema da maneira rápida possível com intuito de restabelecer a tecnologia e as conexões.
“Até em ambientes de guerra, como na Ucrânia ou na Faixa de Gaza hoje em dia, os sistemas de comunicação continuam funcionando porque são primordiais nesse contexto. Então imaginar um apagão do mundo é uma situação que eu teria que dizer que nós estaríamos regredindo. A tecnologia não vai deixar de existir, vai apenas estar com um problema, mas que deverá ser resolvido logo”, diz.
Acompanhando o mesmo pensamento, o também professor da UFC Fernando Antunes classifica a falha cibernética de julho de 2024 como problema pontual e exclusivo da Microsoft.
Mesmo com a empresa abocanhando boa parte do mercado de computadores pessoais por meio do sistema operacional Windows, isso só representa uma fração dos equipamentos que dão acesso à rede. Tanto é que a internet em si não parou.
"São coisas tecnicamente diferentes, porque a internet é estruturada de uma forma que é muito difícil de ser paralisada como um todo"
Feitas as ressalvas, a reportagem agora busca traçar um cenário imaginativo de como seria o mundo cuja sociedade estaria completamente desligada da internet. Conforme especialistas entrevistados pelo O POVO+, o impacto seria democrático, dado o tamanho o nível de conectividade atual. Ou seja, escolas, comunicações pessoais e institucionais, indústrias e tudo mais que existir seria diretamente impactado.
Apesar disso, setores altamente mais dependentes de tecnologia, como bancos e companhias aéreas, estariam na linha de frente entre os mais fragilizados – assim como aconteceu em 19 de julho de 2024. Vejamos o que dizem especialistas na área econômica, industrial, elétrica e de segurança pública.
Clique nos quadros abaixo para acessar a opinião dos especialistas
O economista Ricardo Coimbra lembra que os setores industriais e de serviços estariam muito vulneráveis a uma eventual crise de conectividade. Devido à sua intensa necessidade de transferências de dados e informações em tempo real, ambos estariam na linha de frente dos mais prejudicados. Portanto, torna-se quase instintivo supor que a agricultura teria um prejuízo menor nesse cenário, indica.
“Mas se a gente estiver falando de uma grande produtora de soja existirá toda uma estrutura tecnológica por trás. Parte significativa do agronegócio moderno depende de sistemas integrados e da internet para diversos processos produtivos. É tudo eletrônico, programado e dependente da tecnologia. Então isso poderia afetar seu processo produtivo e colheita”, complementa Ricardo, que também é professor da Universidade de Fortaleza (Unifor).
Para mitigar os impactos de um apagão cibernético, o especialista sugere que empresas passem a integrar diferentes plataformas a fim de manter determinados sistemas de retaguarda. Por outro lado, reconhece os desafios práticos dessa ideia.
“Implementar redundâncias de segurança e dados pode se tornar inviável economicamente, pois as empresas teriam que contratar múltiplos fornecedores para os mesmos serviços, aumentando os custos significativamente”, analisa.
Questionado sobre como governos também poderiam se preparar para enfrentar desafios econômicos decorrentes de falhas de segurança cibernética, Ricardo Coimbra menciona a implementação de mecanismos robustos de proteção e atualização dos sistemas, além do fortalecimento das políticas de transferência de informações.
“A empresa envolvida no último apagão era uma provedora de segurança cibernética. Uma falha na atualização do sistema causou o problema, mostrando a importância da parametrização correta e da constante revisão dos protocolos de segurança”, finaliza.
Em um cenário de colapso computacional, até mesmo o abastecimento elétrico enfrentaria sérios desafios. Professor do Departamento de Engenharia Elétrica da UFC, Fernando Antunes reconhece a dificuldade de prever com precisão os danos que poderiam ocorrer, mas afirma que o impacto no monitoramento e controle das redes elétricas seria significativo.
Ele aponta para a fragilidade da infraestrutura moderna e a necessidade de preparação e resiliência frente a possíveis falhas cibernéticas.
“Os riscos, caso venha a acontecer um apagão cibernético, seriam desastrosos uma vez que todos nós, em todos os níveis, dependemos da internet”, afirma. Deste modo, a existiria uma urgência em desenvolver sistemas de contingência robustos e diversificados para evitar um colapso total energético – o qual iria se somar à interrupção cibernética.
Antunes explica que, apesar da necessidade menor de energia elétrica para os sistemas de controle, o reabastecimento poderia ser complicado.
“Os sistemas de controle necessitam bem menos energia elétrica para funcionar. Então o reabastecimento poderia ser dado por uma fonte de energia elétrica independente", propõe, informando que geradores a diesel são exemplo que poderiam assegurar a continuidade dos serviços essenciais nesse cenário hipotético.
Titular do programa de mestrado profissional em Administração e Controladoria na UFC, Érico Veras Marques alerta para os problemas gerados na cadeia de suprimentos global. A falta de comunicação, por exemplo, resultaria em impactos desde a realização de pedidos até a conexão entre sistemas de fornecedores e clientes. Os bancos também sofreriam por tabela.
“Teríamos que voltar a métodos pré-internet, como enviar fax, anotar na caderneta, o que tornaria os processos mais lentos. Hoje, pagamos com cartão de débito, crédito e PIX. Em um apagão, precisaríamos de dinheiro em papel, o que poderia colapsar o sistema financeiro pela alta demanda de papel moeda”, presume.
De modo geral, Érico imagina que um banco praticamente pararia todas as suas operações devido à sua alta dependência tecnológica atualmente. Enquanto isso, uma mercearia supermercado menor poderia continuar operando mesmo que redes maiores pudessem enfrentar problemas. “Quanto mais dependente da tecnologia for o seu setor, mais impactado ele será”, destaca o professor.
Ainda de acordo com ele, até o melhor dos planos de contingência não resolveria completamente um problema como um apagão total cibernético. “Todos estariam com problemas. O que precisamos é de processos que permitam funcionar sem tecnologia, o que se torna cada vez mais difícil”, completa.
A área da segurança pública não estaria imune a um eventual apagão cibernético. Pelo contrário, a dependência das ferramentas digitais e ligadas às redes apresenta-se com certas particularidades nesse segmento. Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), Luiz Fábio Paiva comenta sobre os impactos de uma possível interrupção nesse setor.
“Temos hoje uma série de serviços que dependem do acesso a informação por meio da internet. (Então) É possível imaginar o colapso de sistemas de monitoramento, vigilância e segurança em geral, provocando um déficit importante para segurança das pessoas”, alerta, apontando para uma preocupação em relação a esses serviços.
Por outro lado, Luiz Fábio também destaca que o próprio crime hoje depende de recursos de informação para atuar. “As facções usam redes sociais e mecanismos de comunicação em seus esquemas criminais, o que significa que suas próprias ações seriam impactadas pelo colapso da internet”, explica. Ele afirma que, embora os criminosos também sofram com a falta de conectividade, sua presença física nos territórios já seria favorecida pela dificuldade dos órgãos públicos em monitorar suas ações.
Ainda assim, o professor diz acreditar na capacidade de resiliência e adaptação da sociedade diante das dificuldades impostas em seu tempo. “O fim da internet impactaria na segurança pública por um tempo, mas o Estado encontraria soluções para reestruturar serviços e instituições em conformidade a colapsos sistemáticos dos serviços de informação”, calcula.
A possibilidade de um apagão cibernético total levanta preocupações significativas e não é totalmente descartada entre aqueles que atuam na área de tecnologia e proteção de dados e sistemas.
Pesquisador de segurança da Eset, empresa dedicada ao desenvolvimento, pesquisa e comercialização de soluções de proteção antivírus, Daniel Cunha Barbosa compartilha suas opiniões à respeito.
O especialista destaca que a reação em cadeia decorrente de falhas em sistemas críticos pode escalar rapidamente, tornando crucial a implementação de medidas de proteção em camadas.
Segundo ele recomenda para mitigar esses riscos, são necessários planos robustos de prevenção desses incidentes e continuidade de negócios, que incluem atualizações de segurança, manutenção de backups offline e diversificação de fornecedores.
De acordo com Daniel, preparar-se para um cenário catastrófico envolve a adoção de sistemas redundantes, treinamentos regulares e simulações de cenários em que a internet ou outras ferramentas estivessem inoperantes.
Ele ressalta a importância de estruturas locais acessíveis sem rede, para recuperação de dados, além de uma postura proativa na diversificação de tecnologias e fornecedores. Suas opiniões estão compartilhadas abaixo:
O POVO - É possível prever os principais impactos imediatos de um apagão cibernético em empresas e indivíduos? Quais seriam eles?
Daniel Cunha Barbosa - Fazendo um exercício de estimativa de pior cenário, sim, é possível conceber os impactos de um apagão cibernético. Dentre as principais hipóteses está a indisponibilidade de sistemas de infraestrutura crítica, que pode causar muitos tipos de interrupções bastante significativas como, ausência de comunicação de sistemas financeiros, falhas no controle de tráfego aéreo, falhas no tratamento de água e esgoto e serviços de transporte.
Em cenários de calamidade, como o proposto no caso de um apagão cibernético total, é sempre interessante pensar nos efeitos colaterais relacionados às falhas iniciais.
A reação em cadeia relacionada à falhas em sistemas críticos faz o cenário de catástrofe escalar exponencialmente, e de forma muito rápida, por isso é crucial que cada ambiente adote medidas de proteção em camadas, e que elas estejam espalhadas por todos os segmentos do ambiente, para que em caso de incidentes os mesmos possam ser contidos e tratados tão breve quanto possível.
O POVO - Como as pessoas e empresas podem se preparar para mitigar os riscos associados a uma hipotética interrupção total da internet?
Daniel Cunha Barbosa - Para mitigar os riscos de uma interrupção total da internet, é interessante que as empresas adotem planos de resposta a incidentes e de continuidade de negócios que sejam robustos e adequadamente testados, assim caso algo aconteça o impacto será sempre o menor possível.
Isso inclui a implementação de atualizações e patches de segurança, manutenção de backups offline, otimização de configurações de todos os sistemas presentes e a diversificação de fornecedores, para evitar dependência excessiva de um único provedor.
Além disso, realizar análises retrospectivas de incidentes pode ajudar a identificar e corrigir vulnerabilidades que ainda não tenham sido tratadas. Estes passos auxiliam ambientes a passar pelos mais diversos tipos de incidentes, sejam diretamente relacionados à segurança ou não.
O POVO - Quais estratégias de contingência recomendados para garantir a continuidade dos negócios durante um eventual apagão cibernético?
Daniel Cunha Barbosa - Para pensar adequadamente em continuidade de negócios é interessante entender quais as partes essenciais daquele ambiente. Sabendo disso é possível desenhar processos para que, caso determinados pontos do negócio sejam interrompidos, haja uma alternativa para a realização daquele processo, seja por meios digitais ou analógicos.
Salvo as especificidades de cada negócio, existem pontos que auxiliam bastante todos os tipos de cenário como, por exemplo, implementar uma estratégia de backup regular, garantindo que os dados sejam armazenados de forma segura e separada da rede principal, bem como a realização de testes periódicos para validar se o backup esta sendo adequadamente realizado e se está íntegro e pronto para ser usado.
Utilizar sistemas redundantes e infraestruturas de TI é outra estratégia importante para assegurar que serviços essenciais continuem operando mesmo se uma parte da rede for comprometida. Treinamentos regulares e simulações de resposta a incidentes ajudam a preparar a equipe para lidar com apagões cibernéticos e a identificar pontos fracos, melhorando a coordenação durante um ataque real.
Por fim, para proteger a integridade de todas as medidas tomadas, é imprescindível que os ambientes contem com soluções de proteção robustas e que estejam adequadamente administradas, atualizadas e configuradas para barrar ameaças.
O POVO - Em um cenário de ausência da internet, é possível garantir a segurança e a recuperação de dados que dependem de serviços em nuvem?
Daniel Cunha Barbosa - Com certeza é possível, desde que esta recuperação de dados esteja prevista também em uma estrutura local que esteja acessível offline, como uma estrutura segregada dentro do próprio ambiente.
Este tipo de prática não é mais tão comum pois boa parte dos ambientes utiliza a nuvem para este tipo de armazenamento, mas para se recuperar de cenários catastróficos, como o proposto, é necessário prever alternativas não tão usuais.
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O POVO - Que lições podem ser aprendidas com apagões cibernéticos anteriores para melhorar a resiliência cibernética no futuro?
Daniel Cunha Barbosa - As lições aprendidas com apagões cibernéticos anteriores incluem a importância de não atribuir incidentes a circunstâncias excepcionais e, em vez disso, adotar uma postura proativa. Realizar análises retrospectivas completas, diversificar fornecedores e tecnologias, e evitar o uso de tecnologia ultrapassada são medidas essenciais.
É fundamental, também, testar e revisar periodicamente os planos de resiliência cibernética para ajudar as empresas a estarem mais bem preparadas para eventuais futuros incidentes.
O POVO - De modo geral, é possível pensar em um mundo sem internet dadas as estruturas existentes atualmente?
Daniel Cunha Barbosa - Considero que seja, sim, possível e até é necessário pensar em cenários de catástrofe. Apenas exercitando este tipo de pensamento é possível desenvolver, implementar e executar planos de resposta adequados, porém quanto mais catastrófico for o cenário, como por exemplo a interrupção global da internet, mais difícil e custoso se torna resistir a este incidente.
Serviços extremamente essenciais para a manutenção da realidade como a conhecemos hoje como internet, energia elétrica, distribuição de água e saneamento, dentre outros, são, como o nome indica, tão críticos e essenciais que para interrompê-los por completo será necessário um evento de proporções nunca antes vistas, seja causado por pessoas ou por características do nosso planeta.
Estes sistemas críticos costumam ter um nível elevado de codependência. Se um para por completo, os outros sentirão o impacto e acabarão sendo prejudicados ou interrompidos.
Se a internet parar por completo, ainda é possível seguir caminhos que levem a uma recuperação. Se a energia elétrica for totalmente interrompida, por exemplo, o cenário piora bastante, pois os meios atuais que temos para restabelecimento deste serviço também são dependentes dele.
Acredito que tudo possa ser resumido no cálculo e aceitação de riscos para que os ambientes continuem exercendo suas funções, sem nunca deixar de adotar medidas adequadas para que este ambiente continue realizando suas atividades da melhor forma possível, mesmo que imprevistos aconteçam.