A ideia de ter um filho é, para muitas pessoas, a chave para a felicidade. Na escolinha, as professoras costumavam explicar que o ciclo da vida dos animais envolve, necessariamente, o esquema “nasce, cresce, se reproduz e morre”. Mas o que acontece quando o ciclo da vida trava na fase da reprodução?
Dados da Organização Mundial de Saúde e da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida dão conta de que a infertilidade afeta de 50 a 80 milhões de pessoas em todo o mundo e, no Brasil, cerca de 8 milhões de indivíduos. Para contornar a situação, alguns casais e até mesmo solteiros buscam a adoção como forma de aumentar a família.
Para outros tantos, métodos de reprodução assistida, como a fertilização in vitro e a inseminação artificial, são o caminho. O valor, a depender do método e da clínica escolhida, pode variar entre R$3.500 e R$30.000, o que restringe as possibilidades para quem não dispõe do montante.
Foi a partir dessa lacuna que surgiu uma alternativa: a inseminação artificial caseira. Nas últimas semanas, as redes sociais foram tomadas pela discussão depois que um print de um dos grupos que facilitam a prática viralizou.
O POVO+ entrou em quatro desses grupos e mergulhou no universo das tentantes e doadores para entender o que está por trás da prática controversa.
"Procuro doador branco, olhos claros e disponível para viagem"; "Hoje faz uma semana que fiz minha inseminação caseira, me desejem sorte"; "Aqui tem casal homem e mulher que fez a ‘IC’ e deu certo? Meu marido não aceita, pois tem medo".
Essas são algumas das postagens que movimentam diariamente o feed do Facebook das quase 30 mil pessoas que estão nos grupos que esta reportagem observou.
Só no grupo do Facebook “Inseminação Artificial Caseira Fortaleza-Ce” são 1.800 pessoas, entre tentantes, doadores e, possivelmente, alguns curiosos. O volume e a frequência das postagens refletem o vigor das diversas comunidades - a maioria fechada -, além de perfis no Instagram e grupos de WhatsApp, que começaram a atrair seguidores interessados na prática que não é regulamentada, nem proibida no Brasil.
Esses grupos conectam pessoas que desejam engravidar, conhecidas como "tentantes", a doadores de sêmen. Participam pessoas de diversas partes do Brasil, com destaque para casais lésbicos, que recorrem a esse método alternativo devido aos altos custos de tratamentos de fertilidade em clínicas particulares e à limitada cobertura do sistema público de saúde.
Além de promover o encontro entre tentantes e doadores, esses espaços também compartilham informações sobre técnicas, cuidados necessários e celebrações dos testes de gravidez com resultado positivo.
A prática da inseminação caseira geralmente envolve a coleta do sêmen, que é imediatamente introduzido na pessoa que irá gestar com o auxílio de uma seringa. O procedimento é realizado em locais como residências ou hotéis, com as despesas de viagem e estadia frequentemente custeadas pelas tentantes.
Mas as nuances são muitas. Veja que dissemos “pessoa que irá gestar”, porque há também nos grupos a presença de homens transexuais que desejam engravidar e pessoas de outras orientações de gênero.
Apesar de ser o método de preferência da maioria dos doadores e tentantes, o uso da seringa não é regra. Há quem prefira o chamado “método natural” ou “inseminação por contato íntimo”, palavras que buscam tirar o estigma do que, na verdade, representam: fazer sexo.
Foi esse aspecto que fez a prática viralizar no último mês. Uma postagem de um dos doadores mostrava um casal após um atendimento que teria sido tão satisfatório que envolveu a participação direta não só da tentante, como do marido.
O post dividiu opiniões. Alguns internautas acharam engraçado, outros absurdo. Para uma parte do público, a inseminação caseira é uma oportunidade para quem não pode arcar com a reprodução assistida. Para outros, apenas uma desculpa para mascarar algum tipo de fetiche.
Maria Silvério, doutora em Antropologia pelo Instituto Universitário de Lisboa e autora do livro Swing: eu, tu, eles, explica porque as práticas não convencionais de sexo ainda geram tanta controvérsia.
“São práticas ainda muito permeadas de tabu, porque vão contra um dos pilares principais do matrimônio: a monogamia. O matrimônio ocidental é regido pela cultura cristã: monogamia, indissolubilidade e heterossexualidade”, diz.
"São práticas ainda muito permeadas de tabu, porque vão contra um dos pilares principais do matrimônio: a monogamia. - Maria Silvério"
A psicóloga Marina Rotty, que vive um relacionamento não-monogâmico há mais de 18 anos e escreve sobre o tema no blog Marina & Márcio também fala sobre a questão.
“Tudo que se refere a sexo tende a ser generalizado e tratado como pecado, como sujo, errado. Mas quem pratica o relacionamento liberal sabe que não é só o sexo em si; é o que acontece depois, o convívio do casal, a conversa, a intimidade compartilhada”, explica.
Os doadores parecem estar bem atentos à questão. Carlos* (nome fictício para garantir anonimato da fonte), de 40 anos, diz que muitos enxergam os doadores como prostitutos. “Alguns até são, mas não quer dizer que sejamos todos”, explica.
“O intuito da maioria é, de fato, ajudar casais a ter filhos. Claro que se for tudo conversado, acordado e for do interesse de todos, pode ter alguma forma de prazer envolvida. Mas é sempre tudo com muito respeito”, finaliza.
Do ponto de vista da saúde, a inseminação caseira não é recomendada pelos médicos por apresentar diversos riscos à pessoa gestante e ao bebê.
A principal preocupação dos especialistas é a ausência de triagem do doador para infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), como HIV, hepatite B e C, sífilis e herpes genital.
Apesar de muitos fazerem questão de apresentar fotos dos “exames em dia”, não é possível garantir a autenticidade dos testes. As infecções podem ser transmitidas para quem gesta e para o bebê durante a inseminação, podendo causar graves problemas de saúde, inclusive o risco de aborto espontâneo e malformação congênita do feto.
"O material genético usado em clínicas de reprodução assistidas, quando não é do parceiro, vem de um banco de doadores regulamentado pela Anvisa", explica Rivia Mara Lamaita, presidente do Comitê Nacional de Reprodução Assistida da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
"Esse material passa por uma triagem para detectar possíveis doenças e, assim, preservar a saúde da futura mãe e do bebê."
Além disso, a manipulação inadequada do sêmen e dos instrumentos utilizados na inseminação caseira aumenta o risco de contaminação por bactérias e fungos, presentes no ambiente ou no próprio corpo de quem vai receber o material, podendo causar infecções.
"Há risco de infecções no útero, trompas e outros órgãos reprodutivos, que podem causar infertilidade e até mesmo sepse, uma infecção grave que pode levar mulher à morte", detalha a ginecologista.
As controvérsias e implicações legais se aproximam bastante da prática conhecida como “barriga de aluguel”. A comercialização de material biológico humano é ilegal no Brasil e pode ser enquadrada na Lei de Transplantes, que proíbe o comércio de embriões e de partes do corpo humano que não sejam renováveis, e na Lei de Biossegurança, que abrange a reprodução assistida.
Por outro lado, a legislação brasileira autoriza a barriga solidária. Diferentemente da barriga de aluguel, não envolve pagamento e deve seguir uma série de regras descritas na Resolução nº 2294/21, criada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).
"A candidata deve ter grau de parentesco até quarto grau com o casal, não pode envolver remuneração, precisa ter menos de 50 anos e ter boa saúde clínica e psicológica", explica o ginecologista Adelino Amaral, membro da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana.
A falta de regulamentação sobre a inseminação caseira, porém, coloca a prática numa zona ainda mais cinzenta, e acende alertas também sobre a consanguinidade entre as crianças, que podem vir a se conhecer quando adultos e ter filhos sem saber que são irmãos.
Essa questão ganhou debates intensos nas redes sociais com a série documental O homem com mil filhos, da Netflix, sobre o holandês Jonathan Jacob Meijer, que seria pai de centenas de crianças por inseminações.
Ao longo de três episódios, a série explica como Meijer se aproveitou de falhas na regulamentação dos bancos de esperma para se tornar doador em escala global, além de reunir depoimentos de várias mães que disseram ter sido enganadas por Meijer.
Em 2017, por meio de um grupo no Facebook, mais de cem mães notaram similaridades na aparência de seus filhos e descobriram que eles compartilhavam o mesmo pai biológico.
Elas então abriram um processo judicial contra o doador na Holanda, alegando que suas ações representavam um perigo significativo para as crianças, tanto psicológico, quanto riscos de incesto acidental.
Processos judiciais são uma preocupação, tanto para tentantes quanto para doadores. Jorge*, 35 anos, doador há seis anos, conta que um colega “chegou perto de ter um grande problema”.
Como Jorge e outros amigos começaram a fazer as doações, o rapaz resolveu embarcar também na jornada. Conheceu um casal pela internet e se dispôs a fazer a doação. Semanas depois, uma das mulheres entrou em contato com ele dizendo que iria requerer um teste de paternidade e cobraria os direitos à pensão.
“A sorte foi que nem grávida a moça estava. A inseminação não funcionou, então não teve como provar nada. Mas a gente tem esse receio, afinal, não é regulamentado; não tem como a gente fazer um documento autenticado e dizer como foi o processo. Não tem como argumentar contra o DNA”, relata.
Esse não é o único entrave jurídico nos casos de inseminação caseira: muitos casais lésbicos têm dificuldade em registrar a dupla maternidade nos cartórios. Para conseguirem o nome das duas mães no registro civil, precisam entrar com um processo judicial.
Obras de ficção como a série americana The L World já abordaram o tema e as dificuldades que essas famílias enfrentam. Na trama, Bette (Jennifer Beals) e Tina (Laurel Holloman) passam pelo procedimento de inseminação artificial; oprocesso de adaptação à maternidade e os percalços que elas enfrentam são os motes da terceira temporada.
Mas a mudança parece estar acontecendo no Brasil. Em outubro, a terceira turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que há presunção de maternidade da mãe não biológica de uma criança gerada por
No
Para Ana Carolina Mendonça, advogada que representou a família na ação, as dificuldades no registro das crianças geradas por inseminação caseira revelam disparidades no Brasil: famílias com recursos para custear tratamentos em clínicas têm direito ao registro sem obstáculos, enquanto aquelas que recorrem à autoinseminação, por escolha ou necessidade, enfrentam barreiras.
A advogada observou que essa desigualdade afeta de forma particular as famílias LGBTQIAPN+, ressaltando que famílias heterossexuais podem registrar filhos gerados fora de clínicas sem comprovações adicionais.
Na decisão, a relatora, ministra Nancy Andrighi, afirmou que a Constituição Federal e o Código Civil reconhecem que o planejamento familiar é de livre decisão do casal e impõem ao Estado a obrigação de proporcionar o exercício desse direito, sendo vedado qualquer tipo de coerção das instituições públicas ou privadas.
A ministra ressaltou que a falta de disciplina legal para o registro de criança gerada por inseminação heteróloga caseira, no âmbito de uma união homoafetiva, não pode impedir a proteção do Estado aos direitos da criança e do adolescente – assegurados expressamente em lei. "Deve o melhor interesse da criança nortear a interpretação do texto legal", enfatizou.
Nancy Andrighi reconheceu que os custos elevados das técnicas de reprodução assistida em clínica podem tornar inviável a realização do sonho de várias famílias, e o Poder Judiciário não pode ratificar essa desigualdade social.
"Negar o reconhecimento da filiação gerada de forma caseira seria negar o reconhecimento de famílias que não possuem condições financeiras de arcar com os altos custos dos procedimentos médicos", completou.
Observando as postagens e interações no grupo, outro aspecto chamou a atenção: a preferência por doadores de fenótipo caucasiano. A demanda é tão alta que os próprios doadores passam a anunciar suas ascendências, “boa genética” e exaltam seus olhos verdes e peles alvas.
O racismo implícito nesse processo permeia outras formas de constituir família. Dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), demonstram que preferência das famílias adotantes é por crianças brancas, com até três anos de idade e que não apresentem laços familiares prévios ou condições de saúde que exijam cuidados especiais.
Clique na foto e passe para o lado para ver 3 postagens com solicitações específicas de fenótipos
Para garantir que os filhos biológicos também sigam esse padrão, os tentantes se atêm muito às características genéticas e fenotípicas dos doadores. Para o advogado Antonio Baptista Gonçalves, doutor em Direito e professor da Escola Paulista de Direito, essa forma de manipulação dos genes é vista com preocupação, pois remete às práticas eugenistas.
O jurista afirma que a pretensão da “correção dos defeitos” genéticos pela ciência pode ser encarada apenas como uma etapa inicial para práticas antiéticas. Afinal, mesmo que em um futuro distante, o procedimento poderia desenvolver um ser humano considerado “ideal, sem defeitos, forte e virtuoso”, atropelamento barreiras éticas e retornando a ideais excludentes e discriminatórios.
Sob a ótica da legislação, o advogado indica ser possível notar a fragilidade procedimental que envolve a manipulação genética, o que dá brechas à possível criminalidade genética.
“O que impede um casal em uma clínica particular, mediante a uma elevada quantia em dinheiro, propor a seleção não natural de algumas características no DNA de seu herdeiro? E como poderemos controlar inseminações feitas fora de laboratórios?”, questiona.
A pauta é, sem dúvidas, controversa. Do ponto de vista moral, não cabem julgamentos nem muitas opiniões. A questão envolve saúde pública, justiça social e direito da família e requer uma atenção especializada.
Afinal, as plataformas podem ser boas para fazer amigos, se atualizar de notícias, emitir opiniões e até vender um fogão, mas talvez não sejam exatamente a melhor escolha para fazer um planejamento familiar.
por Mateus Mota*
Depois que a imagem explícita do doador de sêmen viralizou, muitos grupos passaram a restringir a entrada de novos membros. Demorou quase quinze dias para que as minhas solicitações fossem aceitas no Facebook, com exceção do grupo de Fortaleza, que foi mais rápido.
Entrar em contato com doadores e tentantes também não foi fácil. A maioria das pessoas usa o modo de postagem anônima, com medo das informações serem vazadas. Os dois doadores que aceitaram conversar conosco só o fizeram com a ressalva de não serem identificados.
Carlos e Jorge têm a função de doador como um complemento de renda e temem serem estigmatizados como "prostitutos" caso colegas de trabalho saibam o que fazem.
Outros dois doadores aceitaram conversar com o O POVO+, mas desistiram depois de alguns dias e pediram para que a íntegra dos relatos não fosse utilizada na reportagem. Um deles, que é um homem gay, desistiu depois de ter sido pedido em casamento pelo namorado.
O noivo disse que não se sentia confortável em saber que ele teria filhos fora do relacionamento, ainda que tenham sido concebidos "sem contato íntimo". Assim, este doador retirou suas publicações e encerrou a atividade no ramo.
Ele disse, porém, que talvez busque a barriga solidária como forma de aumentar a família no futuro. Mas usando o material genético do esposo, "pra não ter perigo", segundo ele.
*Mateus Mota é estagiário do O POVO+