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Girassóis em movimento: o acolhimento voluntário que faz a vida florescer em pessoas com HIV
Reportagem Especial

Girassóis em movimento: o acolhimento voluntário que faz a vida florescer em pessoas com HIV

Para além de dezembro, mês que marca a campanha de enfrentamento ao HIV/Aids e outras ISTs no Brasil, o trabalho em Fortaleza segue nos 12 meses do ano. Entre todos os tipos de doação que podem existir, voluntários disponibilizam todos os dias uma das mais nobres: a doação de tempo

Girassóis em movimento: o acolhimento voluntário que faz a vida florescer em pessoas com HIV

Para além de dezembro, mês que marca a campanha de enfrentamento ao HIV/Aids e outras ISTs no Brasil, o trabalho em Fortaleza segue nos 12 meses do ano. Entre todos os tipos de doação que podem existir, voluntários disponibilizam todos os dias uma das mais nobres: a doação de tempo
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Uma casinha amarela decorada com girassóis em uma esquina do bairro Parangaba assiste ao fluxo intenso de veículos na avenida João Pessoa. Florida e simpática, a residência convida os mais curiosos a descobrirem o que acontece ali.

“Viva a vida” é a frase que recepciona quem entra, seja para buscar ajuda ou para conhecer o trabalho voluntário e o acolhimento que fazem a diferença na vida de pessoas que vivem com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) "Esse vírus ataca o sistema imunológico, que é o responsável por defender o organismo de doenças. As células mais atingidas são os linfócitos T CD4+. O vírus é capaz de alterar o DNA dessa célula e fazer cópias de si mesmo. Depois de se multiplicar, rompe os linfócitos em busca de outros para continuar a infecção. É um retrovírus classificado na subfamília dos Lentiviridae e é uma Infecção Sexualmente Transmissível. A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (aids) ocorre em estágios mais avançados da infecção por esse vírus."  em Fortaleza.

Entre as buzinas e sons do comércio ao redor, Cidade Negra canta: “No coração de quem faz a guerra / nascerá uma flor amarela / como um girassol”. É o som do carro de Nazaret Sales, que incorpora essa filosofia em seu dia a dia como presidenta da Associação de Voluntários do Hospital São José (AVHSJ).

Dezembro vermelho marca a campanha de enfrentamento ao HIV/Aids e outras ISTs no Brasil, mas em Fortaleza o trabalho segue nos 12 meses do ano. Entre todos os tipos de doação que podem existir, os voluntários da AVHSJ disponibilizam todos os dias um dos mais nobres: a doação de tempo.

Maria de Nazaret Sales é presidenta da AVHSJ e atua como voluntária desde 2018. De 15 em 15 dias, vai até o HSJ e realiza a escuta ativa com pacientes do hospital — especialmente os desacompanhados, com diagnóstico recente ou que estão em cuidados paliativos(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO Maria de Nazaret Sales é presidenta da AVHSJ e atua como voluntária desde 2018. De 15 em 15 dias, vai até o HSJ e realiza a escuta ativa com pacientes do hospital — especialmente os desacompanhados, com diagnóstico recente ou que estão em cuidados paliativos

A associação foi fundada em 1993, no auge da epidemia de HIV/Aids no Ceará, quando o Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ) era a única unidade de saúde no Estado que prestava atendimento às pessoas acometidas pelo vírus — numa época em que o tratamento era praticamente inexistente.

Àquela altura, a equipe de serviço social reuniu voluntários para criar um grupo que realizasse trabalhos de atenção e cuidado aos pacientes internados em situação de extrema exclusão e vulnerabilidade.

“O HSJ é um dos hospitais mais humanizados que nós temos na Capital, ele ganha muitas vezes do hospital particular. Mas saímos dos muros dele e hoje temos como missão lutar pela garantia de direitos humanos e de dignidade daqueles que enfrentam violações e opressões decorrentes do HIV/Aids. Nossos projetos envolvem acolhimento, promoção de adesão ao tratamento, apoio alimentar, além de ações preventivas através de palestras gratuitas sobre ISTs”, conta Nazaret.

"Viva a vida" é a frase que recepciona quem entra na sede da Associação de Voluntários do Hospital São José(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO "Viva a vida" é a frase que recepciona quem entra na sede da Associação de Voluntários do Hospital São José

De ameaça à saúde pública, o impacto do HIV tornou-se controlável e teve uma redução nas últimas décadas. Desde então, testagem eficaz, tratamento, prevenção e medicamentos pré e pós-exposição distribuídos gratuitamente via Sistema Único de Saúde (SUS) foram alguns dos avanços que ajudaram a mudar essa realidade.

O Brasil, aliás, lidera a resposta global há mais de 40 anos: foi o primeiro país a oferecer tratamento gratuito e disponibiliza diferentes ferramentas para prevenir, diagnosticar, tratar e informar sobre o vírus da imunodeficiência humana.

Em 2024, segundo estimativas do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) no Brasil, 96% dos brasileiros que vivem com HIV conheciam seu diagnóstico.

 

Pessoas usuárias de PrEP no Brasil (2018-2024)

 

Embora positivo, o dado contrasta com a informação também elencada pela entidade de que, globalmente, dos 39,9% de pessoas que vivem com HIV, 9,3 milhões não recebem tratamento.

Esse cenário mostra como a falta de acesso a informações de saúde, medicamentos e apoio ainda é forte. Por trás desses números estão grupos marginalizados como a comunidade LGBTQIA+, mulheres e meninas — pessoas afetadas mais violentamente e de maneira desigual.

O relatório “A urgência do agora: a Aids em uma encruzilhada” aponta que “como o estigma e a discriminação contra comunidades marginalizadas criam barreiras aos serviços vitais de prevenção e tratamento, populações-chave como profissionais do sexo, homens que fazem sexo com homens e pessoas que injetam drogas representam uma proporção maior (55%) de novas infecções globalmente em comparação a 2010 (45%)”.

Na mesa de recepção, alguns preservativos e folhetos informativos ficam à disposição de quem chega(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO Na mesa de recepção, alguns preservativos e folhetos informativos ficam à disposição de quem chega

Conhecer o diagnóstico e iniciar o tratamento são os primeiros passos de uma caminhada maior: contribuir para quebrar a cadeia de transmissão do HIV através da informação e diminuição do preconceito. Esse, segundo Nazaret, é um caminho coletivo.

“São 30 anos de muitos protagonistas. Dona Mirtes (a fundadora) revolucionou o cuidado, o acolhimento e a humanidade com as pessoas que vivem com HIV no Ceará. Ela não só é um exemplo de luta, como é uma excelente mestra no amor, no amar e no ensinar os outros a amar”, reflete a voluntária.

Em média, 1.200 pessoas são atendidas por mês pela entidade, que oferece um acolhimento completo: atendimentos psicológico, nutricional e de assistência social gratuitos, oficinas terapêuticas e de promoção da autoestima, rodas de conversa, entre outras atividades.

A sede é aconchegante como um lar. A entrada estava vazia em virtude do período de festas natalinas, quando a reportagem foi até lá(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO A sede é aconchegante como um lar. A entrada estava vazia em virtude do período de festas natalinas, quando a reportagem foi até lá

Boa parte dessas ações acontece na sede da Parangaba. No interior da AVSHJ há várias salas, dentre elas a que funciona como brechó solidário. O movimento é intenso, com clientela diversa.

Durante a visita d’O POVO+, duas funcionárias do shopping Parangaba, que funciona ao lado, foram até lá garimpar algumas peças.

As roupas e calçados são doações que os voluntários recebem e vendem por valores simbólicos — é possível encontrar itens de vestuário infantil, moda feminina e masculina, bolsas e outros por R$ 2 e até R$ 10.

No interior da AVSHJ há várias salas, dentre elas a que funciona como brechó solidário. O movimento é intenso, com clientela diversa. Durante a visita d'O POVO, duas funcionárias do shopping Parangaba, que funciona ao lado, foram até lá garimpar algumas peças(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO No interior da AVSHJ há várias salas, dentre elas a que funciona como brechó solidário. O movimento é intenso, com clientela diversa. Durante a visita d'O POVO, duas funcionárias do shopping Parangaba, que funciona ao lado, foram até lá garimpar algumas peças

A Casa de Retaguarda Clínica (CRC), na Parquelândia, próximo ao HSJ, é outro ponto de encontro da associação e espaço de apoio fundamental para quem precisa.

Ela é um projeto da AVHSJ que funciona desde 2004 com a função de abrigar pessoas com HIV vindas do Interior ou de bairros distantes, encaminhadas pelo próprio hospital e que não têm onde ficar enquanto aguardam atendimento.

Desde sua criação, já foram atendidas milhares de pessoas que passam por lá diariamente para tomar um banho, fazer uma refeição ou dormir.

 

Como revelam os depoimentos a seguir, esses são, sobretudo, lugares de afeto onde se semeia novos horizontes mesmo diante de situações de extrema vulnerabilidade.

 

 

Nazaret Sales: “Não ganho dinheiro, mas ganho valores”

“Tem gente que tem medo de passar na calçada do Hospital São José e ficar doente. Esse é o nível de preconceito.”

A frase de Nazaret resume bem o quanto o estigma pode afetar a vida de uma pessoa com HIV. Esse, na visão dela, é um dos motivos pelos quais as pessoas que vivem com o vírus escolhem se esconder e, por isso, sua existência acaba invisibilizada.

“Muitos, quando falam para a família, acabam tendo seus objetos pessoais trocados ou isolados. Por ignorância, as pessoas acham que vão pegar HIV pelo suor, pelos talheres, no assento do ônibus, no banheiro, na piscina ou até mesmo no ar. Quem vive com o vírus também é fragilizado por essas dores”, descreve.

 

Você conhece as formas de contágio pelo HIV? Assim não se pega

 

A complexidade e a burocracia de estar à frente de tamanha responsabilidade não assustam Nazaret, que é aposentada há 26 anos de uma instituição financeira onde trabalhava como documentalista.

“Trabalhei na implantação do sistema de arquivo que ainda hoje funciona lá no Banco do Nordeste e também fui responsável por implantar a ISO 9000”, recorda.

Voluntária desde 2018, além do trabalho como presidenta, de 15 em 15 dias ela vai até o HSJ e realiza a escuta ativa com pacientes do hospital — especialmente os desacompanhados, com diagnóstico recente ou que estão em cuidados paliativos.

 

Você conhece as formas de contágio pelo HIV? Assim se pega

 

A ação faz parte do grupo de apoio Girassol, uma das atividades realizadas pela AVHSJ. Atuante desde 1996, a equipe fornece apoio e acolhimento aos pacientes internados.

São mais de 50 pessoas organizadas em sistema de plantão, que giram pelas enfermarias todos os dias da semana para levar dignidade a essas pessoas — seja com ações de ordem prática (dar comida, pentear os cabelos) ou com escuta ativa, esclarecimentos e conforto emocional.

“Faz bem para o meu coração escutar as pessoas. Eu tenho uma dupla, um rapaz que desde o começo do meu voluntariado me acompanha nessa escuta. E às vezes a gente faz mais de um paciente, porque as pessoas têm muito a falar e perguntar nesse tempo. Aquilo faz um bem tão grande à pessoa que você não imagina. A escuta ativa é uma terapia”, indica.

Trecho da fachada da sede da AVHSJ, no bairro Parangaba. A pintura recente atraiu olhares de pessoas interessadas no trabalho da Associação, segundo a presidente Nazaret(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO Trecho da fachada da sede da AVHSJ, no bairro Parangaba. A pintura recente atraiu olhares de pessoas interessadas no trabalho da Associação, segundo a presidente Nazaret

“A gente fica de nove a meia-noite, são três horas. Mas você sai com a alma lavada, enxaguada. Porque você não imagina o quanto é bom olhar no olho de um paciente e ele estar leve por causa de uma música que ele ouviu, de uma palavra.”

E segue: “A gente não tem essa história de religiosidade, nós tratamos a espiritualidade. Então cantamos música gospel, música católica, profana, o que tiver. Às vezes a gente até inventa e canta, é uma festa”.

Nazaret brinca que ela e sua dupla se viram “nos dois, não é nem nos trinta” para dar atenção a todos que precisam, em especial pessoas que vão desacompanhadas, que estão com diagnóstico recente ou em cuidados paliativos.

Em meio à rotina hospitalar, “a dupla de repente vira um grupo com todo mundo compartilhando e cantando junto”.

 

Segundo a presidenta, a pandemia de Covid-19 “deu um giro de 720°” — e uma mistura de risco com interesse e tempo causou a diminuição da quantidade de voluntários.

“Não apenas a pandemia, mas a evolução e as mudanças na sociedade têm tirado os bons princípios humanos como a família, o respeito e a educação. Ninguém quer saber de ninguém, ninguém quer saber de nada, só se olha para o próprio umbigo.”

Ela acredita que “isso começou a ser destruído dentro da família com falta de respeito, falta de colaboração, de educação básica, educação científica, educação humana mesmo. Solidariedade, união, compromisso, isso quase não tem mais. Quem ainda procura essas pessoas mais vulneráveis são as igrejas”.

Enquanto isso, a associação une forças para não deixar nenhuma pessoa desamparada: “A gente faz o social e o mental, porque nós temos psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, nutricionista, especialistas que acompanham esse povo e faz com que eles não abandonem o tratamento. Faz com que eles possam, inclusive, olhar a vida de uma forma diferente”.

 

 

Talita de Lemos: “Aqui não se cuida apenas do paciente com HIV, se cuida da pessoa”

Há 21 dos 31 anos da AVHSJ, a Casa de Retaguarda Clínica tem sido um braço importante na integração e assistência às pessoas que vivem com HIV no Ceará.

Lá, com uma abordagem mais horizontal e menos hierárquica que no ambiente hospitalar, profissionais de saúde sensíveis e humanizados como a assistente social Talita de Lemos ajudam a promover mais do que qualidade de vida: “É uma casa onde a gente tem como principal ferramenta de cuidado a produção afetiva”.

“Essas pessoas às vezes passavam dois dias no corredor do hospital esperando um exame, não tinham onde ficar aqui em Fortaleza, não tinham transporte ou não tinham coragem de falar que vinham para o hospital fazer esse tratamento em função do estigma. Então a associação pensou em criar essa casa de apoio para oferecer estadia”, conta.

Talita de Lemos é assistente social voluntária da CRC e servidora pública do Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ). Além disso, ela, que é mestra em Psicologia, atua em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps)(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO Talita de Lemos é assistente social voluntária da CRC e servidora pública do Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ). Além disso, ela, que é mestra em Psicologia, atua em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps)

Em 2004, a Fundação Bill e Melinda Gates (FBMG) lançou um edital em que concorreu o Brasil todo e a associação foi uma das instituições vencedoras.

Com recursos desse prêmio, o imóvel foi comprado e montou-se esse espaço de apoio que inicialmente tinha essa finalidade, por isso possui 12 leitos.

“Mas hoje a casa tomou outro rumo. Continua vindo gente do Interior, pessoal que sai de madrugada e vem fazer exame, aí vem almoçar aqui porque o carro do município só passa no fim do dia, ou dorme aqui, ou toma um banho. Mas a gente entendeu que essa casa poderia oferecer mais, que ela poderia ser esse espaço de suporte, de apoio e convivência.”

Hoje são cerca de 350 pessoas cadastradas que participam de atividades como oficinas de artesanato, jardinagem, oficina terapêutica, roda de conversa, teatro, oficina de leitura e formação política.

“É algo que a gente consegue fazer que nenhum serviço de saúde consegue, a gente produz cuidado a partir do fortalecimento de laços. Porque cada caso que a gente acompanha aqui é uma história de vida, uma trajetória que vai para além do vírus. Que passa pelas vivências em relação a racismo, pobreza, questões de gênero, exclusões, vários estigmas que convergem mas que também divergem do HIV”, narra.

Um caso muito impactante para Talita, que também é servidora pública do Hospital São José e atua em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), foi o de uma pessoa que ela entende “que faleceu por conta do estigma”.

“O profissional de saúde disse sobre a sorologia dela na frente de uma outra pessoa que estava na sala. Essa pessoa era a empregadora dela, que a obrigou a contar para a família. Quando ela falou, a família expulsou de casa e a empregadora a demitiu.”

O girassol é símbolo de identificação das pessoas com deficiências ocultas (aquelas que não podem ser identificadas de imediato, mas têm sintomas que atingem a condição física, visual, auditiva ou neurológica de uma pessoa). Por isso, é uma imagem constantemente utilizada nos ambientes e na identidade visual da AVHSJ(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO O girassol é símbolo de identificação das pessoas com deficiências ocultas (aquelas que não podem ser identificadas de imediato, mas têm sintomas que atingem a condição física, visual, auditiva ou neurológica de uma pessoa). Por isso, é uma imagem constantemente utilizada nos ambientes e na identidade visual da AVHSJ

Sem emprego e sem família, “a vida foi tomando um outro rumo extremamente vulnerabilizado”: “Cada vez mais adoecida, tanto social quanto emocionalmente, até que o corpo não suportou mais”.

“Para nós foi um grande impacto, porque a gente acompanhou todo esse processo e não conseguiu fazer muita coisa. A gente foi tentando encontrar saídas junto com ela, mas infelizmente não foi suficiente”.

A assistente social explica que o acolhimento passa pela casa inteira, “das meninas da cozinha, que percebem quando alguém não está querendo comer, até o psicólogo que nota quando alguém está muito calado. Tudo passa pelo cuidado e olhar atento”.

“Os enfermeiros da residência multiprofissional, que é uma parceria do hospital, quando eles chegam, a primeira coisa que fazem é olhar o esquema vacinal e deixam todo mundo mais ou menos organizado”, ressalta.

Talita diz que a Casa tem começado a receber uma população idosa, o que evidencia um envelhecimento maior dessas pessoas, porém também demanda uma atenção especial: “A gente já precisa pensar em estratégias para atender essas pessoas que envelheceram, porque existem diferenças de comportamento, de gerações e a gente está atento a isso”.

“A vida se revela no cotidiano. E no cotidiano eles mostram a potência de vida que tem dentro deles, o que eu acho lindo.”

Para seus “moradores”, a Casa é um lugar de comunidade, aceitação e crescimento pessoal. Sabrina é uma das pessoas que se sentem apoiadas e fortalecidas para viverem uma vida plena apesar dos desafios impostos pelo HIV.

 

 

Sabrina: “A Casa é a família que eu nunca tive”

Durante muito tempo eu me sentia um fracassado, um derrotado, eu não era ninguém. Tentei me matar três vezes, tomei veneno.

A minha família foi a primeira que me abandonou. Até hoje eles marcam as minhas coisas para ninguém mais usar: a colher, a toalha, o lençol. Construíram um banheiro separado para eu não tomar banho no mesmo banheiro que todo mundo.

Meu irmão não me deixa nem abraçar meu sobrinho pequeno. Eu aceito numa boa, não discuto, mas dói dentro de mim. O preconceito não acabou ainda.

Somente depois de ser acolhida pela CRC foi que Sabrina passou a ser chamada pelo nome que escolheu ter(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO Somente depois de ser acolhida pela CRC foi que Sabrina passou a ser chamada pelo nome que escolheu ter

Mas eu decidi que não vou mais me esconder. A vida é minha e eu vou viver a minha vida. Vou amar e me amar. Já estou com 53 anos e vou chegar até os 100 com fé em Deus.

Tenho um namorado maravilhoso, a gente se dá super bem. Ganhei um prêmio pela minha atuação na peça que fizemos aqui e fui aplaudido, me emocionei.

Às vezes a gente não está bem, às vezes não tem com quem desabafar, mas aqui a gente tem com quem contar. E precisa contar, porque se não falar a gente explode.

"A gente vê o cuidado de várias formas. Com o respeito das identidades, com um bom dia e um abraço carinhoso." Sabrina

A casa, para mim, é minha mãe. Sou muito grato por ela e pelos amigos que fiz aqui, tanto os que ainda estão aqui quanto os que já partiram.

Até nas pessoas que vêm ministrar oficinas a gente sente um abraço gostoso, aquele abraço verdadeiro.

Aqui eles se preocupam não apenas em como a gente está, mas se preocupa como está sua medicação, como estão suas consultas. A gente vira parceiros.

Reforçam nossa imunidade, nossa qualidade de vida, a gente vê o cuidado de várias formas. Com o respeito das identidades, com um bom dia e um abraço carinhoso. As pequenas coisas são valorizadas. A Casa é a família que eu nunca tive.

 

 

Elder: “Quando estou aqui, raramente lembro que tenho HIV”

Eu passei todas as quatro décadas desde que o HIV começou a ser divulgado aqui no Brasil. Quando vinha para o hospital, descia do ônibus duas paradas antes para não me verem chegar. Se você emagrecesse já diziam que estava com Aids. Tinha que tomar coquetel, hoje é um comprimido, dois.

Algumas coisas mudaram, como a ideia de você emagrecer e a própria condenação fatal do diagnóstico. Era você saber que tinha HIV e o médico dar um, dois, três meses até morrer. E morria mesmo, porque não tinha o tratamento, a medicação e nem o conhecimento que a gente tem hoje.

Algumas coisas continuam, como o preconceito que ainda é muito forte e nos impede de viver. Eu passei por todos esses períodos da história do HIV e nesse meio tempo vim parar aqui na CRC.

Fachada da Casa de Retaguarda Clínica (CRC), no bairro Parquelândia, em Fortaleza, próximo ao Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ)(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO Fachada da Casa de Retaguarda Clínica (CRC), no bairro Parquelândia, em Fortaleza, próximo ao Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ)

Estar aqui me ajudou a crescer bastante, porque antes eu me sentia carregando um peso e isso me impedia até de demonstrar meus sentimentos.

Aqui eu aprendi a conviver e aceitar. Mas uma coisa interessante é que quando estou aqui eu raramente lembro que tenho HIV. Da porta para fora, aí sim, eu lembro.

Porque aqui a gente é cuidado, mas isso não é falado para nós em palavras. Quando estou aqui eu não lembro que sou positivo, eu sou cuidado para além do vírus.

Eu venho, tomo um café maravilhoso, aí tem uma palestra, tem artesanato, aquela coisa toda. Nada disso está necessariamente ligado ao HIV, mas no meio disso se trabalha um pouco da família, um pouco de você se aceitar. E assim eu me sinto em casa.

 

 

Lucas: “Aqui nós temos oportunidades que fora não temos. Eu descobri o talento para ensinar”

Eu sou apaixonado por esse lugar, então sou suspeito para falar. Se tiver atividade de segunda a segunda, estou aqui. Eu era atendido no Conjunto Ceará, aí lá fechou e a psicóloga que me acompanhava me indicou vir para cá. Eu vim e me apaixonei pela Casa, pelas atividades, por todo mundo.

Eu ainda não tinha sido diagnosticado quando conheci o Elder. Ele foi a pessoa que desmistificou a ideia de conviver com o HIV muito tempo antes de ter o vírus em meu corpo.

Através da história dele, eu me fortaleci. Ele namorava meu amigo e sempre me mostrava filmes e livros com a temática, a gente conversava muito. Então quando eu recebi meu diagnóstico, já foi uma realidade diferente da que ele enfrentou. De certa forma, ele me preparou.

No Brasil, o mês de dezembro marca o início de uma importante campanha de conscientização: o Dezembro Vermelho. A iniciativa busca destacar a importância do diagnóstico precoce da síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids) e de outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs)(Foto: Karyne Lane/O POVO)
Foto: Karyne Lane/O POVO No Brasil, o mês de dezembro marca o início de uma importante campanha de conscientização: o Dezembro Vermelho. A iniciativa busca destacar a importância do diagnóstico precoce da síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids) e de outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs)

O que me encanta aqui é a possibilidade que a gente tem de crescer como ser humano. Isso para mim é enriquecedor, contribui para a minha formação mesmo. Tem até uma frase que eu gosto de colocar, não sei se é uma metáfora, mas a Casa para mim é como um espelho. Eu consigo me ver aqui.

Eu não teria dinheiro para pagar terapia, e aqui eu tenho de graça. Aqui tem cineclube, a gente assiste um filme e depois debate, tem oficinas artísticas. Então sempre que estou sem nada para fazer em casa eu venho para cá.

"A Casa, para mim, é como um espelho. Eu consigo me ver aqui" Lucas

Alguns colegas sentiram necessidade de voltar a estudar, então eu comecei a dar curso para eles e descobri talento para ensinar. Essa é minha forma de contribuir. De retribuir, na verdade.

 

 

Como ajudar ou tornar-se voluntário(a)?

Além dos donativos que a AVHSJ recebe via sociedade civil, algumas parcerias institucionais têm ajudado a manter o trabalho da associação.

É o caso de projetos apoiados pela iniciativa privada, através de empresas como a Enel, ou programas como o Mesa Brasil Sesc, promovido pelo Serviço Social do Comércio (Sesc), braço social do Sistema Fecomércio/CE.

A entidade também é beneficiária do Ceará sem Fome, programa do Governo do Ceará para combater a insegurança alimentar. Ainda há doações que chegam pela Receita Federal, fruto de mercadorias apreendidas ou abandonadas.

Apesar de toda a logística para captar e gerir essas contribuições, a associação depende da doação de tempo (através do voluntariado) e de produtos importantes para o trabalho contínuo que é realizado com os pacientes, como itens de higiene, roupas e calçados.

Pessoas interessadas podem entrar em contato pessoalmente ou pelos telefones disponíveis a seguir. Também é possível ajudar com valores através do Pix da instituição, cuja chave é o CNPJ: 725379470001-47.

É possível, ainda, cadastrar a AVHSJ como instituição beneficiada no Sua Nota Tem Valor, programa de arrecadação da Secretaria da Fazenda do Ceará (Sefaz/CE). 


"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"

 

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