Na academia, no ônibus, no trabalho; sutis e pequenos para os mais discretos, grandes e coloridos para aqueles cheios de estilo, os fones de ouvido são companheiros inseparáveis — e sair de casa sem eles pode arruinar o dia de algumas pessoas ou fazê-lo ser bem difícil.
Seja para isolar ruídos externos enquanto trabalha, estuda ou pratica exercícios, assistir séries ou filmes, escutar podcasts ou ouvir músicas, esses acessórios tornaram-se muito populares nos últimos anos — principalmente durante e após a pandemia de Covid-19, quando milhares de pessoas recorreram a eles para estudar, trabalhar e se entreter.
Em um mundo a cada dia mais barulhento e repleto de estímulos, esses dispositivos fazem a cabeça sem distinção da idade: da mais grisalha na biblioteca à mais descolorida no videogame. Mas o uso crescente desses itens entre crianças e adolescentes tem preocupado especialistas, que alertam para a necessidade de atenção e cuidados.
Isso porque já se sabe que o tempo prolongado e a intensidade exagerada do volume podem causar perda auditiva precoce em adultos — um problema antes associado ao envelhecimento que deixou de ser assunto de gente grande e passou a envolver, também, essas pessoas em desenvolvimento.
Um som muito intenso pode levar à fadiga do músculo estapédio, responsável por contrair quando há um ruído forte para proteger as estruturas da orelha interna (local onde o som é codificado e começa a transmissão para o cérebro).
No caso de crianças e adolescentes, o volume da música ou de qualquer outro conteúdo sonoro deve ser mais baixo em comparação aquele que um adulto escuta por conta da diferença de tamanho do canal auditivo.
Conforme explica ao O POVO+ a médica otorrinolaringologista Renata Cantisani, presidente do departamento científico de otorrinolaringologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), os fones de ouvido em si não causam perda de audição diretamente. No entanto, o uso prolongado e com volume exagerado pode, sim, ser prejudicial à saúde.
“É a intensidade que leva à lesão das células do ouvido interno. Dessa forma, se o volume for adequado, não há risco. Por outro lado, sons de alta intensidade no ambiente, brinquedos sonoros sem certificação e outros também podem causar perda auditiva”, diz.
Cantisani, que é professora da faculdade de medicina da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que “o uso dos fones desconecta a pessoa do ambiente, fazendo com que isso leve-a a um isolamento maior e suas consequências”.
“O aparelho auditivo está formado desde a vida intrauterina e, portanto, a exposição a sons intensos é sempre lesiva. O que é desenvolvido ao longo da infância e adolescência são as conexões do ouvido com o cérebro, o que chamamos de processamento auditivo central. Por isso os estímulos com outros, conversas e música, desde que na intensidade adequada, são importantes”, defende a médica.
A otorrino afirma que “não existe uma idade certa” para que pais ou responsáveis possam introduzir o uso de fone de ouvido no dia a dia de seus filhos, mas orienta que “as crianças precisam se conectar com o ambiente e com as pessoas. Todo desenvolvimento depende do estímulo e de exemplos que não estão nas telas. Por isso, do ponto de vista do desenvolvimento, isso (usar fone no dia a dia) não é o ideal”.
“O permitido de intensidade sonora, a grosso modo, sem lesão auditiva, é 80 decibeis por 8 horas, 88 decibeis por 4 horas, 100 decibeis por 15 minutos”, recomenda.
E acrescenta: “É muito provável que essa se torne uma questão de saúde pública, se é que já não é. Precisamos estar presentes com nossas crianças. Os pais também devem ser exemplos e reduzir o tempo de telas, pois, como eu disse, aprendemos por exemplo e imitação. Todos precisamos aprender os limites”.
A avaliação periódica de um otorrinolaringologista ou fonoaudiólogo pode ajudar a identificar a perda auditiva em fase inicial, de modo que usuários frequentes de fones de ouvido (o que inclui crianças e adolescentes) devem ser incentivados a realizar exames auditivos regularmente.
Além dos cuidados com a exposição aos ruídos intensos dos fones de ouvido, é necessário ficar atento à higiene dos dispositivos. No caso dos auriculares, por exemplo, a ausência de limpeza pode acumular cera no aparelho e bloquear a saída do som. E isso, muitas vezes, leva a pessoa a aumentar mais o volume para escutar com clareza.
A perda auditiva causada pelo chamado ruído recreativo já é tratada como caso de saúde pública e motivo de alerta. Para evitar uma geração marcada pela surdez, especialistas apontam que a solução passa, principalmente, pela consciência de cada um.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 1 bilhão de jovens no mundo correm grande risco de desenvolver problemas auditivos devido à exposição prolongada e excessiva a sons em alto volume por meio dos fones de ouvido.
No mundo, 1,5 bilhão de pessoas já possuem algum grau de perda auditiva, projeta a OMS. Entre pesquisadores e especialistas, a expectativa é de que esse número cresça nos próximos anos.
A estimativa é de que uma em cada quatro pessoas viverá com algum grau de perda auditiva até 2050, risco que deve atingir metade da população entre 12 e 35 anos, com prejuízos cumulativos provocados pelos novos hábitos.
Em relação às crianças, conforme alerta a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), essa exposição frequente e duradoura de a sons amplificados em alta frequência é capaz de acarretar em perdas auditivas progressivas que podem levar à surdez — uma condição irreversível, já que compromete as células ciliadas do ouvido interno, que não se regeneram.
A entidade ressalta que o nível confortável de ruídos para adultos é de 80 decibeis (dB), enquanto que para crianças e adolescentes o nível seguro é de, no máximo, 70 dB.
Ruídos acima de 80 dB são considerados nocividade auditiva, enquanto o limiar da dor auditiva é estimado em torno de 120 a 140 dB.
O ouvido humano está habituado a ouvir sons com segurança até 80 decibeis.
Acima disso, o som já é considerado intenso e, a depender do tempo de exposição, pode levar a alguma alteração na audição.
Para se ter uma ideia, o volume de 80 decibeis é atingido, por exemplo, quando você está em um restaurante onde todos do local conversam ao mesmo tempo.
Um relatório publicado em outubro de 2023 pela Academia Americana de Pediatria (AAP) indica que a exposição excessiva ou prolongada ao som alto pode resultar em zumbido ou hiperacusia, uma condição na qual os barulhos do dia a dia podem parecer insuportavelmente altos e dolorosos.
A preocupação dos pesquisadores não é só com o volume, mas também com quanto tempo as crianças ficam expostas ao barulho e com que frequência.
Ruídos comuns do dia a dia, como o do trânsito ou uma televisão ligada ao fundo também podem perturbar o sono, a aprendizagem e a qualidade de vida dessas pessoas em desenvolvimento.
Por isso, os pediatras norte-americanos responsáveis pelo estudo aconselham que, ao usar um fone de ouvido, a criança deve manter um volume no qual seja capaz de ouvir quando alguém fala com ela. O ideal é também usar fones de ouvido apenas por curtos intervalos, fazendo pausas.
Como evitar prejuízos à saúde auditiva
Além disso, para pais ou responsáveis que forem levar seus filhos a festivais e shows, a AAP recomenda o uso de protetores de ouvido, especialmente em bebês.
Espetáculos de música podem ter até 115 decibeis de volume sonoro, 10 acima do limite da audição humana e apenas cinco a menos do que o som da decolagem de um avião, o que pode causar danos imediatos aos ouvidos.
Para barulhos ambientes, os pediatras sinalizam que está alto demais se a pessoa é obrigada a levantar a voz para falar com quem esteja a um braço de distância.
A cóclea, que é o órgão sensorial periférico da audição, inicia seu desenvolvimento na 20ª semana intra uterina e atinge a sua maturação aos 2 anos de vida. A culminância desse desenvolvimento acontece com a aquisição da linguagem oral.
Por isso é tão importante que, nesse período, o estímulo da audição aconteça de forma eficiente e assertiva. Todo o desenvolvimento de fala e linguagem acontece a partir de um órgão sensorial saudável e que responda de forma eficiente aos sons ambientais.
Uma boa saúde auditiva na infância é importante para que a criança consiga desenvolver-se. Isso porque a audição representa parte importante do processo de comunicação e, quando não acontece de forma correta, diversos outros pontos podem ser afetados — como a fala, por exemplo.
Sintomas de alterações auditivas em crianças
No caso de adolescentes, a má utilização dos fones pode diminuir a atenção e a interação, além de favorecer acidentes em casa ou na rua.
A publicitária Mariana Cordeiro é mãe da escadinha Victor, Gabriel e Cauê, de 9, 10 e 11 anos, respectivamente. Os três utilizam fone de ouvido diariamente enquanto se revezam entre os dispositivos eletrônicos que possuem: um computador, um tablet e um videogame.
Antes, o volume era o mais alto possível. Após a intervenção da mãe, as crianças diminuíram o tempo de uso e Mariana controla a altura do som nos aparelhos.
“Até quem estava ao redor ouvia. Agora eu supervisiono e controlo. Quando peço para abaixar e não obedecem, infelizmente preciso tirar o aparelho por um tempo”, conta a publicitária.
No cotidiano clínico, a fonoaudióloga Fernanda Sampaio percebe que “muitos adolescentes e, com o passar do tempo, crianças muito mais novas, têm apresentado queixas como zumbido e até mesmo perda auditiva em frequências isoladas decorrente do uso do fone de ouvido, principalmente em uma orelha. Por hábito, esses jovens têm utilizado o fone em uma orelha e, dessa forma, o comprometimento acontece somente na orelha com mais exposição”.
Professora do curso de Fonoaudiologia da Universidade de Fortaleza (Unifor), Sampaio atesta o aumento de jovens que procuram o serviço de fonoaudiologia para a realização de exames após exposição prolongada a sons, especialmente após festas, micaretas “ou mesmo por permanecerem próximos ao que conhecemos como paredões durante shows”.
No início, a perda auditiva somente pode ser verificada após realização da audiometria, porque nessa fase, segundo a fonoaudióloga, as frequências mais atingidas são as agudas: “Na maioria das vezes, somente após a realização do exame é que os pais ficam cientes da perda”.
A audiometria é responsável por analisar a capacidade de captação do som em diferentes frequências e intensidades. Através dela é possível identificar se existe perda de audição e qual o seu tipo e grau. O exame é realizado em uma cabine acústica na qual o paciente é orientado a fazer um sinal todas as vezes que escutar o estímulo auditivo e repetir palavras ditas pelo fonoaudiólogo através do fone de ouvido.
Sampaio lembra que podem ser várias as causas de perda auditiva em crianças, desde caráter genético ou congênito, ou seja, durante a gravidez ou nascimento, até problemas que acometem posteriormente, durante o desenvolvimento do indivíduo.
“É de suma importância a realização de testes que possam detectar precocemente a perda auditiva com o objetivo de tratar ou reabilitar, dependendo do tipo e grau dessa perda. Um importante teste é o exame das Emissões Otoacústicas Evocadas Transientes, conhecido popularmente como teste da orelhinha. Toda criança ainda na maternidade deve realizá-lo para que, caso seja identificada alguma alteração, possa ser submetida a avaliação complementar e acompanhamento”, destaca.
Enquanto sociedade, Fernanda acredita que é necessário promover campanhas de orientação “principalmente nas escolas, para ajudar no processo de conscientização de crianças e jovens”.
Na avaliação da especialista, também é importante “orientar quanto ao uso correto de fones de ouvido e aos prejuízos decorrentes da exposição a sons muito altos para evitar danos futuros e, muitas vezes, irreversíveis”.
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"