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Trabalhos manuais: por que jovens estão trocando telas por cerâmica e crochê?
Reportagem Especial

Trabalhos manuais: por que jovens estão trocando telas por cerâmica e crochê?

Em meio ao excesso de telas e à ansiedade cotidiana, jovens redescobrem nas práticas manuais um caminho de bem-estar, foco e reconexão com o presente

Trabalhos manuais: por que jovens estão trocando telas por cerâmica e crochê?

Em meio ao excesso de telas e à ansiedade cotidiana, jovens redescobrem nas práticas manuais um caminho de bem-estar, foco e reconexão com o presente
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Num tempo em que vídeos duram 30 segundos e o “scroll infinito” comanda os dedos, como uma geração hiperconectada faz para respirar? Para alguns jovens, a resposta tem surgido em atividades que atravessam séculos: moldar barro, combinar cores, entrelaçar fios.

Essa necessidade de “desligar” está longe de ser individual. Segundo a Universidade de Oxford, a superexposição às redes sociais está diretamente associada ao aumento de sintomas como ansiedade, tristeza e dificuldade de foco entre jovens.

Oficina de crochê realizada no bloco CT, no Campus do Pici (UFC)(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Oficina de crochê realizada no bloco CT, no Campus do Pici (UFC)

Um levantamento da Fiocruz, publicado sob o título “Adolescência e suicídio: um problema de saúde pública”, aponta ainda que a pandemia de covid-19 agravou drasticamente os quadros de sofrimento psíquico entre adolescentes brasileiros, com destaque para o excesso de telas como fator de risco.

Em Fortaleza, espaços como ateliês e encontros têm se tornado refúgios para jovens que buscam se reconectar com o presente e com os outros. No dia 31 de maio, o Projeto Mulheres em C&T – Ciência e Tecnologia, da Universidade Federal do Ceará (UFC), realizou uma oficina de crochê reunindo estudantes de diferentes cursos para partilhar fios, pontos e vivências.

A cena era simples, mas simbólica: uma sala cheia de mulheres jovens, agulhas nas mãos e sorrisos compartilhados; um gesto coletivo de desaceleração.

 

Onde fazer atividades manuais em Fortaleza

 

 

Crochê em grupo: encontros universitários viram refúgio e locais de pertencimento

A professora Hilma Vasconcelos, do curso de Física e uma das idealizadoras da oficina, destaca o valor das práticas manuais no contexto acadêmico, sobretudo para estudantes das ciências e engenharias: “Atividades como crochê, marcenaria, tricô ou cerâmica melhoram a coordenação motora, a habilidade espacial, treinam a resiliência e o pensamento lógico. São habilidades fundamentais para os jovens que querem ser cientistas ou engenheiros”.

Para ela, manter a atenção dos alunos em tempos de excesso de estímulo digital é um desafio crescente. “A gente brinca que a habilidade mais necessária para um aluno de Engenharia em 2025 é conseguir ler um capítulo inteiro de um livro-texto.”

Na fala de uma das alunas da professora Hilma, o desabafo resume o espírito dessa nova busca: os jovens têm procurado essas atividades “para não endoidar”.

Jovens retomam atividades manuais para combater ansiedade(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Jovens retomam atividades manuais para combater ansiedade

Yasmin Oliveira, 21 anos, aluna de Arquitetura e Urbanismo, foi uma das participantes do ateliê. Para ela, o crochê ajuda a desenvolver a coordenação motora, a criatividade e também é um antídoto para o estresse e é “uma ótima forma de realmente mudar o foco dessa questão tecnológica que a gente está vivendo.”

Letícia Martins, 23, estudante de Letras – Francês, conta que começou no crochê influenciada pela mãe.

“Ela sempre fazia coisas pra mim e acabei me interessando por essa arte. Hoje vejo o quanto isso ajuda a relaxar e também a criar laços.” A amiga Maria Clara, 20, aluna de Letras – Italiano, compartilha do sentimento: “Quando vi que ia ter o evento aqui, achei muito legal e quis participar. Muitas mulheres da minha família também fazem crochê, então tem esse valor afetivo.”

O crochê, antes tida como uma atividade da senioridade, conquista público mais jovem(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS O crochê, antes tida como uma atividade da senioridade, conquista público mais jovem

Além da concentração exigida, o processo manual oferece outro tipo de recompensa. “Quando você começa a ter prática e vê a forma da coisa se formando, vem a alegria de querer fazer até o final, de produzir mais peças. É uma sensação de recompensa”, afirma Maria Clara.

As jovens também destacaram o impacto de fazer crochê em grupo: “Nós três somos melhores amigas. Vir aqui e ver várias garotas fazendo a mesma coisa é muito fofo. Esse senso de comunidade me faz muito bem”, destaca Yasmin.

 

 

Um ponto por vez contra a ansiedade

“Sou uma pessoa que sempre está usando telas. Tem vezes que uso o celular e o computador ao mesmo tempo. Quando estou fazendo crochê, no máximo uso uma tela para assistir algo ou escutar música. Mas minha atenção está ali, no ponto, na linha, na peça.”

A fala é de Anna Beatriz Nogueira, de 22 anos, uma entre tantos jovens que vêm trocando o tempo das telas pela imersão em práticas manuais como crochê, bordado, cerâmica e pintura.

A estudante de Psicologia começou no crochê em 2023, durante um período em que havia trancado a faculdade. Já gostava de trabalhos manuais e buscava algo que a ajudasse a se distrair sem depender das redes sociais.

"A parte mais satisfatória no crochê é, no final, ter um objeto físico e material que eu posso tocar, sentir e usar, que eu mesma fui capaz de fazer.", diz Beatriz Nogueira ao expor suas produções.(Foto: Reprodução / Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução / Arquivo pessoal "A parte mais satisfatória no crochê é, no final, ter um objeto físico e material que eu posso tocar, sentir e usar, que eu mesma fui capaz de fazer.", diz Beatriz Nogueira ao expor suas produções.

“Acho que muitas pessoas não entendem essa febre dos jovens retomando hobbies que costumam ser estereotipados como ‘de gente velha’, mas vejo muita gente fazendo isso como uma forma de relaxar”, conta.

Além de participar de comunidades online sobre crochê, com um servidor no Discord com mais de 6 mil membros, Anna vê na prática uma forma de exercitar a criatividade e a autonomia: “Depois que você aprende o básico, começa a inventar as próprias receitas ou adaptar tutoriais. É um mundo infinito.”

Mesmo já tendo pensado em vender as peças, optou por manter o crochê como algo livre de obrigações: “Não quero que vire mais uma cobrança. Gosto da sensação de terminar algo com as próprias mãos. Significa que sou capaz”.

 

 

O toque da argila: cerâmica como terapia sensorial

“Percebo que as pessoas estão buscando atividades que as tirem das telas. A cerâmica exige que você esteja presente. O tempo passa diferente. Você precisa estar ali, atento ao que está moldando, sentindo o material, respeitando o processo do secar, do torral, da espera”, explica Clarice Hortêncio, 24 anos.

A ceramista descobriu a argila após a pandemia de covid-19 e não largou mais. Professora de artes e pintura, ministra oficinas para crianças e adolescentes e vê, de perto, o impacto que esse contato físico tem no comportamento emocional dos participantes.

Oficina de cerâmica, em outubro de 2024 na Universidade Federal do Ceará. (Foto: Reprodução / Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução / Arquivo pessoal Oficina de cerâmica, em outubro de 2024 na Universidade Federal do Ceará.

Segundo ela, o tempo mais lento, quase ritualístico, ajuda adultos e crianças a desenvolverem foco, concentração e calma. “É um trabalho cuidadoso. Você não pode fazer correndo. E isso muda a forma como você lida com o tempo. A gente vive na urgência — e a cerâmica desafia essa urgência”, afirma.

O processo de presença plena também é defendido por pesquisadores da Harvard Medical School, que destacam como atividades manuais promovem um estado de “atenção focada” semelhante à meditação, contribuindo para a redução do estresse e o aumento do bem-estar.

Clarice também destaca o poder social dessas oficinas: “As crianças se ajudam, dão ideias umas às outras, se divertem. Voltam a criar juntas. Para os adultos, também é um reencontro consigo e com os outros.”

 

 

Entre nós e argilas: o fio da saúde mental

Nos últimos anos, essas atividades, muitas vezes associadas a um público mais velho ou a tempos antigos, ganharam nova roupagem entre a geração Z. Além da estética, há algo mais profundo acontecendo: busca por bem-estar, foco e desconexão saudável.

Segundo uma pesquisa realizada entre 2019 e 2020 pela Universidade Anglia Ruskin, no Reino Unido, com mais de 7.000 pessoas, praticar atividades manuais — como tricô, cerâmica, pintura ou bordado — pode aumentar a felicidade e a satisfação com a vida em maior grau do que ter um emprego.

Segundo psicóloga Larissa Malveira, o trabalho com as mãos ajuda a reconectar os sentidos — tato, olfato, visão — com o estado emocional.(Foto: Reprodução / Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução / Arquivo pessoal Segundo psicóloga Larissa Malveira, o trabalho com as mãos ajuda a reconectar os sentidos — tato, olfato, visão — com o estado emocional.

O estudo, publicado na Frontiers in Public Health, concluiu que os efeitos são ainda mais positivos quando essas práticas fazem parte da rotina semanal.

Para a psicóloga clínica Larissa Malveira, especialista na abordagem da terapia Gestalt, esse movimento dos jovens em direção às práticas manuais revela um desejo profundo de se voltar ao corpo e à experiência concreta.

“Com o tempo, percebi que fazer macramê me regulava emocionalmente. Era ali que eu sentia que conseguia me concentrar, perceber minha ansiedade e, aos poucos, desacelerar”, comenta.

 

Larissa Malveira é psicoterapeuta da abordagem Gestalt; a abordagem, que é centrada no presente, ajuda o paciente a focar sua situação atual, em vez de recapitular os fatos do passado.(Foto: Reprodução / Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução / Arquivo pessoal Larissa Malveira é psicoterapeuta da abordagem Gestalt; a abordagem, que é centrada no presente, ajuda o paciente a focar sua situação atual, em vez de recapitular os fatos do passado.

Ela mesma começou a produzir peças artesanais logo após a graduação, quando enfrentava dificuldades para se inserir no mercado de trabalho. “Fiz bolsas de palha com alça de macramê. Participei de feiras e eventos culturais. O artesanato foi um processo de reencontro comigo mesma.”

Hoje, atuando exclusivamente na clínica, Larissa continua usando as práticas manuais como recurso terapêutico, inclusive com pacientes. “O fazer manual convida à presença. Muitas vezes, você começa a moldar, bordar ou tecer, e aquilo que está guardado vem à tona. Vem uma memória, uma emoção, uma clareza que antes não aparecia.”

Segundo ela, o trabalho com as mãos ajuda a reconectar os sentidos — tato, olfato, visão — com o estado emocional: “É uma forma de escuta silenciosa, mas poderosa. Você entende o que sente ao tocar a textura da linha, ao ver uma cor, ao fazer um nó. E isso pode trazer alívio, bem-estar e presença.”

Na peça de Larissa expressa o que disse: "Fiz bolsas de palha com alça de macramê. O artesanato foi um processo de reencontro comigo mesma." (Foto: Reprodução / Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução / Arquivo pessoal Na peça de Larissa expressa o que disse: "Fiz bolsas de palha com alça de macramê. O artesanato foi um processo de reencontro comigo mesma."

A fala de Larissa encontra eco em dados da Fiocruz, que em 2023 divulgou um estudo alarmante: o número de adolescentes com sintomas de ansiedade e depressão já ultrapassou o de adultos no Brasil.
Entre as causas, os pesquisadores apontam a pandemia, a ruptura dos laços comunitários e o excesso de exposição a telas e redes sociais.

“Hoje, o celular entrou no campo do vício. Claro que não é para todo mundo, mas muitos jovens já não conseguem mais viver sem ele. Quando são privados disso — como em escolas, por exemplo — voltam a ter contato com o tédio. E é aí que o ócio criativo aparece. O que fazer com o tempo que sobra?”, questiona a psicóloga.

É nesse espaço que entram os trabalhos manuais. “Eles exigem tempo, repetição, processo. O processo reconecta o jovem ao corpo. Ele sente o tempo passar, percebe a própria ansiedade e encontra, aos poucos, um modo de lidar com isso.”

Em um mundo onde tudo é digital, veloz e descartável, fazer com as mãos virou uma forma de permanecer — em si, no presente, no real(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Em um mundo onde tudo é digital, veloz e descartável, fazer com as mãos virou uma forma de permanecer — em si, no presente, no real

Quando perguntada sobre o que mais gosta no crochê, Anna Beatriz respondeu sem hesitar: “O melhor é, no final, ter um objeto físico que eu posso tocar, usar e dizer: fui eu que fiz.” Para Clarice, a sensação é semelhante: “A argila me ensina que as coisas não precisam ser perfeitas, só precisam ser vividas.”

Ambas mostram que o resgate das práticas manuais entre jovens é, acima de tudo, um movimento de retorno ao que é simples, concreto e humano. Em um mundo onde tudo é digital, veloz e descartável, fazer com as mãos virou uma forma de permanecer — em si, no presente, no real.

Larissa Malveira ainda acentua que o retorno aos trabalhos manuais não é moda vintage, nem hobby de avó; a arte se enquadraria como um grito silencioso por tempo, presença e cuidado em uma era de urgências vazias. É, ainda, uma prova de que desacelerar pode ser o caminho mais radical de todos.

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