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Mulheres "coca-cola": amor em tempos de guerra na Fortaleza dos anos 40
Reportagem Especial

Mulheres "coca-cola": amor em tempos de guerra na Fortaleza dos anos 40

Presença de soldados norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial deixou marcas na Cidade — algumas não tão conhecidas, como a história das "coca-colas": mulheres que desafiaram a moral e os bons costumes de uma sociedade que as reduziu a símbolos descartáveis de um momento histórico. Oitenta anos depois do fim da guerra, O POVO+ relembra fenômeno

Mulheres "coca-cola": amor em tempos de guerra na Fortaleza dos anos 40

Presença de soldados norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial deixou marcas na Cidade — algumas não tão conhecidas, como a história das "coca-colas": mulheres que desafiaram a moral e os bons costumes de uma sociedade que as reduziu a símbolos descartáveis de um momento histórico. Oitenta anos depois do fim da guerra, O POVO+ relembra fenômeno
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Nos anos 1940, enquanto as forças alemãs invadiam a Europa ocidental, a Segunda Guerra Mundial parecia um drama distante para a pequena Fortaleza, que começava a modernizar-se em meio à atmosfera ainda bucólica da belle époque "A Fortaleza da Belle Époque, entre 1880 e 1930, foi um período de intensa transformação na capital cearense, influenciada pelos ideais europeus, principalmente franceses, que impactaram a arquitetura, o modo de vida e os hábitos da população. A Cidade adotou um estilo de vida mais sofisticado, com a construção de sobrados, palacetes e mansões, além de novos espaços de lazer como o Passeio Público." .

Mas a pacata cidade de pouco mais de 180 mil habitantes viu seu cotidiano mudar ao tornar-se uma peça estratégica no tabuleiro militar global e abrigar uma base aérea utilizada pelos Estados Unidos, ponto de apoio importante para os Aliados "Os Aliados na Segunda Guerra Mundial foram um grupo de países que se uniram para lutar contra as potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Os principais membros dos Aliados eram o Reino Unido, França, União Soviética e Estados Unidos. A China também foi um importante aliado." no Atlântico Sul "O Atlântico Sul é a porção do Oceano Atlântico localizada no Hemisfério Sul, ou seja, ao sul do Equador." . A partir daí, a população fortalezense experimentou uma efervescência política e cultural inédita.

Com os soldados americanos, desembarcaram também novos costumes, produtos e afetos — entre eles, a Coca-Cola, refrigerante símbolo do estilo de vida norte-americano e apelido dado, de forma pejorativa, às mulheres que se relacionavam com os estrangeiros.

Soldados americanos dançando no Estoril com as coca-colas(Foto: Acervo de Will Nogueira)
Foto: Acervo de Will Nogueira Soldados americanos dançando no Estoril com as coca-colas

Numa época em que se namorava para casar, o sotaque novo e o tipo físico atraente despertaram o interesse dessas moças que, até então, pouco saíam dos salões da tradição. Foi nesse tempo que surgiu o nome sussurrado com reprovação e curiosidade: as mulheres coca-colas.

As jovens se aproximaram dos soldados estrangeiros, frequentaram festas no clube onde hoje é o Estoril, beberam o refrigerante gelado — uma novidade naquele tempo — e viveram intensamente a presença norte-americana.

Não era só por diversão; para muitas delas, aquele contato abria janelas para o mundo, desafiava a rotina vigiada e prometia, mesmo que por algumas horas, uma liberdade rara.

Os norte-americanos não trouxeram somente o hábito de tomar Coca-Cola para Fortaleza, também apresentaram novidades em relação à moda da época — como o hábito de usar silaque, uma blusa de tecido leve(Foto: Arquivo OPOVODOC)
Foto: Arquivo OPOVODOC Os norte-americanos não trouxeram somente o hábito de tomar Coca-Cola para Fortaleza, também apresentaram novidades em relação à moda da época — como o hábito de usar silaque, uma blusa de tecido leve

Mas a sociedade não perdoou: o apelido virou rótulo, o rótulo virou julgamento. Chamadas de interesseiras, imorais, traidoras, essas mulheres foram empurradas para um lado silencioso da história.

Nesta reportagem, voltamos aos anos 1940 para escutar o que quase não foi registrado.

Porque entender o fenômeno das coca-colas é também revisitar o desejo, o medo e os limites que ainda cercam as escolhas femininas — ontem e hoje.

 

 

Vanguardistas, não vulgares

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a retirada das tropas americanas de Fortaleza, por volta de 1945, o fenômeno das chamadas “coca-colas” começou a se transformar.

Ainda presentes nas ruas da Cidade, essas jovens já não frequentavam mais os bailes da base militar, mas continuavam a atrair olhares e comentários por onde passavam.

Em Royal Briar: a Fortaleza dos anos 40, o escritor e jornalista Marciano Lopes recupera a memória desse grupo de mulheres que rompeu padrões sociais e comportamentais.

O epíteto "Coca-Cola" surgiu pelo privilégio que essas meninas tinham de beber o famoso refrigerante, novidade na Fortaleza dos anos 1940(Foto: Arquivo OPOVODOC)
Foto: Arquivo OPOVODOC O epíteto "Coca-Cola" surgiu pelo privilégio que essas meninas tinham de beber o famoso refrigerante, novidade na Fortaleza dos anos 1940

Ele registra que o apelido surgiu pelo fato de elas “terem o privilégio de tomar o famoso refrigerante americano que, àquela época, só se conseguia saborear através dos filmes made in Hollywood”.

De fato, as primeiras garrafas da bebida chegaram ao Brasil pelo Rio de Janeiro e Recife no início da década de 1940, quando foram construídas pequenas fábricas apenas para servir aos soldados norte-americanos.

Era uma maneira de fazê-los sentir em casa durante os tempos de combate, já que a Coca-Cola simbolizava a presença cultural dos Estados Unidos em qualquer aparição.

Em Fortaleza, até então, o famoso refrigerante ainda era apenas publicidade de cinema para os jovens da urbe.

Aos poucos, porém, o xarope caramelado começou a ser experimentado pelas moças da sociedade fortalezense.

Isso porque algumas delas passaram a ser convidadas para as reuniões nas areias em frente à sede do United States Office (USO), clube instalado numa suntuosa residência à beira-mar.

Lá funciona, atualmente, o Estoril — sede da Secretaria Municipal do Turismo de Fortaleza (Setfor), na Praia de Iracema.

Os convites dos americanos se estendiam para sessões de dança e música na antiga Praia do Peixe.

Nem todos sabem e pode ser até difícil de imaginar, mas ali onde hoje há um enorme calçadão que leva à Ponte dos Ingleses formavam-se piscinas naturais devido ao avanço das marés que eram pouco frequentadas até então; na formosa Vila Morena existiam apenas algumas casas de veraneio.

Piscina formada com o avanço das marés na Praia de Iracema já na década de 1960(Foto: Arquivo Nirez)
Foto: Arquivo Nirez Piscina formada com o avanço das marés na Praia de Iracema já na década de 1960

Informações colhidas no livro “A história da aviação no Ceará” indicam que os soldados norte-americanos achavam a sede da USO um lugar agradável, com uma brisa convidativa, onde dava para tomar um ótimo banho de mar em uma água deliciosamente quente, sob um sol escaldante, para depois apreciar uma deliciosa e diferente água de coco.

Foi nesse ambiente de natureza praiana que os militares começaram a se relacionar com as moças fortalezenses — um vínculo que causava reações variadas entre os moradores da Cidade.

A residência utilizada pelos americanos, um verdadeiro palacete, havia sido construída em 1920 pelo rico coronel pernambucano José Magalhães Porto, que morava na Cidade e teria sido quem a denominou inicialmente de Vila Morena.

O lugar passou a se chamar Estoril porque foi transformado num cassino e havia um famoso cassino em Portugal com o mesmo nome.

Os militares ali jogavam, bebiam e dançavam abraçados às namoradas, convidadas de honra das festas que pareciam não ter fim.

“Nas madrugadas, de longe se viam as luzes e se escutavam os cantos e os risos de alegria esfuziantes de uma juventude que queria, antes de tudo, viver”, descreve Marciano Lopes.

O escritor relata que provavelmente houve casamentos entre essas moças e soldados, ou casos de gravidez e abandono.

Ele atribui a essa experiência “o costume de batizar crianças com sobrenomes ianques, usados aqui como sobrenomes: Lincoln, Washington, Roosevelt... Os cabelos louros e olhos azuis”.

O prédio da Estoril abrigava o USO, clube dos americanos em Fortaleza durante a Segunda Guerra Mundial(Foto: Reprodução/Museu da Fotografia de Fortaleza)
Foto: Reprodução/Museu da Fotografia de Fortaleza O prédio da Estoril abrigava o USO, clube dos americanos em Fortaleza durante a Segunda Guerra Mundial

Em Royal Briar, ao falar sobre o estranhamento e a censura vindos de setores conservadores da sociedade, Marciano diz que “as velhas e respeitáveis matronas, guardiãs da sagrada moral cristã, resmungavam, olhavam de esguelha, condenavam as meninas ao fogo eterno do inferno e até benziam-se: T’esconjuro, filhas do mal”.

Nas palavras dele, “as crianças ficavam boquiabertas ante aqueles mulheraços, verdadeiras afrodites, desafiando os costumes e a chamada moral vitoriana. ‘Mãe, que moça linda!’, e a mãe puxando o rebento pela orelha: ‘Não olha! É uma ‘coca-cola!’”.

O memorialista contextualiza que, nos anos 1940, Fortaleza “era uma cidade muito provinciana, onde tudo era ditado pela Igreja Católica. Era de se esperar esse tipo de reação da sociedade”.

Abrigo Central, que reunia casas comerciais no coração da Praça do Ferreira em 1949. Após um incêndio, foi demolido(Foto: Reprodução/Museu da Fotografia de Fortaleza)
Foto: Reprodução/Museu da Fotografia de Fortaleza Abrigo Central, que reunia casas comerciais no coração da Praça do Ferreira em 1949. Após um incêndio, foi demolido

Um dos poucos a registrar o assunto, Lopes é autor de uma crônica na qual relatou a passagem das coca-colas na história da Fortaleza em tempos de guerra; obra que foi incorporada a Royal Briar.

O jornalista só chegou à Capital dois meses depois que a guerra havia acabado, mas ainda havia oficiais norte-americanos por aqui.

Suas lembranças esboçam dois lados da história: uma remete à imagem de moças bem vestidas e maquiadas, que desfilavam pelas ruas da Cidade; outra retrata a discriminação que essas mesmas garotas recebiam de uma parcela da sociedade.

Parque da Liberdade na década de 1920(Foto: Reprodução/Museu da Fotografia de Fortaleza)
Foto: Reprodução/Museu da Fotografia de Fortaleza Parque da Liberdade na década de 1920

“Eu estava parado em frente ao Cine Majestic e observava duas senhoras conversando. Uma delas segurava uma garotinha pela mão. A menina viu uma moça e apontou. A mãe olhou, identificou que era uma coca-cola e, imediatamente, vedou os olhos da criança e disse para que não olhasse mais. Elas não eram vaiadas na rua, mas ganhavam o desprezo da sociedade”, recorda o memorialista.

As denominações depreciativas não foram exclusividade de Fortaleza; em Natal, outro ponto estratégico durante a Segunda Guerra, aconteceu situação semelhante: os norte-americanos promoviam eventos na base de Parnamirim Field, as famosas festas “For All” (para todos).

Nelas, faziam questão de ter a presença das moças potiguares. Devido à distância da base e o centro, os promotores disponibilizavam um ônibus para buscar as jovens. De maneira pejorativa, populares passaram a denominar o transporte como “marmita”.

Praça do Ferreira na década de 1920 com coreto no meio e vista do Cine Majestic ao fundo. O primeiro cineteatro da cidade, construído em imponente e luxuoso prédio a pedido do empresário Plácido de Carvalho, sofreu dois incêndios que forçaram seu fechamento. No lugar, foi construído o Edifício Lobrás(Foto: Arquivo Nirez)
Foto: Arquivo Nirez Praça do Ferreira na década de 1920 com coreto no meio e vista do Cine Majestic ao fundo. O primeiro cineteatro da cidade, construído em imponente e luxuoso prédio a pedido do empresário Plácido de Carvalho, sofreu dois incêndios que forçaram seu fechamento. No lugar, foi construído o Edifício Lobrás

Marciano Lopes defende que as coca-colas “eram vanguardistas, e não vulgares. Eram moças de seus 20 anos que queriam apenas dar o grito de independência. Não queriam ter o mesmo destino de suas mães e avós, que foram criadas para o matrimônio e para se casarem muito jovens”.

Apesar de serem tratadas como um certo tabu, as “coca-colas” foram timidamente retratadas como mulheres elegantes, vistosas, educadas, inteligentes e imponentes que souberam tirar proveito de uma fase da vida.

“Essas moças eram bem versadas nos costumes europeus e norte-americanos porque liam revistas como A Scena Muda e assistiam a filmes charmosos em que as mulheres fumavam languidamente, deixavam entrever seus corpos, entregavam-se aos braços de galãs, e tinham vidas livres e quase sempre escandalosas. As coca-colas se comportavam como essas estrelas despudoradas”, escreve Ana Miranda em artigo ao O POVO em 2012.

As jovens que namoravam os soldados americanos em Fortaleza foram consideradas "avançadas" para a realidade da época e logo alcunhadas de "garotas Coca-Cola", uma analogia com o refrigerante ainda um tanto desconhecido e mania entre os estrangeiros(Foto: Arquivo OPOVODOC)
Foto: Arquivo OPOVODOC As jovens que namoravam os soldados americanos em Fortaleza foram consideradas "avançadas" para a realidade da época e logo alcunhadas de "garotas Coca-Cola", uma analogia com o refrigerante ainda um tanto desconhecido e mania entre os estrangeiros

Já Marciano Lopes lembra, em sua obra, que as “coca-colas” não eram jovens marginalizadas ou empobrecidas: “Eram bem-nascidas, provinham de famílias até tradicionais de nossa terra, viviam bem, moravam bem, não havendo, portanto, o fator carência financeira”.

“Elas namoravam os soldados americanos assim como um outro grupo namorava os cadetes, da mesma forma como, após elas, outras moças se interessavam pelos sargentos da nossa base aérea”, destaca.

Assim, a aproximação com os soldados não parecia estar ligada à necessidade econômica, mas sim ao desejo por novas experiências sociais quando havia poucas opções de lazer à juventude.

Capa do livro "Royal Briar", de Marciano Lopes(Foto: Reprodução/Amazon)
Foto: Reprodução/Amazon Capa do livro "Royal Briar", de Marciano Lopes

“A vida desmotivada da cidade modorrenta” era marcada por uma rotina limitada a sessões de cinema, passeios de bonde, vitrines de lojas aristocráticas e footing "Passeio a pé"  nas praças.

Algumas dessas moças, ressalta ele, “queriam ser diferentes, queriam sair da rotina, ver caras novas, não serem obrigadas a namorar os rapazes locais, conhecidos e manjados”, observa Lopes.

Apesar da força simbólica que essas figuras adquiriram na memória coletiva, o autor lamenta a ausência de registros mais consistentes: “Nada foi escrito, nenhum registro foi feito. Os preconceitos não o permitiram.”

O fenômeno das “coca-colas”, ainda que sem documentação formal na época, deixou marcas na cultura popular e segue como um capítulo pouco explorado da história de Fortaleza.

“Elas representaram os anseios das mulheres de hoje: o profundo desejo de liberdade, a emancipação, o assumir as suas próprias vidas.”

Ao fim da narrativa, Marciano deseja “que apareça alguém para documentar aquele instante tão alegre da nossa província e as suas divinas personagens: que se escreva um livro ou se monte um musical. Que seja um balé ou uma opereta. Uma novela para tevê, até um filme. Para tudo se presta a história das ‘coca-colas’”.

 

 

O cordão das coca-colas

O cordão das “coca-colas” foi criado logo após a guerra por um grupo de sargentos da Aeronáutica, como uma brincadeira em cima das moças que namoravam os soldados americanos. Fez sucesso pelos anos a seguir e chegou a ser um dos pontos de maior atração no Carnaval de rua de Fortaleza na década de 40.

O bloco ganhou adesão de rapazes da sociedade, universitários e normalmente sustentados por pais ricos. Vestidos com adereços atribuídos ao feminino, eles zombavam, nas ruas, da relação entre os soldados e as fortalezenses.

O cordão causou repercussão para a época e chocou as estruturas da sociedade de então.

Cordão das Coca-Colas, um dos mais animados do Carnaval de Fortaleza na década de 40(Foto: Arquivo OPOVODOC)
Foto: Arquivo OPOVODOC Cordão das Coca-Colas, um dos mais animados do Carnaval de Fortaleza na década de 40

Em matéria d’O POVO de 17 de abril de 1993, o odontólogo Raimundo Nonato Ximenes, então com 70 anos, narra que o Cocorote — ou “Cocó Route”, referência ao caminho que os aviadores faziam para pousar na base aérea —, única pista calçada que dava acesso para o aeroporto, foi também um dos locais onde as garotas escolhiam passear nos anos que antecederam o fim do maior e mais destrutivo conflito da história da humanidade.

E lembra que “o cordão das Coca-Colas era uma gozação, foi uma réplica daqueles relacionamentos. Quando o Ciro Saraiva saiu de Rei Momo, eles estavam lá, pintados, usando balangandãs tipo Carmen Miranda”.

O fenômeno, que foi atração principal no Carnaval da Vitória, em 1946, também é narrado pelo jornalista Gilmar de Carvalho em O POVO de 4 de junho de 1994.

Trecho de matéria em edição do jornal O POVO de 22 de fevereiro de 1950 destaca o cordão das Coca-Colas como campeão do Carnaval cearense(Foto: Arquivo OPOVODOC)
Foto: Arquivo OPOVODOC Trecho de matéria em edição do jornal O POVO de 22 de fevereiro de 1950 destaca o cordão das Coca-Colas como campeão do Carnaval cearense

“Carnavalização de verdade aconteceu no pós-guerra, quando um grupo de marmanjos vestidos de mulher desfilou no corso como o cordão das Coca-Colas. Além da paródia feminina, estava subjacente um tom sarcástico — metonímico — de rotular de Coca-Cola a mulher que namorava o americano baseado no Cocorote, intrépido piloto de jeep, promotor de grandes festas na Vila Morena.”

Ele escreve: “O ‘macho’ cearense vingou-se, como pôde, da ‘traição’. Ganhamos uma referência de Carnaval de rua, impregnado de sentimento de brasilidade e politicamente incorreto, de acordo com os critérios ora vigentes, em relação à mulher, execrada por pretender manifestar sem amarras sua afetividade e sexualidade”.

  

 

Senhoras coca-cola

Várias “coca-colas” acabaram casando com soldados e, ao término da guerra, se transferiram para os Estados Unidos. Outras permaneceram e enfrentaram valentemente a “maledicência provinciana”.

Em artigo escrito para o jornal O POVO em 18 de maio de 1944, Rachel de Queiroz expõe a relação entre fortalezenses e americanos: “Só os rapazes da terra é que são um pouco contra os nossos aliados. Rosnam bastante, falam em ‘mentalidade colonial’, etc. E a razão desse agravo, compreensível, aliás, é que as moças em sua grande maioria se dedicaram total e patrioticamente à política de boa vizinhança”.

Por serem moças de “fino trato”, pesava sobre elas o cuidado com os papéis, funções e comportamento que uma mulher deveria manter para garantir a sua integridade moral e a de sua família.

Anúncio do refrigerante Coca-Cola em revista com a praia de Copacabana de fundo diz, em tradução livre, "marinheiro americano na costa sabe que o convite para tomar uma Coca é a fórmula infalível para fazer amigos"(Foto: Reprodução/Ebay/Coca-Cola)
Foto: Reprodução/Ebay/Coca-Cola Anúncio do refrigerante Coca-Cola em revista com a praia de Copacabana de fundo diz, em tradução livre, "marinheiro americano na costa sabe que o convite para tomar uma Coca é a fórmula infalível para fazer amigos"

Outro ponto de tensão estaria no fato de elas terem adotado esse tipo de comportamento com “estranhos”.

O que se sabia sobre eles, afinal? A que família pertenciam? Na Fortaleza dos anos 1940, a observância desses valores — nome e origem — ainda determinava fortemente os namoros e uniões matrimoniais.

É o que coloca a historiadora Jane Semeão em uma pesquisa sobre o tema. Em “Coca-colas, as meninas do U.S.O rompem o cerco”, escrito em 2003, ela acrescenta que essas mulheres, “transformadas em exemplo para as outras mulheres, eram vigiadas através de inúmeras convenções sociais e culturais”.

“Lugares que podiam frequentar, que companhias deveriam ter, horários permitidos para irem à rua, o que vestir, como deveria ser o relacionamento com o namorado, etc. Bem nascidas e educadas para a vida doméstica, nenhum deslize poderia ficar incólume ou ser justificado.”

Na tentativa de localizar e entrevistar personagens para esta reportagem — filhos(as), netos(as), familiares ou amigos(as) dessas figuras históricas —, O POVO+ descobriu, por meio de pesquisas, que circulava no Liceu do Ceará, em cópias datilografadas, uma relação com vários nomes das então namoradas de americanos.

O registro existia porque eram “moças faladas” e classificadas como as que “não serviam para casar”, por isso mencionadas e perseguidas.

A equipe buscou o Liceu, colégio mais antigo do Ceará, por meio da Secretaria da Educação do Estado, mas foi informada que, infelizmente, “não há conhecimento da escola a respeito dos documentos”.

Militares acompanhados de mulheres coca-cola(Foto: Reprodução/Fortaleza Nobre)
Foto: Reprodução/Fortaleza Nobre Militares acompanhados de mulheres coca-cola

O mais próximo disso a que o leitor terá acesso são falas de dona Zeneida Normando, já “senhora coca-cola”, em entrevista para a jornalista Ana Naddaf em edição d’O POVO de 31 de outubro de 1999 disponibilizada pelo Arquivo OPOVODOC.

“O que eu poderia dizer deste tempo é exatamente isso: nós éramos convidadas para dançar foxtrote e para escutar os discos com o hit parade da semana, que eles recebiam”, enfatiza dona Zeneida, que pertenceu ao grupo.

“Não tinha essa história de rendez-vous, como muitos tentavam e ainda tentam colocar. Naquele tempo, a história era outra. Havia muito respeito e horário para se chegar em casa”, continua.

O famoso cordão das Coca-Colas no Carnaval de Fortaleza em 1955(Foto: Arquivo OPOVODOC)
Foto: Arquivo OPOVODOC O famoso cordão das Coca-Colas no Carnaval de Fortaleza em 1955

“A turma era discriminada, sim. E nós sabíamos disso. Os apelidos e a faladeira vinham daquelas que não tinham coragem de fazer o que a gente fazia. Ou, simplesmente, por inveja. Éramos modernas para a época, nos vestíamos bem. Eu e minha irmã Rosélia, por exemplo, fomos apelidadas de ‘pedacinhos de Hollywood’”.

“Em face da falsa moral reinante, nada foi proveitoso. Elas não fizeram escola. As que vinham dos mesmos colégios foram logo reprimidas a seguir os mesmos passos. Não tiveram a mesma chance de ter gente nova na Cidade, nem muito menos coragem para tornarem-se independentes”, lamenta o memorialista Marciano Lopes.

Os poucos registros e as duras críticas fizeram com que as memórias fossem praticamente apagadas: “Como poucas, eu tenho muita honra de dizer que fui uma coca-cola. Mesmo já avó (com quatro netos), eu me considero moderníssima como nos meus 20 anos. Não mudei nada. Sou aquariana, 200 anos na frente de todo mundo”, ri-se dona Zeneida em frente às possíveis (e ainda existentes) críticas.

A imprensa brasileira no "front": o correspondente Rubem Braga, ao centro, foi testemunha ocular dos feitos da Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial(Foto: Arquivo OPOVODOC)
Foto: Arquivo OPOVODOC A imprensa brasileira no "front": o correspondente Rubem Braga, ao centro, foi testemunha ocular dos feitos da Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial

Para o historiador Sebastião Rogério Ponte, professor aposentado da Universidade Federal do Ceará (UFC), o fenômeno das “coca-colas”, apesar de sua relevância social e cultural, permaneceu por tanto tempo invisibilizado na historiografia local e nos registros oficiais porque as jovens como dona Zeneida eram “moças de família” — como se dizia à época.

Isto é: pertenciam, em sua grande maioria, às camadas altas de Fortaleza. “Nesse sentido, houve muita pressão, sobretudo à imprensa, para que seus nomes e o acontecido não fossem divulgados. De fato, houve um longo silêncio a seu respeito”, reconhece.

“Mas como nada é dado por terminado em História, nos anos 1980, 1990, pesquisadores acabaram por descobri-lo e a história passou a ser estudada”, continua.

De todo modo, finaliza o historiador, “o silêncio em torno delas não foi total”: “Visto que, logo após a Segunda Grande Guerra, surgiu no Carnaval de rua de Fortaleza o “Cordão das coca-colas”, uma clara e jocosa alusão ao fato”.


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