Nos anos 1940, enquanto as forças alemãs invadiam a Europa ocidental, a Segunda Guerra Mundial parecia um drama distante para a pequena Fortaleza, que começava a modernizar-se em meio à atmosfera ainda bucólica da
Mas a pacata cidade de pouco mais de 180 mil habitantes viu seu cotidiano mudar ao tornar-se uma peça estratégica no tabuleiro militar global e abrigar uma base aérea utilizada pelos Estados Unidos, ponto de apoio importante para os
Com os soldados americanos, desembarcaram também novos costumes, produtos e afetos — entre eles, a Coca-Cola, refrigerante símbolo do estilo de vida norte-americano e apelido dado, de forma pejorativa, às mulheres que se relacionavam com os estrangeiros.
Numa época em que se namorava para casar, o sotaque novo e o tipo físico atraente despertaram o interesse dessas moças que, até então, pouco saíam dos salões da tradição. Foi nesse tempo que surgiu o nome sussurrado com reprovação e curiosidade: as mulheres coca-colas.
As jovens se aproximaram dos soldados estrangeiros, frequentaram festas no clube onde hoje é o Estoril, beberam o refrigerante gelado — uma novidade naquele tempo — e viveram intensamente a presença norte-americana.
Não era só por diversão; para muitas delas, aquele contato abria janelas para o mundo, desafiava a rotina vigiada e prometia, mesmo que por algumas horas, uma liberdade rara.
Mas a sociedade não perdoou: o apelido virou rótulo, o rótulo virou julgamento. Chamadas de interesseiras, imorais, traidoras, essas mulheres foram empurradas para um lado silencioso da história.
Nesta reportagem, voltamos aos anos 1940 para escutar o que quase não foi registrado.
Porque entender o fenômeno das coca-colas é também revisitar o desejo, o medo e os limites que ainda cercam as escolhas femininas — ontem e hoje.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a retirada das tropas americanas de Fortaleza, por volta de 1945, o fenômeno das chamadas “coca-colas” começou a se transformar.
Ainda presentes nas ruas da Cidade, essas jovens já não frequentavam mais os bailes da base militar, mas continuavam a atrair olhares e comentários por onde passavam.
Em Royal Briar: a Fortaleza dos anos 40, o escritor e jornalista Marciano Lopes recupera a memória desse grupo de mulheres que rompeu padrões sociais e comportamentais.
Ele registra que o apelido surgiu pelo fato de elas “terem o privilégio de tomar o famoso refrigerante americano que, àquela época, só se conseguia saborear através dos filmes made in Hollywood”.
De fato, as primeiras garrafas da bebida chegaram ao Brasil pelo Rio de Janeiro e Recife no início da década de 1940, quando foram construídas pequenas fábricas apenas para servir aos soldados norte-americanos.
Era uma maneira de fazê-los sentir em casa durante os tempos de combate, já que a Coca-Cola simbolizava a presença cultural dos Estados Unidos em qualquer aparição.
Em Fortaleza, até então, o famoso refrigerante ainda era apenas publicidade de cinema para os jovens da urbe.
Aos poucos, porém, o xarope caramelado começou a ser experimentado pelas moças da sociedade fortalezense.
Isso porque algumas delas passaram a ser convidadas para as reuniões nas areias em frente à sede do United States Office (USO), clube instalado numa suntuosa residência à beira-mar.
Lá funciona, atualmente, o Estoril — sede da Secretaria Municipal do Turismo de Fortaleza (Setfor), na Praia de Iracema.
Os convites dos americanos se estendiam para sessões de dança e música na antiga Praia do Peixe.
Nem todos sabem e pode ser até difícil de imaginar, mas ali onde hoje há um enorme calçadão que leva à Ponte dos Ingleses formavam-se piscinas naturais devido ao avanço das marés que eram pouco frequentadas até então; na formosa Vila Morena existiam apenas algumas casas de veraneio.
Informações colhidas no livro “A história da aviação no Ceará” indicam que os soldados norte-americanos achavam a sede da USO um lugar agradável, com uma brisa convidativa, onde dava para tomar um ótimo banho de mar em uma água deliciosamente quente, sob um sol escaldante, para depois apreciar uma deliciosa e diferente água de coco.
Foi nesse ambiente de natureza praiana que os militares começaram a se relacionar com as moças fortalezenses — um vínculo que causava reações variadas entre os moradores da Cidade.
A residência utilizada pelos americanos, um verdadeiro palacete, havia sido construída em 1920 pelo rico coronel pernambucano José Magalhães Porto, que morava na Cidade e teria sido quem a denominou inicialmente de Vila Morena.
O lugar passou a se chamar Estoril porque foi transformado num cassino e havia um famoso cassino em Portugal com o mesmo nome.
Os militares ali jogavam, bebiam e dançavam abraçados às namoradas, convidadas de honra das festas que pareciam não ter fim.
“Nas madrugadas, de longe se viam as luzes e se escutavam os cantos e os risos de alegria esfuziantes de uma juventude que queria, antes de tudo, viver”, descreve Marciano Lopes.
O escritor relata que provavelmente houve casamentos entre essas moças e soldados, ou casos de gravidez e abandono.
Ele atribui a essa experiência “o costume de batizar crianças com sobrenomes ianques, usados aqui como sobrenomes: Lincoln, Washington, Roosevelt... Os cabelos louros e olhos azuis”.
Em Royal Briar, ao falar sobre o estranhamento e a censura vindos de setores conservadores da sociedade, Marciano diz que “as velhas e respeitáveis matronas, guardiãs da sagrada moral cristã, resmungavam, olhavam de esguelha, condenavam as meninas ao fogo eterno do inferno e até benziam-se: T’esconjuro, filhas do mal”.
Nas palavras dele, “as crianças ficavam boquiabertas ante aqueles mulheraços, verdadeiras afrodites, desafiando os costumes e a chamada moral vitoriana. ‘Mãe, que moça linda!’, e a mãe puxando o rebento pela orelha: ‘Não olha! É uma ‘coca-cola!’”.
O memorialista contextualiza que, nos anos 1940, Fortaleza “era uma cidade muito provinciana, onde tudo era ditado pela Igreja Católica. Era de se esperar esse tipo de reação da sociedade”.
Um dos poucos a registrar o assunto, Lopes é autor de uma crônica na qual relatou a passagem das coca-colas na história da Fortaleza em tempos de guerra; obra que foi incorporada a Royal Briar.
O jornalista só chegou à Capital dois meses depois que a guerra havia acabado, mas ainda havia oficiais norte-americanos por aqui.
Suas lembranças esboçam dois lados da história: uma remete à imagem de moças bem vestidas e maquiadas, que desfilavam pelas ruas da Cidade; outra retrata a discriminação que essas mesmas garotas recebiam de uma parcela da sociedade.
“Eu estava parado em frente ao Cine Majestic e observava duas senhoras conversando. Uma delas segurava uma garotinha pela mão. A menina viu uma moça e apontou. A mãe olhou, identificou que era uma coca-cola e, imediatamente, vedou os olhos da criança e disse para que não olhasse mais. Elas não eram vaiadas na rua, mas ganhavam o desprezo da sociedade”, recorda o memorialista.
As denominações depreciativas não foram exclusividade de Fortaleza; em Natal, outro ponto estratégico durante a Segunda Guerra, aconteceu situação semelhante: os norte-americanos promoviam eventos na base de Parnamirim Field, as famosas festas “For All” (para todos).
Nelas, faziam questão de ter a presença das moças potiguares. Devido à distância da base e o centro, os promotores disponibilizavam um ônibus para buscar as jovens. De maneira pejorativa, populares passaram a denominar o transporte como “marmita”.
Marciano Lopes defende que as coca-colas “eram vanguardistas, e não vulgares. Eram moças de seus 20 anos que queriam apenas dar o grito de independência. Não queriam ter o mesmo destino de suas mães e avós, que foram criadas para o matrimônio e para se casarem muito jovens”.
Apesar de serem tratadas como um certo tabu, as “coca-colas” foram timidamente retratadas como mulheres elegantes, vistosas, educadas, inteligentes e imponentes que souberam tirar proveito de uma fase da vida.
“Essas moças eram bem versadas nos costumes europeus e norte-americanos porque liam revistas como A Scena Muda e assistiam a filmes charmosos em que as mulheres fumavam languidamente, deixavam entrever seus corpos, entregavam-se aos braços de galãs, e tinham vidas livres e quase sempre escandalosas. As coca-colas se comportavam como essas estrelas despudoradas”, escreve Ana Miranda em artigo ao O POVO em 2012.
Já Marciano Lopes lembra, em sua obra, que as “coca-colas” não eram jovens marginalizadas ou empobrecidas: “Eram bem-nascidas, provinham de famílias até tradicionais de nossa terra, viviam bem, moravam bem, não havendo, portanto, o fator carência financeira”.
“Elas namoravam os soldados americanos assim como um outro grupo namorava os cadetes, da mesma forma como, após elas, outras moças se interessavam pelos sargentos da nossa base aérea”, destaca.
Assim, a aproximação com os soldados não parecia estar ligada à necessidade econômica, mas sim ao desejo por novas experiências sociais quando havia poucas opções de lazer à juventude.
“A vida desmotivada da cidade modorrenta” era marcada por uma rotina limitada a sessões de cinema, passeios de bonde, vitrines de lojas aristocráticas e
Algumas dessas moças, ressalta ele, “queriam ser diferentes, queriam sair da rotina, ver caras novas, não serem obrigadas a namorar os rapazes locais, conhecidos e manjados”, observa Lopes.
Apesar da força simbólica que essas figuras adquiriram na memória coletiva, o autor lamenta a ausência de registros mais consistentes: “Nada foi escrito, nenhum registro foi feito. Os preconceitos não o permitiram.”
O fenômeno das “coca-colas”, ainda que sem documentação formal na época, deixou marcas na cultura popular e segue como um capítulo pouco explorado da história de Fortaleza.
“Elas representaram os anseios das mulheres de hoje: o profundo desejo de liberdade, a emancipação, o assumir as suas próprias vidas.”
Ao fim da narrativa, Marciano deseja “que apareça alguém para documentar aquele instante tão alegre da nossa província e as suas divinas personagens: que se escreva um livro ou se monte um musical. Que seja um balé ou uma opereta. Uma novela para tevê, até um filme. Para tudo se presta a história das ‘coca-colas’”.
O cordão das “coca-colas” foi criado logo após a guerra por um grupo de sargentos da Aeronáutica, como uma brincadeira em cima das moças que namoravam os soldados americanos. Fez sucesso pelos anos a seguir e chegou a ser um dos pontos de maior atração no Carnaval de rua de Fortaleza na década de 40.
O bloco ganhou adesão de rapazes da sociedade, universitários e normalmente sustentados por pais ricos. Vestidos com adereços atribuídos ao feminino, eles zombavam, nas ruas, da relação entre os soldados e as fortalezenses.
O cordão causou repercussão para a época e chocou as estruturas da sociedade de então.
Em matéria d’O POVO de 17 de abril de 1993, o odontólogo Raimundo Nonato Ximenes, então com 70 anos, narra que o Cocorote — ou “Cocó Route”, referência ao caminho que os aviadores faziam para pousar na base aérea —, única pista calçada que dava acesso para o aeroporto, foi também um dos locais onde as garotas escolhiam passear nos anos que antecederam o fim do maior e mais destrutivo conflito da história da humanidade.
E lembra que “o cordão das Coca-Colas era uma gozação, foi uma réplica daqueles relacionamentos. Quando o Ciro Saraiva saiu de Rei Momo, eles estavam lá, pintados, usando balangandãs tipo Carmen Miranda”.
O fenômeno, que foi atração principal no Carnaval da Vitória, em 1946, também é narrado pelo jornalista Gilmar de Carvalho em O POVO de 4 de junho de 1994.
“Carnavalização de verdade aconteceu no pós-guerra, quando um grupo de marmanjos vestidos de mulher desfilou no corso como o cordão das Coca-Colas. Além da paródia feminina, estava subjacente um tom sarcástico — metonímico — de rotular de Coca-Cola a mulher que namorava o americano baseado no Cocorote, intrépido piloto de jeep, promotor de grandes festas na Vila Morena.”
Ele escreve: “O ‘macho’ cearense vingou-se, como pôde, da ‘traição’. Ganhamos uma referência de Carnaval de rua, impregnado de sentimento de brasilidade e politicamente incorreto, de acordo com os critérios ora vigentes, em relação à mulher, execrada por pretender manifestar sem amarras sua afetividade e sexualidade”.
Várias “coca-colas” acabaram casando com soldados e, ao término da guerra, se transferiram para os Estados Unidos. Outras permaneceram e enfrentaram valentemente a “maledicência provinciana”.
Em artigo escrito para o jornal O POVO em 18 de maio de 1944, Rachel de Queiroz expõe a relação entre fortalezenses e americanos: “Só os rapazes da terra é que são um pouco contra os nossos aliados. Rosnam bastante, falam em ‘mentalidade colonial’, etc. E a razão desse agravo, compreensível, aliás, é que as moças em sua grande maioria se dedicaram total e patrioticamente à política de boa vizinhança”.
Por serem moças de “fino trato”, pesava sobre elas o cuidado com os papéis, funções e comportamento que uma mulher deveria manter para garantir a sua integridade moral e a de sua família.
Outro ponto de tensão estaria no fato de elas terem adotado esse tipo de comportamento com “estranhos”.
O que se sabia sobre eles, afinal? A que família pertenciam? Na Fortaleza dos anos 1940, a observância desses valores — nome e origem — ainda determinava fortemente os namoros e uniões matrimoniais.
É o que coloca a historiadora Jane Semeão em uma pesquisa sobre o tema. Em “Coca-colas, as meninas do U.S.O rompem o cerco”, escrito em 2003, ela acrescenta que essas mulheres, “transformadas em exemplo para as outras mulheres, eram vigiadas através de inúmeras convenções sociais e culturais”.
“Lugares que podiam frequentar, que companhias deveriam ter, horários permitidos para irem à rua, o que vestir, como deveria ser o relacionamento com o namorado, etc. Bem nascidas e educadas para a vida doméstica, nenhum deslize poderia ficar incólume ou ser justificado.”
Na tentativa de localizar e entrevistar personagens para esta reportagem — filhos(as), netos(as), familiares ou amigos(as) dessas figuras históricas —, O POVO+ descobriu, por meio de pesquisas, que circulava no Liceu do Ceará, em cópias datilografadas, uma relação com vários nomes das então namoradas de americanos.
O registro existia porque eram “moças faladas” e classificadas como as que “não serviam para casar”, por isso mencionadas e perseguidas.
A equipe buscou o Liceu, colégio mais antigo do Ceará, por meio da Secretaria da Educação do Estado, mas foi informada que, infelizmente, “não há conhecimento da escola a respeito dos documentos”.
O mais próximo disso a que o leitor terá acesso são falas de dona Zeneida Normando, já “senhora coca-cola”, em entrevista para a jornalista Ana Naddaf em edição d’O POVO de 31 de outubro de 1999 disponibilizada pelo Arquivo OPOVODOC.
“O que eu poderia dizer deste tempo é exatamente isso: nós éramos convidadas para dançar foxtrote e para escutar os discos com o hit parade da semana, que eles recebiam”, enfatiza dona Zeneida, que pertenceu ao grupo.
“Não tinha essa história de rendez-vous, como muitos tentavam e ainda tentam colocar. Naquele tempo, a história era outra. Havia muito respeito e horário para se chegar em casa”, continua.
“A turma era discriminada, sim. E nós sabíamos disso. Os apelidos e a faladeira vinham daquelas que não tinham coragem de fazer o que a gente fazia. Ou, simplesmente, por inveja. Éramos modernas para a época, nos vestíamos bem. Eu e minha irmã Rosélia, por exemplo, fomos apelidadas de ‘pedacinhos de Hollywood’”.
“Em face da falsa moral reinante, nada foi proveitoso. Elas não fizeram escola. As que vinham dos mesmos colégios foram logo reprimidas a seguir os mesmos passos. Não tiveram a mesma chance de ter gente nova na Cidade, nem muito menos coragem para tornarem-se independentes”, lamenta o memorialista Marciano Lopes.
Os poucos registros e as duras críticas fizeram com que as memórias fossem praticamente apagadas: “Como poucas, eu tenho muita honra de dizer que fui uma coca-cola. Mesmo já avó (com quatro netos), eu me considero moderníssima como nos meus 20 anos. Não mudei nada. Sou aquariana, 200 anos na frente de todo mundo”, ri-se dona Zeneida em frente às possíveis (e ainda existentes) críticas.
Para o historiador Sebastião Rogério Ponte, professor aposentado da Universidade Federal do Ceará (UFC), o fenômeno das “coca-colas”, apesar de sua relevância social e cultural, permaneceu por tanto tempo invisibilizado na historiografia local e nos registros oficiais porque as jovens como dona Zeneida eram “moças de família” — como se dizia à época.
Isto é: pertenciam, em sua grande maioria, às camadas altas de Fortaleza. “Nesse sentido, houve muita pressão, sobretudo à imprensa, para que seus nomes e o acontecido não fossem divulgados. De fato, houve um longo silêncio a seu respeito”, reconhece.
“Mas como nada é dado por terminado em História, nos anos 1980, 1990, pesquisadores acabaram por descobri-lo e a história passou a ser estudada”, continua.
De todo modo, finaliza o historiador, “o silêncio em torno delas não foi total”: “Visto que, logo após a Segunda Grande Guerra, surgiu no Carnaval de rua de Fortaleza o “Cordão das coca-colas”, uma clara e jocosa alusão ao fato”.
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