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Com corte, conversa e cuidado, barbearias moldam identidades masculinas
Reportagem Especial

Com corte, conversa e cuidado, barbearias moldam identidades masculinas

As barbearias podem ser ambientes onde homens ressignificam rotinas, trocam experiências, cultivam o cuidado pessoal e repensam padrões ligados ao ser masculino na sociedade atual

Com corte, conversa e cuidado, barbearias moldam identidades masculinas

As barbearias podem ser ambientes onde homens ressignificam rotinas, trocam experiências, cultivam o cuidado pessoal e repensam padrões ligados ao ser masculino na sociedade atual
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Na poltrona da barbearia, o homem contemporâneo é mais do que um cliente: é personagem de uma negociação cotidiana sobre o que significa “ser homem”.

O ambiente que tenta transmitir um aspecto rústico, com pôsteres de carros e futebol, mesas de sinuca e o som da máquina de cortar cabelo misturado a goles de cerveja artesanal, parece mais um cenário cuidadosamente montado do que um simples espaço de prestação de serviço.

Em uma sociedade que muda na velocidade de um clique, talvez já não seja tão estranho homens falando em autocuidado, preocupando-se com a aparência e consumindo cada vez mais da indústria da beleza.

ParaTodosVerem: A cena é composta por um barbeiro e um cliente em um salão de cabeleireiros. O barbeiro está usando suspensórios e uma camisa branca, enquanto o cliente está sentado em uma cadeira de barbeiro. O barbeiro está aplicando espuma de barbear no rosto do cliente com uma navalha(Foto: EDIMAR SOARES / O POVO)
Foto: EDIMAR SOARES / O POVO ParaTodosVerem: A cena é composta por um barbeiro e um cliente em um salão de cabeleireiros. O barbeiro está usando suspensórios e uma camisa branca, enquanto o cliente está sentado em uma cadeira de barbeiro. O barbeiro está aplicando espuma de barbear no rosto do cliente com uma navalha

Por isso é nesse território — supostamente descomplicado e masculino — que se forjam, reafirmam e também se contestam as masculinidades do século XXI.

Um negócio em plena expansão, a barbearia também significa a realização de um sonho para milhões de empreendedores Brasil afora.

Longe de ser um personagem de Lewis Carol, foi através do espelho que O POVO+ descobriu como corte, conversa e cuidado estimulam a competitividade no setor de serviços ao mesmo tempo em que colocam na discussão o que significam masculinidade e comunidade.


 

Largo al factotum

 

 

As barbearias e a profissão de barbeiro têm uma longa história, com evidências que remontam a cerca de 5.000 a.C., no Egito Antigo.

Achados arqueológicos, incluindo navalhas, indicam que práticas de barbear já eram utilizadas durante a Idade do Bronze no Egito.

Ao longo da Idade Média, os barbeiros não apenas cortavam cabelo e faziam a barba, mas também realizavam procedimentos médicos como sangrias, extração de dentes, curativos e até pequenas cirurgias. Por isso, eram chamados de barbeiros-cirurgiões.

 

Conheça a história da barbearia 

 

Com o passar dos anos, a profissão foi se transformando, e os ofícios médicos ficaram a cargo de profissionais mais especializados.

O barbeiro moderno transcende o ofício das lâminas, como o icônico Fígaro, da clássica ópera O Barbeiro de Sevilha, que não era apenas um barbeiro, mas um verdadeiro articulador social — intermediando amores, tramando encontros e resolvendo dilemas alheios.

Esses profissionais atuam em um espaço multifuncional onde não só embelezam os clientes, mas escutam, aconselham, conversam, criam vínculos e ajudam a construir identidades.

ParaTodosVerem: Em uma barbearia com espelhos iluminados e paredes de tijolos aparentes, um barbeiro de barba cheia, tatuagens nos braços e pescoço, corta a barba de um cliente. O barbeiro segura uma máquina de acabamento e um pente vermelho enquanto trabalha com atenção. O cliente está reclinado na cadeira, com capa preta estampada com o logotipo “Sr. Barbeiro”, olhando para cima com expressão relaxada(Foto: Italo Cosme / Especial para O POVO)
Foto: Italo Cosme / Especial para O POVO ParaTodosVerem: Em uma barbearia com espelhos iluminados e paredes de tijolos aparentes, um barbeiro de barba cheia, tatuagens nos braços e pescoço, corta a barba de um cliente. O barbeiro segura uma máquina de acabamento e um pente vermelho enquanto trabalha com atenção. O cliente está reclinado na cadeira, com capa preta estampada com o logotipo “Sr. Barbeiro”, olhando para cima com expressão relaxada

Seja na Espanha medieval ou na Fortaleza de 2025, é o “Fígaro” quem escuta e opina nas queixas sobre calvície, problemas matrimoniais, e cunhados folgados que tomam mais liberdades do que lhes são dadas.

Por isso, para muitos homens, a relação com o barbeiro é muito mais do que cliente e prestador de serviços.


 

Eles chegaram no mercado da beleza 

De fato, as barbearias modernas, são - em alguma medida - uma alusão ao faz-tudo italiano. Barba, cabelo e bigode, agora, não são mais o carro-chefe dos empreendimentos. É tudo parte da indústria do autocuidado.

Esse tipo de estabelecimento era chamado, até alguns anos de atrás, de “barbearias gourmet”.

Com um conceito de serviços personalizados, produtos de alta qualidade e ambientes sofisticados, os espaços surgiram no Brasil no início da década de 2010. Hoje, esse tipo de serviço deixou de ser luxo para virar padrão.

ParaTodosVerem: Interior de uma barbearia sofisticada com piso quadriculado em preto e branco. À direita, um barbeiro de máscara realiza um corte de cabelo em um cliente sentado em uma das cadeiras giratórias de couro preto com detalhes em madeira. À esquerda, há lavatórios e cadeiras de espera. As paredes são de tijolos aparentes, com móveis de madeira escura, prateleiras com produtos de beleza e uma televisão fixada na parede(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR ParaTodosVerem: Interior de uma barbearia sofisticada com piso quadriculado em preto e branco. À direita, um barbeiro de máscara realiza um corte de cabelo em um cliente sentado em uma das cadeiras giratórias de couro preto com detalhes em madeira. À esquerda, há lavatórios e cadeiras de espera. As paredes são de tijolos aparentes, com móveis de madeira escura, prateleiras com produtos de beleza e uma televisão fixada na parede

Além das cadeiras giratórias, os salões abriram espaço para mesas de sinuca, cafeteiras modernas e refrigeradores abastecidos com toda sorte de cervejas.

Empresas do setor de cosméticos e produtos de beleza voltados para homens já enxergam o crescimento desse mercado. Uma pesquisa da Research & Markets, publicada pela revista Você SA, mostra que o segmento atingiu US$ 69 bilhões em 2020 e projeta chegar a US$ 78,6 bilhões até o final de 2025.

ParaTodosVerem: Em uma bancada de barbearia, diversos itens estão organizados próximos a um espelho iluminado. À esquerda, uma garrafa de Jack Daniel's é usada como decoração ao lado de uma caneca branca com o logotipo “Sr. Barbeiro”, contendo um pincel de barbear com cabo claro. Há também outro pincel de barbear apoiado na superfície. Ao fundo, destacam-se máquinas de cortar cabelo antigas em estilo retrô(Foto: ETHI ARCANJO)
Foto: ETHI ARCANJO ParaTodosVerem: Em uma bancada de barbearia, diversos itens estão organizados próximos a um espelho iluminado. À esquerda, uma garrafa de Jack Daniel's é usada como decoração ao lado de uma caneca branca com o logotipo “Sr. Barbeiro”, contendo um pincel de barbear com cabo claro. Há também outro pincel de barbear apoiado na superfície. Ao fundo, destacam-se máquinas de cortar cabelo antigas em estilo retrô

O Brasil já está muito bem estabelecido no ramo, e representa 13% do mercado global de beleza masculina, firmando-se como o quarto maior do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Japão.

A posição também se justifica pela quantidade de empresas do segmento abertas no Brasil ao longo da última década, segundo dados do Sebrae.

Em 2014, foi registrada a abertura de 121.456 novas empresas. Dez anos depois, em 2024, esse número saltou para 201.467 — um aumento de cerca de 66%.

 

Veja os dados do Sebrae sobre o setor 

 

A evolução foi marcada por oscilações, mas o movimento geral foi de alta. Após um leve recuo entre 2015 e 2016, o país viu um crescimento expressivo a partir de 2017, quando foram abertas 153.088 empresas.

O avanço continuou até 2019, ano em que o número de novas empresas chegou a 212.197, o maior da série.

Para o consultor de negócios Alan Girão, do Sebrae/CE, a atenção ao estilo pessoal tem sido impulsionada também pelas redes sociais, nas quais os barbeiros ganham visibilidade ao mostrar um atendimento mais sofisticado e personalizado.

O diferencial, portanto, vai além da tesoura: está na capacidade de ler e traduzir a identidade do cliente em sua aparência.


 

Um lugar para sentir-se bem

Para o músico e estudante Ytalo Santos, 21, é a forma de lidar com os pedidos, nem sempre claros, que faz o serviço do barbeiro Renan ser o seu favorito.

“Às vezes eu chego aqui e peço um corte baixo nas laterais e com mais volume na frente, não mostro uma imagem de referência e o cara deixa exatamente como eu imaginei. Não é todo mundo que entende o cliente assim”, afirma.

ParaTodosVerem: Em uma barbearia simples e tradicional, um barbeiro de máscara vermelha, boné e camisa preta com detalhes vermelhos faz o acabamento da barba de um cliente, que está sentado em uma cadeira reclinável com capa roxa(Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR ParaTodosVerem: Em uma barbearia simples e tradicional, um barbeiro de máscara vermelha, boné e camisa preta com detalhes vermelhos faz o acabamento da barba de um cliente, que está sentado em uma cadeira reclinável com capa roxa

Ytalo é cliente de uma barbearia no Castelão, no coração da avenida Alberto Craveiro. Lá é possível fazer, além dos serviços básicos, hidratação, descoloração — o famoso nevou — escova e barba terapia "um tratamento de beleza masculina focado na barba, que visa a hidratação, nutrição e modelagem dos fios, além de cuidados com a pele do rosto" .

A oferta desse tipo de serviço reflete a busca por uma nova forma de conexão com a própria imagem. Essa tendência no mercado revela uma expressiva mudança no comportamento dos homens.

Mas, mesmo sem todo o mix de serviço, o momento de sentar na cadeira giratória é sagrado para muitos homens. Ao O POVO+, vários clientes relatam que a barbearia é um dos poucos lugares onde eles podem relaxar, conversar livremente, expressar opiniões e desejos sem o filtro das exigências familiares ou do ambiente profissional.

ParaTodosVerem: A imagem mostra a Cavaliere Confraria, arbearia, bar e tabacaria em um mesmo ambiente. O ambiente é escuro e em primeiro plano está destacada uma mesa de sinuca (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR ParaTodosVerem: A imagem mostra a Cavaliere Confraria, arbearia, bar e tabacaria em um mesmo ambiente. O ambiente é escuro e em primeiro plano está destacada uma mesa de sinuca

Para alguns, é uma espécie de “caverna do homem”, um espaço seguro onde se fala de futebol, política, mulheres e pornografia como quem reafirma a própria liberdade.

Essa ambivalência — entre refúgio e trincheira — se estende também ao campo do consumo. O homem que consome na barbearia não está apenas adquirindo um corte ou um produto. Está adquirindo pertencimento, identidade e reconhecimento. Está reafirmando uma versão de si que o mercado validou como legítima.

Isso se reflete, por exemplo em uma das principais tendências observadas atualmente no segmento: o investimento em visagismo.

“Os profissionais que estão se destacando hoje são aqueles que buscam conhecimento nessa área, preocupando-se não apenas com o corte de cabelo ou o feitio da barba, mas com a harmonização entre o tipo de rosto do cliente, o estilo de roupa que ele usa e a imagem que deseja transmitir”, afirma o consultor de negócios Alan Girão, do Sebrae/CE.

A mídia, nesse processo, funciona como catalisadora: define padrões, vende estilos e, muitas vezes, disfarça a continuidade da norma sob o verniz da modernidade

Mas há fissuras. Apesar da predominância da masculinidade hegemônica, há brechas onde outras formas de ser homem também se expressam.

O simples fato de que homens hoje frequentem espaços para cuidar de si já revela uma transformação. Ainda que limitada pelo discurso do “homem que se cuida porque é homem”, a mudança abre margem para que, no futuro, outras maneiras de existir no mundo sejam aceitas sem tanto julgamento.


 

Lugar de homem

Para Tainan Tomazetti, jornalista e doutor em Comunicação e Informação, as barbearias surgem como espaços simbólicos cruciais para entender como os homens negociam sua identidade de gênero.

Tomazetti é autor de um estudo etnográfico em comunicação que buscou descrever o ambiente da barbearia, identificando os principais elementos articulados na produção simbólica que norteia as práticas estéticas e de cuidado masculino.

“Longe de serem meros estabelecimentos para aparar cabelos e barbas, esses lugares funcionam como arenas onde se performa uma ideia específica de masculinidade — geralmente alinhada à hegemonia heteronormativa, branca e viril”, aponta.

ParaTodosVerem: Fotografia do pesquisador e jornalista Tainan Tomazetti, um homem de pele clara, barba curta e cabelo castanho claro usa uma camiseta preta com estampa em branco e verde, onde se lê parcialmente "you R". Ele está de braços cruzados, sorrindo levemente, com uma tatuagem visível no braço esquerdo(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal ParaTodosVerem: Fotografia do pesquisador e jornalista Tainan Tomazetti, um homem de pele clara, barba curta e cabelo castanho claro usa uma camiseta preta com estampa em branco e verde, onde se lê parcialmente "you R". Ele está de braços cruzados, sorrindo levemente, com uma tatuagem visível no braço esquerdo

Segundo o pesquisador, essa negociação simbólica acontece em meio às pressões de um mundo que, ao mesmo tempo em que atualiza os padrões estéticos, reforça códigos tradicionais de masculinidade.

“Ser homem, nesse contexto, é performar uma série de gestos, escolhas e falas que reiteram uma norma”, afirma. Assim, qualquer desvio pode significar risco: parecer “feminino demais”, sensível demais, vaidoso demais — tudo isso pode gerar estranhamento, quando não exclusão.

 

 Veja algumas características das barbearias 

 

É um jogo complexo: o homem que frequenta a barbearia moderna consome produtos antes associados ao universo feminino — cremes, cosméticos, óleos para barba — mas o faz em um espaço higienizado de qualquer vestígio do feminino.

Ao excluir referências como o cheiro de esmalte, as cores claras, elementos delicados e até mesmo as conversas “de mulher”, cria-se um ambiente de conforto onde o cuidado pessoal pode acontecer sem ameaçar os alicerces do que se convencionou chamar de “masculinidade”.


 

Na régua e na raça

O padrão social não é uma questão apenas de gênero, há um recorte racial muito claro envolvido. Durante muito tempo, a ideia de que "cabelo bom" é cabelo liso predominou no universo da estética.

Nesse contexto,  meninos negros foram forçados a apagar traços de sua identidade sob o pretexto da praticidade ou da aceitação social. Muitas vezes por meio da imposição do corte "raspa tudo", foi negada a esses homens a possibilidade de entender o próprio cabelo, crespo ou cacheado, como parte da sua autoimagem.

Por isso, a escolha consciente por estilizar o cabelo com tranças, dreads ou as linhas precisas e visual marcante do corte "na régua" representa uma subversão dessa lógica racista. E foram nas barbearias das periferias que esse movimento ganhou força.

Em um artigo de 2021, Paulo Melgaço, professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), mostra que esses espaços funcionam como verdadeiros territórios de construção de subjetividades, onde se discutem temas como raça, autoestima, masculinidade e sexualidade.

ParaTodosVerem: Fotografia do professor Melgaço Júnior, da UniRio, um homem de pele escura e cabelo curto e cacheado sorri levemente em frente a uma parede de cor clara. Ele veste uma camisa social listrada em azul e branco, com o colarinho levemente abert(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal ParaTodosVerem: Fotografia do professor Melgaço Júnior, da UniRio, um homem de pele escura e cabelo curto e cacheado sorri levemente em frente a uma parede de cor clara. Ele veste uma camisa social listrada em azul e branco, com o colarinho levemente abert

“O corte de cabelo passou a ser amplamente celebrado na cultura popular, sobretudo no funk. E sim, virou um símbolo de resistência e pertencimento: estar com o ‘cabelin na régua’ é comunicar ao mundo que o negro, favelado, é desejante e digno de ser visto”, afirma.

Segundo o professor, ao validarem sua própria imagem, esses jovens constroem novos parâmetros de beleza e masculinidade que desafiam os padrões brancos e hegemônicos, transformando o barbeiro em um agente de empoderamento e a barbearia em um núcleo de afirmação cultural.

É assim também que o designer Yarlei Nogueira, 30, define a barbearia Quintura, em Messejana. Foi por meio da indicação de amigos que ele conheceu o espaço comandado por Cássio Abreu no centro do bairro.

ParaTodosVerem: Na imagem, Yarlei, um homem negro de cabelos curtos sorri enquanto recebe corte de cabelo do barbeiro Cássio, que usa  camiseta branca, tem pele clara e cabelo e barba pretos. Eles estão em um ambiente claro, com fundo neutro. O cliente está coberto com uma capa branca com letras azuis(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA ParaTodosVerem: Na imagem, Yarlei, um homem negro de cabelos curtos sorri enquanto recebe corte de cabelo do barbeiro Cássio, que usa camiseta branca, tem pele clara e cabelo e barba pretos. Eles estão em um ambiente claro, com fundo neutro. O cliente está coberto com uma capa branca com letras azuis

“A gente precisa de um espaço como esse, que é acolhedor, que a gente pode vir e sentir confortável com as pessoas que estão aqui, com o tipo de conversa que tem com o profissional e as trocas que podemos ter”, afirma Yarlei.

De acordo com Cássio, reações como a de Yarlei têm sido muito frequentes desde a inaguruação do espaço. “A gente é muito carente disso. Um lugar para agregar essas pessoas num espaço que seja seguro — pros dois lados. A gente precisa procurar lugares que caibam a gente”, aponta o barbeiro.


 

Uma barbearia com calor humano

Por muito tempo, Cássio não tinha certeza quanto aos seus passos profissionais. De assistente administrativo a “vendedor de arte na praia”, segundo conta, foi aos 23 anos que um curso ofertado na comunidade do São Bernardo, na grande Messejana, deu a ele a perspectiva de uma carreira.

Cássio é um homem trans, e em 2017, quando estava morando em São Paulo, enfrentou dificuldades para conseguir trabalho em barbearias. Além de estar no processo de transição, era um profissional iniciante e só cortava cabelo dos amigos.

A pandemia foi o seu ponto de virada. “Vixe, agora eu tenho muito tempo livre. Se não fizer algo agora, eu não vou fazer nunca”, lembra ele.

ParaTodosVerem: Cassio Abreu, proprietário da Barbearia Quintura, um homem de pele clara, com estrutura mediana e aparência simpática. Tem rosto oval, traços suaves, olhos castanhos escuros, e sorriso aberto. Usa barba bem feita e cabelo curto, escuro e levemente bagunçado. Veste camiseta branca de manga comprida, em estilo casual (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA ParaTodosVerem: Cassio Abreu, proprietário da Barbearia Quintura, um homem de pele clara, com estrutura mediana e aparência simpática. Tem rosto oval, traços suaves, olhos castanhos escuros, e sorriso aberto. Usa barba bem feita e cabelo curto, escuro e levemente bagunçado. Veste camiseta branca de manga comprida, em estilo casual

Com uma máquina de corte nova comprada pela tia, Cássio foi para o centro de São Paulo cortar cabelo de pessoas em situação de rua. Foi nessa empreitada que ele pôde adquirir experiência na prática, até conseguir um trabalho voluntário no Chá do Padre, na região do bairro República.

Depois disso, Cássio voltou para Fortaleza, onde conseguiu uma vaga em barbearia após amigos fotografarem seus cortes, o ajudando a construir um portfólio. Mas a experiência foi difícil.

O ambiente era super hostil. Passavam o dia falando mal de mulheres, de pessoas LGBT... era um lugar muito ruim de se estar.” Quando o dono o chamou para assumir o posto em definitivo, ele recusou e voltou para São Paulo.

ParaTodosVerem: A foto é um registro de quando Cássio (em pé, à esquerda) ganhou experiência como barbeiro em um projeto social que oferecia cortes de cabelo a pessoas em situação de rua. Na imagem, os barbeiros estão usando aventais pretos, e os clientes estão cobertos por capas(Foto: Arquivo Pessoal / Cássio Abreu)
Foto: Arquivo Pessoal / Cássio Abreu ParaTodosVerem: A foto é um registro de quando Cássio (em pé, à esquerda) ganhou experiência como barbeiro em um projeto social que oferecia cortes de cabelo a pessoas em situação de rua. Na imagem, os barbeiros estão usando aventais pretos, e os clientes estão cobertos por capas

Longe da cidade natal e de suas raízes, a megalópole que lhe oferecia movimento, variedade de espaços e clientes diversos, ao mesmo tempo não deixava de lembrá-lo diariamente que certos corpos e existências não cabem em qualquer lugar.

Com o tempo, quis crescer e sair para outro lugar, mas enfrentou a exploração por parte dos proprietários, com cobranças constantes e desproporcionais ao pagamento. A experiência o que o levou a refletir: “Será que se um dia eu tiver meu próprio negócio, vou ser escroto assim também?”

ParaTodosVerem: No evento de inaguração da Barbearia Quintura, o tatuador Gabriel, um home de pele clara, cabelos e barba pretos - e que usa uma camiseta marrom, máscara e luvas pretas - faz uma tatuagem no braço de um cliente de pele clara, careca e que usa um bigode (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA ParaTodosVerem: No evento de inaguração da Barbearia Quintura, o tatuador Gabriel, um home de pele clara, cabelos e barba pretos - e que usa uma camiseta marrom, máscara e luvas pretas - faz uma tatuagem no braço de um cliente de pele clara, careca e que usa um bigode

De volta à Fortaleza, Cássio decidiu que era o momento de montar sua própria barbearia. Foi quando contou com a ajuda de amigos que já tinham seus negócios.

“Eles sempre diziam que primeira coisa que você precisa definir é seu público-alvo e o nome do lugar”, relembra.

Foi quando o barbeiro decidiu prestar serviço para um público alternativo. Foi em identidades não-normativas, como a dele próprio, que encontrou não só um nicho de mercado, como também um senso de comunidade.

“E mesmo que eu quisesse atender somente ao público padrão, não ia rolar, sabe? Porque as pessoas se identificam com quem presta o serviço” aponta.

ParaTodosVerem: ParaTodosVerem: Duas pessoas, sentadas no sofá  da Barbearia Quintura, analisam desenhos de tatuagem em um caderno. A pessoa à esquerda, de camiseta branca, observa atenta, enquanto a pessoa à direita, de camiseta vermelha, aponta um dos desenhos com o dedo, sorrindo(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA ParaTodosVerem: ParaTodosVerem: Duas pessoas, sentadas no sofá da Barbearia Quintura, analisam desenhos de tatuagem em um caderno. A pessoa à esquerda, de camiseta branca, observa atenta, enquanto a pessoa à direita, de camiseta vermelha, aponta um dos desenhos com o dedo, sorrindo

“Quando eu pensei nesse público, imaginei: “Eles vão andar em tal lugar, ouvir tal música, vestir tal roupa...” É o mesmo público dos meus amigos que têm suas marcas, é o público que vai nos mesmos lugares que eu, então é gente parecida com a gente”.

Cássio reflete também sobre a realidade do empreendedor no Brasil. Para ele, o mais difícil é agregar todas as funções em si mesmo, desde o serviço até o marketing. "Mas a alma do negócio sempre vai ser o bom atendimento e um serviço de qualidade", diz.

"O dono da barbearia onde eu trabalhava dizia que cortar cabelo não dá mais dinheiro, e é verdade", acrescenta. 

 

Serviços oferecidos pela barbearia Quintura

 

"O que dá retorno são os serviços agregados. Eu corto teu cabelo, mas se junto uma limpeza de pele, depilação de nariz, sobrancelha... A sobrancelha, por exemplo, é rápida de fazer, tem custo baixo e o lucro é bom", diz.

O barbeiro finaliza refletindo sobre a mudança no perfil do cliente. "Até o homem mais bruto, que se acha 'machão', faz esses serviços. Fazem depilação de nariz, usam pomada, alisam o cabelo. E limpeza de pele, que antes era só “coisa de mulher”, agora bomba".


 

Criando comunidades que criam identidades

Segundo o Dicionário de Favelas Marielle Franco, aquilombamento é uma prática que remete à época do Brasil monárquico, mas virou um termo frequentemente utilizado por movimentos negros para se referir à organização comunitária e à resistência coletiva contra o racismo, a violência estatal e a marginalização social.

O aquilombamento moderno envolve a criação de espaços de autonomia e de apoio mútuo, onde as pessoas possam se reunir, compartilhar experiências e fortalecer suas identidades, sem a interferência das estruturas opressoras.

A estética das “barber shops” americanas vem, aliás, de experiências em bairros negros, como o Harlem. Em uma entrevista ao The San Francisco Chronicle, o artista de hip-hop Richard “Big Rich” Bougere, falou sobre a relação entre identidade racial e as barber shops.

ParaTodosVerem: A foto mostra o rapper Big Rich, um homem negro, de corpo robusto e rosto arredondado com nariz marcante e lábios cheios. Tem cabelos e barba curtos e escuros. Veste um moletom preto com um pingente dourado em formato da letra "R", várias correntes douradas no pescoço, calça escura e um relógio no pulso. Sua expressão é neutra e a postura ereta, em um ambiente casual. O visual mistura estilo casual com joias chamativas(Foto: Reprodução / Instagram )
Foto: Reprodução / Instagram ParaTodosVerem: A foto mostra o rapper Big Rich, um homem negro, de corpo robusto e rosto arredondado com nariz marcante e lábios cheios. Tem cabelos e barba curtos e escuros. Veste um moletom preto com um pingente dourado em formato da letra "R", várias correntes douradas no pescoço, calça escura e um relógio no pulso. Sua expressão é neutra e a postura ereta, em um ambiente casual. O visual mistura estilo casual com joias chamativas

Big Rich tem cortado o cabelo na Tailored Cuts há mais de 30 anos. De acordo com ele, as relações que ele construiu lá o ajudaram a moldar sua visão de mundo. “Barbearias como a Tailored Cuts são os últimos centros autênticos da cultura negra que você encontrará, realmente,” disse.

“Como um jovem homem negro, você pode ser exposto a visões e opiniões que vão te ensinar mais sobre sua própria identidade, assim como sobre o mundo ao seu redor. E você pode ver como os homens negros ao seu redor se apresentam ao público e como eles se orgulham de si.”

Ao fim da entrevista, Bougere acrescentou outro pensamento. Ele disse que apenas uma palavra descreve o que as barbearias negras significam para os homens negros que muitas vezes se sentem deslocados na América: “Tudo,” sintetizou. “Elas significam tudo.”

ParaTodosVerem: Foto da barbearia Tailored Cuts, em São Francisco nos EUA, à esquerda, um barbeiro de máscara corta o cabelo de um cliente sentado em uma cadeira giratória, coberto por uma capa vermelha com estampas de produtos de barbearia. À direita, outro cliente está reclinado, recebendo acabamento no pescoço com uma máquina elétrica, protegido por uma capa preta com desenhos de utensílios e produtos de barbearia em branco. A barbearia tem paredes claras, chão escuro com detalhes claros e pôsteres decorativos, incluindo uma imagem icônica do boxeador Muhammad Ali(Foto: Yalonda M. James / Tailored Cuts)
Foto: Yalonda M. James / Tailored Cuts ParaTodosVerem: Foto da barbearia Tailored Cuts, em São Francisco nos EUA, à esquerda, um barbeiro de máscara corta o cabelo de um cliente sentado em uma cadeira giratória, coberto por uma capa vermelha com estampas de produtos de barbearia. À direita, outro cliente está reclinado, recebendo acabamento no pescoço com uma máquina elétrica, protegido por uma capa preta com desenhos de utensílios e produtos de barbearia em branco. A barbearia tem paredes claras, chão escuro com detalhes claros e pôsteres decorativos, incluindo uma imagem icônica do boxeador Muhammad Ali

A barbearia, portanto, é um espelho — não de um homem em essência, mas de um homem possível em um sistema que premia conformidades.E é também um lugar de escape.

O POVO+ acompanhou o evento “Calorão”, criado por Cássio para promover a barbearia Quintura, e lá foi muito fácil perceber o quanto formas de existir e socializar que fogem ao padrão ainda precisam de acolhimento.

Cássio convidou clientes, família e amigos para estarem presentes, e a sensação foi que todos ali eram velhos conhecidos. Os assuntos em comum surgiam com naturalidade, e entre goles de cerveja, risadas e piadas nichadas, as pessoas iam ficando cada vez mais à vontade. 

Além do momento de confraternização, algumas pessoas escolheram registrar o momento na pele, com as tatuagens feitas por Lucena, um tattoo artist que também é um homem transgênero. 

"A gente construiu um lugar onde todo mundo se sinta bem-vindo, sem se sentir deslocado. Nosso espaço tem um estilo minimalista, mas, ao mesmo tempo descontraído. E o mais importante nem é só a estética, é o clima", aponta Cássio. 

ParaTodosVerem: A foto registra um grupo de pessoas reunidas do lado de fora da barbearia Quintura, interagindo e relaxando, durante o evento de inaguração(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA ParaTodosVerem: A foto registra um grupo de pessoas reunidas do lado de fora da barbearia Quintura, interagindo e relaxando, durante o evento de inaguração

"A gente faz questão de manter um ambiente leve, onde a conversa flui. Aqui não tem aquele padrão de masculinidade tóxica. O corte de cabelo é só parte da experiência — o mais importante é a pessoa sair daqui se sentindo bem com ela mesma, do jeito que ela é", conclui. 

Estética, nesse caso, não é apenas uma escolha pessoal, mas um campo de disputas políticas e sociais. A construção da masculinidade, portanto, não é um destino natural, mas uma travessia moldada por práticas cotidianas, consumo simbólico, controle social e resistência.

Ser homem, é um trabalho constante: de adequação, de representação, de diferenciação. Um trabalho muitas vezes invisível, mas profundamente carregado de sentido.

Nesse cenário, a barbearia se revela como um microcosmo do masculino contemporâneo: um lugar de permanências e transformações, de exclusões e pertencimentos, de interpretações e desejos.

E talvez seja justamente ali, entre navalhas, espelhos e conversas soltas, que possamos entender melhor as engrenagens que mantêm, contestam ou reinventam o que significa, afinal, ser homem.

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