Logo O POVO+
Afinal, por que nos drogamos?
Reportagem Especial

Afinal, por que nos drogamos?

Só entre 2023 e 2024, 316 milhões de pessoas usaram algum tipo de substância, isso sem contar as drogas lícitas, como o álcool e o cigarro. O neurocientista Sidarta Ribeiro define droga como "qualquer substância que altere o seu estado fisiológico ou psicológico"

Afinal, por que nos drogamos?

Só entre 2023 e 2024, 316 milhões de pessoas usaram algum tipo de substância, isso sem contar as drogas lícitas, como o álcool e o cigarro. O neurocientista Sidarta Ribeiro define droga como "qualquer substância que altere o seu estado fisiológico ou psicológico"
Tipo Notícia Por

 

 

Seja pela religião ou cultura, a busca da humanidade por estados alterados de consciência por meio da ingestão de algum tipo de substância já possui registros de mais de 13 milênios.

Os primeiros registros de drogas usadas pela humanidade remontam a tempos ancestrais. Segundo pesquisas, a cannabis, por exemplo, é cultivada há mais de 10 mil anos e era muito apreciada pelas civilizações antigas por suas propriedades medicinais e psicoativas.

Acredita-se que ela tenha sido utilizada não apenas para fins religiosos e rituais, mas também como analgésico e sedativo. Já os sinais mais antigos do álcool estão em uma caverna no Monte Carmelo, em Israel, onde foram encontrados grânulos de amido nas ferramentas, revelando a fabricação de cerveja. 

 

Linha do tempo mostra histórico de uso de drogas

 


Mas o que você define como ‘droga’? Para Sidarta Ribeiro, neurocientista e biólogo, é “qualquer substância que altere o seu estado fisiológico ou psicológico”. Dentro deste contexto, podemos classificar as lícitas e ilícitas.

A principal diferença está no consumo. Enquanto as drogas lícitas, como tabaco, álcool, medicações e café, são permitidas por lei e aceitas pela sociedade, as ilícitas, como maconha, cocaína, crack, ecstasy, LSD, heroína e inalantes, têm seu uso e comercialização ilegais, carregando um estigma maior.

Segundo Sidarta Ribeiro, também escritor e pesquisador de temas relacionados à cannabis e psicodélicos, a procura pela droga surge da ânsia do ser humano de alterar seus estados fisiológicos e psicológicos.

Sidarta Ribeiro é neurocientista, biólogo, pesquisador e escritor brasileiro (Foto: Luiza Mugnol/Divulgação)
Foto: Luiza Mugnol/Divulgação Sidarta Ribeiro é neurocientista, biólogo, pesquisador e escritor brasileiro

“Se sinto dor, tomo um remédio. Se sinto uma angústia emocional, tomo uma cachaça ou fumo um baseado para diminuí-la. São sempre necessidades humanas. Ninguém vive sem drogas”, afirma.

Para ele, o uso por adictos não é a questão, mas sim seu uso problemático e recriativo, muitas vezes ligado à falta de vínculos humanos. Além disso, é necessária a consciência sobre o consumo de “drogas que as pessoas nem consideram como drogas”, como o açúcar e os ultraprocessados.

“Para a ciência, a separação não faz sentido. Ela acontece por razões políticas, raciais e econômicas. Quem deve ajudar quem tem problemas é uma equipe de saúde, não a polícia. Quem considera as drogas problema da sociedade costuma ir à drogaria a toda hora, e a cidade está cheia delas”, enxerga.

O neurocientista destaca que não é sobre moralismo, pois cada pessoa é diferente e fará escolhas distintas, mas sim sobre informação de boa qualidade, pureza das substâncias para saber o que se está consumindo, esclarecimento, redução de danos e proteção dos vulneráveis — da infância, da adolescência e das pessoas em geral contra o uso problemático.

“São vários fatores que não são apenas do indivíduo, da sua genética ou da sua história de vida, mas também do seu cotidiano. Muita gente precisa esquecer a vida ruim que leva. Não podemos olhar para essa questão como se fosse um problema das substâncias, é um problema das relações humanas”, explica.

Infelizmente, mais de 3 milhões de pessoas morrem por ano , em todo o mundo, devido ao abuso de substâncias, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Recentemente, o Relatório Mundial sobre Drogas 2025 revelou que o uso de entorpecentes cresceu 28% na última década.

Só entre 2023 e 2024, 316 milhões de pessoas no mundo usaram alguma droga, excluindo álcool e tabaco. Assim, com 244 milhões de usuários, a maconha permanece como a droga mais consumida, seguida por opioides (61 milhões), anfetaminas (30,7 milhões), cocaína (25 milhões) e ecstasy (21 milhões).

No Brasil, 16,8 milhões de pessoas já experimentou drogas ilícitas, sendo a maconha a mais consumida (8,8%), seguida por cocaína (3,1%) e crack/similares (0,9%) (Foto: Reprodução /  Adobe Stock)
Foto: Reprodução / Adobe Stock No Brasil, 16,8 milhões de pessoas já experimentou drogas ilícitas, sendo a maconha a mais consumida (8,8%), seguida por cocaína (3,1%) e crack/similares (0,9%)

Houve também avanço do tráfico ilegal de medicamentos entre 2015 e 2023, incluindo substâncias como codeína, tramadol, cetamina, fentanil e metadona — muitas vezes falsificadas, representando riscos sérios à saúde pública.

O relatório também destaca que novos grupos de pessoas vulneráveis, que fogem de dificuldades, instabilidade e conflito, podem fazer esses números aumentarem ainda mais.

Sidarta Ribeiro ressalta que não existe uma substância melhor ou pior do que a outra, mas sim as especificidades de cada caso, discutindo dose, frequência, contexto e qualidade da substância.

“Proibir umas e glorificar outra não nos levará a lugar nenhum. A guerra às drogas é uma guerra contra certas pessoas que a utilizam. A mesma polícia que vai à favela e mata jovens pretos em nome disso protege as festas da classe alta, onde muitas delas são consumidas. A proibição só gera corrupção do Estado e sofrimento para a população vulnerável”, aponta.

Substâncias viciantes, incluindo álcool, cigarros e drogas(Foto: Monticellllo / AdobeStock)
Foto: Monticellllo / AdobeStock Substâncias viciantes, incluindo álcool, cigarros e drogas

Ele revela que, desde 2018, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) defende a legalização de todas as drogas, para assim regulá-las de acordo com suas especificidades.

Sobre o modelo brasileiro de comunidades terapêuticas com viés religioso, em geral, o pesquisador as vê como “não plurais, pois submetem pessoas vulneráveis a uma única doutrinação”. Ele também lembra que tanto a maconha quanto os psicodélicos possuem diversas aplicações terapêuticas.

“São substâncias poderosas e muito importantes para a saúde de pessoas com diferentes condições. Precisamos de uma regulamentação que estabeleça, para todas, um esclarecimento sobre os possíveis malefícios e efeitos adversos”, finaliza.

 

 

Uma relação tóxica

O uso problemático de drogas acarreta uma série de consequências que podem ser imediatas ou se manifestarem a longo prazo. Nesse caso, é a dependência dessas substâncias que se torna o verdadeiro vilão. Cada droga tem um efeito diferente em nosso corpo e, com isso, essa doença crônica altera o comportamento e faz com que a pessoa sinta uma necessidade incontrolável de usá-la.

Isso resulta, para além de maiores riscos para as Doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), em sintomas como alterações de humor, transtornos psicóticos, distúrbios do sono, comprometimento da coordenação motora, problemas cardiovasculares, danos ao fígado, problemas respiratórios, desnutrição e perda de peso, sintomas de abstinência, overdose e muito mais.

 

Riscos específicos do uso de algumas drogas

 

A adicção, por exemplo, é um transtorno psicológico associado à dependência de substâncias ou comportamentos que geram recompensa imediata. Por mais que a pessoa entenda os danos, ela não consegue ficar livre, pois a adicção altera a química cerebral e cria um ciclo de desejo intenso e uso contínuo.

Durante o Brain Congress 2025, o psiquiatra Fabio Gomes de Matos levantou uma discussão acerca da relação dos transtornos mentais com o uso de drogas, afirmando que “é difícil definir quem é o primário e o secundário”.

Para ele, algumas drogas, como a maconha e os psicodélicos, podem sim desencadear transtornos mentais no indivíduo, porém, todas influenciam, e o verdadeiro perigo está no padrão e no uso de várias substâncias ao mesmo tempo.

O psiquiatra Fabio Gomes de Matos durante o Brain Congress 2025(Foto: Rafael Santana )
Foto: Rafael Santana O psiquiatra Fabio Gomes de Matos durante o Brain Congress 2025

“A relação entre os dois é um problema que pode acontecer ao mesmo tempo. Existe um fundo genético e barreiras para o tratamento, e, em muitos casos, o uso de algumas substâncias se torna uma ferramenta aliada na recuperação do indivíduo, focando sempre na redução de danos”, explica.

Um dos maiores alertas do médico é quanto ao uso recreativo e na prevalência dele durante a adolescência. “Durante essa fase, estamos vivendo uma ‘Gravidez Cerebral’, já que nosso cérebro se forma totalmente aos 25 anos. O vício é mais prevalente quando o consumo começa cedo”, destaca.

O neurocientista destaca que não é sobre moralismo, pois cada pessoa é diferente e fará escolhas distintas, mas sim sobre informação de boa qualidade, pureza das substâncias para saber o que se está consumindo, esclarecimento, redução de danos e proteção dos vulneráveis — da infância, da adolescência e das pessoas em geral contra o uso problemático.

 

10 dicas de redução de danos para o uso de drogas lícitas e ilícitas

 

Para Karin Di Monteiro, pesquisadora e professora com experiência nas áreas de neurociências, as drogas sintéticas ou semissintéticas, produzidas em laboratório ou derivadas de plantas, possuem um potencial maior de causar dependência devido à sua alta potência.

Como a cocaína, por exemplo, que em sua forma refinada e em pó, tem uma concentração de princípio ativo muito maior do que a folha de coca, consumida em chá por povos originários. Já os antidepressivos também possuem alta potência, já que modificam a atividade cerebral e tratam condições psíquicas.

“Quanto maior for a potência de uma substância, maior seu potencial de causar dependência. Uma pequena dose pode gerar uma resposta de prazer muito rápida e intensa, ou seja, não buscamos drogas para nos sentirmos mal, mas sim para nos sentirmos bem”, explica.

 

 

O tripé da dependência 

No Brasil, o Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (Obod) destacou que 9,9% da população adulta — 16,8 milhões — já experimentou drogas ilícitas, sendo a maconha a mais consumida (8,8%), seguida por cocaína (3,1%) e crack/similares (0,9%).

Além disso, a mortalidade por overdose cresceu 44% na última década, com 8.700 registros em 2023, e o álcool segue como a droga lícita que mais afeta os brasileiros, com 55,5% (uso no último ano), e 18% relatando uso abusivo.

Já o III Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad III) mostrou que 11,4 milhões de brasileiros, a partir de 14 anos, já usaram cocaína ou crack alguma vez na vida. Isso representa 6,6% da população, ou seja, um aumento estatisticamente significativo, já que, em 2012, a taxa era de 4,43%.

Segundo Karin Di, que também atua em diversos projetos na Cracolândia, em São Paulo, que já foi coordenadora e hoje apenas colabora com o núcleo de ensino e pesquisa do Centro de Convivência É de Lei, a oferta e o estímulo ao consumo também contribuem para o uso de drogas.

Karin Di é pesquisadora e professora com experiência nas áreas de neurociências, além disso, atua em diversos projetos na Cracolândia, em São Paulo(Foto: Arquivo Pessoal )
Foto: Arquivo Pessoal Karin Di é pesquisadora e professora com experiência nas áreas de neurociências, além disso, atua em diversos projetos na Cracolândia, em São Paulo

“A indústria do álcool é extremamente poderosa e associa o lazer ao consumo de bebidas. Essa pressão para o consumo pode desviar a atenção de problemas sociais maiores, como as condições de trabalho. Em vez de lutar por melhores condições, as pessoas podem buscar alívio imediato nas substâncias”, enxerga.

Ela explica que o consumo de drogas não se resume ao poder dela em si, mas é o resultado de um tripé: o sujeito, o contexto e a substância.

“Precisamos olhar para a interação entre esses três elementos. A cocaína, por exemplo, é usada tanto por executivos para aumentar a produtividade quanto por pessoas em situação de vulnerabilidade. Muitas pessoas na Cracolândia nunca haviam usado crack antes de irem para a rua”, afirma.

Karin lembra que o estigma do usuário é um fator crucial, já que pessoas pretas, pobres e periféricas que se envolvem com drogas enfrentam riscos muito maiores, como o tráfico, o crime e a violência. Ou seja, esse grupo está mais suscetível à rua, mesmo que o uso de drogas atinja todas as classes sociais.

“Na Cracolândia aprendi a importância da escuta. Pessoas que conseguem sair de lá muitas vezes relatam que foi porque alguém as viu e as escutou. A vergonha, o mau cheiro ou o fato de estarem sob o efeito de alguma substância as impedem de buscar ajuda, ou de alguém se aproximar para tal”, diz.

Na imagem aparecem diferentes medicamentos e seringas em fundo de madeira(Foto: Leonid Lastremskyi / AdobeStock)
Foto: Leonid Lastremskyi / AdobeStock Na imagem aparecem diferentes medicamentos e seringas em fundo de madeira

O trabalho da pesquisadora é no foco da redução de danos, que abrange diversas estratégias para diminuir os riscos e as consequências do uso de substâncias. Isso inclui a interação entre pares e prevenir violências, como assédios e roubos, que podem ocorrer quando a pessoa está sob o efeito de alguma droga.

Segundo ela, o primeiro passo é na informação verdadeira, real e baseada em evidências. Já quando falamos de crianças e adolescentes, o foco é a prevenção.

“É um problema complexo que não pode ser centrado apenas na droga. Ela em si não tem o poder de levar alguém à morte ou à rua. Nosso papel é amenizar o sofrimento e promover a educação política, para as pessoas entenderem que a culpa não é só delas, mas de todo um sistema”, finaliza.

 

 

A busca por um recomeço

Alegre, cativante e inspiradora, é assim que AS (preferimos usar apenas suas iniciais), de 41 anos, se define. Criada no bairro Bom Jardim, em Fortaleza, foi na gastronomia que ela encontrou o seu verdadeiro amor. Faz um pouco de tudo, e os seus biscoitos encantam a todos que os experimentam.

Por trás de todo esse talento e um sorriso cativante, AS está há seis anos se recuperando de uma dependência química. Foram 12 anos consumindo cocaína, relação essa que foi ficando mais intensa com o passar dos anos, tornando-se diária.

O primeiro contato com a droga aconteceu no seu aniversário de 22 anos, quando um amigo de infância a chamou para experimentar “algo novo e maneiro”. A droga era barata, R$ 10. "Por que não?". O acesso também era fácil; aliás, “aqui no bairro é fácil de encontrar”

“Eu usava cocaína para preencher um vazio que nem eu sei qual é. A droga me trazia uma euforia, uma alegria que me fazia esquecer de tudo. Quando o efeito passava, a realidade voltava de uma vez”, lembra.

Imagem gerada por IA busca traduzir conceito de dependência química com uma elemento central que retrata a turbulência, a luta contra os custos físicos e emocionais do vício. A luta e a jornada de indivíduos afetados pela condição(Foto: Ankreative / AdobeStock)
Foto: Ankreative / AdobeStock Imagem gerada por IA busca traduzir conceito de dependência química com uma elemento central que retrata a turbulência, a luta contra os custos físicos e emocionais do vício. A luta e a jornada de indivíduos afetados pela condição

Todo o dinheiro da cozinheira ia para o vício. Quando não tinha, ela chegou a roubar a sua mãe, irmã e seu pai. O momento de pedir ajuda foi quando AS percebeu que seu corpo não aguentava mais e que não havia mais espaço para a vontade de usar.

“Cheguei a gastar todo o meu décimo terceiro em um único dia, sem me importar com minha filha ou minha família. Eu me considerava uma ‘noia caseira’, pois usava sozinha, em casa, o que talvez tenha mascarado a gravidade por um tempo”, enxerga.

O apoio inicial veio de sua mãe, mas foi só em uma comunidade terapêutica, que AS conseguiu largar o vício. A recuperação é diária e a abstinência foi muito forte, marcada por crises intensas. Durante esses últimos anos, ocorreram recaídas, muitas vezes ligadas a gatilhos.

“A dependência química é uma doença, como diabetes ou hipertensão, eu não posso usar nada. Nunca tive problemas com álcool, mas sei que se eu tomar uma cerveja hoje, o gatilho para a cocaína será ativado. Hoje busco me apegar à minha espiritualidade”, explica.

A dependência química é uma doença, como diabetes ou hipertensão, eu não posso usar nada, conta uma dependente em recuperação há seis anos(Foto: Ben Goode / AdobeStock)
Foto: Ben Goode / AdobeStock A dependência química é uma doença, como diabetes ou hipertensão, eu não posso usar nada, conta uma dependente em recuperação há seis anos

Olhando para trás, AS se questiona o que a levou ao vício, mesmo relatando o local violento onde viveu, vendo amigos de infância que brincavam com ela se tornarem chefes de facção e, por consequência, serem presos ou mortos, ou os desafios diários marcados por sua raça e sexualidade.

“Minha mãe é católica, sempre fui à igreja e ela sempre me orientou sobre o certo e o errado, desde o uso de camisinha até outros cuidados. Tive uma boa estrutura familiar. Será que meu gatilho foi apenas a curiosidade apresentada por um amigo?”, se questiona.

Atualmente, AS segue morando na comunidade e é uma das atuais acolhedoras. Uma de suas maiores dificuldades, além do controle do vício, é a abdicação de se relacionar novamente. Para ela, o “sim” para a recuperação tem de vir de dentro da pessoa.

“Estar aqui hoje foi um teste, pois sei exatamente onde encontrar a droga. Não adianta dizer nada se a pessoa não reconhecer que precisa de ajuda. Meu primeiro passo se manifestou no fundo do poço em que eu estava. Procure sua essência, aquela pessoa que você era antes das drogas, busque sua inocência”, aconselha.

 

 

Pesquisa mostra situação em Fortaleza

Um estudo do Levantamento de Cenas de Uso de Capitais (Lecuca), realizado entre 2021 e 2022 em Fortaleza, Brasília e São Paulo, investigou dados de frequentadores das cenas abertas de uso de crack (CAUs).

Em Fortaleza, a coleta ocorreu em agosto de 2021 no Bairro Moura Brasil, conhecido como “Oitão Preto”, e quatro perímetros foram delimitados para a pesquisa. Foram entrevistados 140 participantes, contribuindo para um índice de resposta de 75% no total do estudo.

Com isso, conseguimos entender um pouco mais do nosso cenário. Foi revelado que a capital cearense tem uma prevalência alarmante em relação ao consumo de crack, quase equiparada à de São Paulo, onde cerca de 80% dos participantes relatam o uso da droga (77,7%).

Registro de utilização de droga no Egito antigo(Foto: Reprodução Wikipedia)
Foto: Reprodução Wikipedia Registro de utilização de droga no Egito antigo

A maioria desses usuários são homens e pardos, somando 53,1% do total. Surpreendentemente, apesar da alta prevalência de uso, observa-se um menor índice de pessoas em situação de rua, com 51,5% dos frequentadores indicando possuir moradia fixa.

No que tange à educação, foi apresentada uma maior proporção de indivíduos que nunca estudaram (7,6%). Apesar disso, a taxa de frequentadores que não realizam nenhuma atividade remunerada é menor (58,9%), o que pode indicar formas de engajamento em atividades econômicas, mesmo que informais.

Infelizmente, a rede de suporte social para emergências é um ponto crítico em Fortaleza, com quase metade dos frequentadores (50%) sem acesso. Para aqueles que possuem suporte, a família se destaca como a principal fonte de apoio (65,0%), seguida por conhecidos e amigos (42,5%). 

Além disso, 46,4% dos frequentadores relataram ter praticado sexo desprotegido, e a cidade apresenta a menor taxa de testagem para Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) entre as capitais pesquisadas. As testagens para hepatites B (36,2%) e C (32,3%) foram consideradas particularmente baixas.

O acesso a equipamentos de saúde especializados é precário, com baixos índices para hospitais psiquiátricos (8,5%) e Centros de Atenção Psicossocial, Álcool e Drogas (CAPS-AD) (9,3%). A Unidade Básica de Saúde (UBS) é o único equipamento do SUS amplamente disponível, com alta prevalência de uso (69,0%).

Por fim, uma das características predominantes é o uso recluso da droga, sugerindo que o consumo ocorre em ambientes mais privados. A outra é a presença de mulheres envolvidas na venda de drogas, mostrando que essa atividade está incorporada na rotina diária.

 

 

Iniciativas que salvam

Em um mundo que frequentemente combate o uso de drogas com uma narrativa de guerra e proibição, o Movimento Saúde Mental (MSM), que atua no Grande Bom Jardim, em Fortaleza, rema na direção oposta há três décadas.

A pergunta que norteia não é “por que a pessoa usa drogas?”, mas sim “por que a pessoa não sente prazer de viver?”. A resposta encontrada e aplicada diariamente foi simples: em vez de falar sobre drogas, falar sobre a vida.

Esta filosofia é a alma do Projeto Sim à Vida, uma iniciativa que nasceu em 1998 como um projeto de extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC), fundado por Padre Rino Bonvini, médico psiquiatra e padre missionário, em parceria com o professor Antônio Mourão Cavalcante.

O objetivo era, e continua sendo, a prevenção. Em latim, prevenire significa “chegar antes”, e é exatamente isso que o projeto se propõe a fazer: chegar antes que a dor, a exclusão e a baixa autoestima levem um jovem a buscar refúgio nas drogas.

Padre Rino é presidente do Movimento Saúde Mental (MSM), além de escritor, médico psiquiatra e padre missionário (Foto: Rafael Santana )
Foto: Rafael Santana Padre Rino é presidente do Movimento Saúde Mental (MSM), além de escritor, médico psiquiatra e padre missionário

Padre Rino é presidente do MSM. Segundo ele, o uso de substâncias muitas vezes começa quando a pessoa, especialmente na infância e adolescência, não tem a oportunidade de se reconhecer em seu próprio valor e desenvolver seus talentos.

“O desafio é criar um espaço prazeroso, onde a pessoa tenha um espaço de autoconhecimento, de fortalecimento da autoestima e a possibilidade de desenvolver suas múltiplas inteligências: artística, musical, pictórica, sinestésica, teatral, ecológica”, afirma.

Para ele, a meta é que a vida seja vivida em sua integralidade biopsicossocial-espiritual. “Não é só o componente genético; quando a pessoa busca a substância, o mal-estar, o desespero, a inadequação, a baixa autoestima e a dor da exclusão já se manifestaram”, explica.

A base teórica que sustenta todo o trabalho do MSM é a Abordagem Sistêmica Comunitária (ASC), desenvolvida por Padre Rino. Essa metodologia estende os princípios da terapia familiar para a comunidade inteira, enxergando-a como um sistema vivo, com capacidade de se auto-organizar, se equilibrar e se curar.

A ASC se apoia em três pilares fundamentais: Autopoiese Comunitária (a capacidade da comunidade de se regenerar e se reinventar), Trofolaxe Humana (a troca de afeto, cuidado e saberes como nutriente essencial para a saúde coletiva) e a Sintropia (tendência natural dos sistemas vivos de evoluir para formas mais complexas e organizadas). Na prática, essa abordagem se manifesta através das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), muitas das quais integradas ao SUS.

O MSM se torna um centro de cura e desenvolvimento através de atividades coletivas como: Arteterapia, Biodança, Constelação Familiar, Meditação, Yoga e Terapia Comunitária Integrativa, além de cuidados individuais, como acupuntura, reiki, massoterapia, terapias de florais, entre muitas outras.

“Quando a pessoa já está usando drogas, a primeira energia a ser mobilizada é a motivação para parar. Em uma roda de conversa, uma pessoa com um problema pode ouvir dez maneiras diferentes de resolvê-lo e se identificar com a experiência de outra, percebendo que também pode conseguir. É a sabedoria coletiva, a sabedoria do povo, que se manifesta pela comunicação”, destaca.

O médico psiquiatra aponta o álcool como “a droga mais perigosa”, já que não recebe a devida atenção por ser barato e por haver grandes interesses econômicos por trás, além de abrir portas para outros vícios e afetar diretamente quem tem disposição genética.

No Movimento Saúde Mental do Bom Jardim, a abordagem no tratamentos de pessoas em recuperação passa por refletir sobre a vida e não sobre as drogas(Foto: AdobeStock)
Foto: AdobeStock No Movimento Saúde Mental do Bom Jardim, a abordagem no tratamentos de pessoas em recuperação passa por refletir sobre a vida e não sobre as drogas

Sobre religião, o Padre Rino critica o uso proselitista, ou seja, quando se aproveita da fragilidade da pessoa para manipulá-la a abraçar uma fé específica.

“É o que podemos chamar de ‘cristoterapia’, uma distorção do Evangelho. Cristo é a terapia, a cura, mas usar seu nome para condicionar alguém é aprisioná-lo em uma nova dependência. Em nossa abordagem o primeiro passo é a acolhida”, esclarece.

O MSM realizou mais de 40 mil atendimentos e conta com 23 voluntários ativos. Padre Rino, além de escritor, foca no resgate da autoestima e das raízes culturais indígenas. Em decorrência disso, atualmente, o MSM atua na comunidade Pitaguary, em Maracanaú.

“O primeiro é o autoconhecimento. Se a pessoa está em uma dor profunda, à medida que essa dor é compreendida e as feridas são curadas, a energia que era usada para manter essa dor afastada pode ser canalizada para se realizar, crescer, estudar e amar”, finaliza.

 

Onde procurar ajuda em Fortaleza


O que você achou desse conteúdo?