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Furacão Katrina 20 anos depois: lições sobre meio ambiente e desigualdade
Reportagem Especial

Furacão Katrina 20 anos depois: lições sobre meio ambiente e desigualdade

Duas décadas depois de um dos mais emblemáticos desastres naturais do século XXI, é mais importante do que nunca recordar as lições do Katrina para evitar repetir os erros do passado — nos quais as desigualdades social e racial são decisivas entre quem morre e quem sobrevive

Furacão Katrina 20 anos depois: lições sobre meio ambiente e desigualdade

Duas décadas depois de um dos mais emblemáticos desastres naturais do século XXI, é mais importante do que nunca recordar as lições do Katrina para evitar repetir os erros do passado — nos quais as desigualdades social e racial são decisivas entre quem morre e quem sobrevive
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Árvores foram arrastadas por quilômetros. Marcas de água atingiram 6 metros de altura, deixando as paredes das casas escurecidas. Buracos em telhados revelavam onde famílias desesperadas haviam usado machados para tentar escapar das enchentes avassaladoras.

Esse foi o cenário que Lori Peek encontrou duas semanas após o Furacão Katrina atingir a costa dos Estados Unidos em agosto de 2005.

Você olhava para as casas e precisava fazer uma pausa e ficar em silêncio,” lembra Peek, que poucos meses antes do Katrina havia obtido seu doutorado em Sociologia pela Universidade do Colorado e voltado para casa, na Louisiana.

ParaTodosVerem: Lori Peek é professora do Departamento de Sociologia e também diretora do Centro de Riscos Naturais do Instituto de Ciências Comportamentais da Universidade do Colorado. Ela é uma mulher branca, de cabelos castanhos na altura dos ombros e está usando uma blusa azul de mangas compridas. (Foto: Arquivo Pessoal )
Foto: Arquivo Pessoal ParaTodosVerem: Lori Peek é professora do Departamento de Sociologia e também diretora do Centro de Riscos Naturais do Instituto de Ciências Comportamentais da Universidade do Colorado. Ela é uma mulher branca, de cabelos castanhos na altura dos ombros e está usando uma blusa azul de mangas compridas.

Semanas após a tempestade, ela resolveu iniciar um estudo colaborativo sobre os impactos do Katrina nas crianças.

“Não saber se as pessoas sobreviveram ou o que aconteceu com as crianças e seus pais... São imagens que nunca esquecerei”, relata. A pesquisadora foi entrevistada por e-mail pelo O POVO+.

Vinte anos depois, Peek foi coautora de três livros e quase 20 trabalhos de pesquisa sobre a tempestade histórica. O evento matou mais de 1.800 pessoas, deslocou por volta de 1,2 milhão de moradores da Costa do Golfo e separou cerca de 5.000 crianças de suas famílias, conforme dados da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (NOAA)

ParaTodosVerem: Um bebê é passado por cima da multidão enquanto as pessoas esperam para sair do ginásio Superdome, em Nova Orleans, em  2005(Foto: James Nielsen / AFP)
Foto: James Nielsen / AFP ParaTodosVerem: Um bebê é passado por cima da multidão enquanto as pessoas esperam para sair do ginásio Superdome, em Nova Orleans, em 2005

Agora, como diretora do Centro de Riscos Naturais e professora de sociologia na Universidade do Colorado, ela vê o Katrina como um ponto de virada fundamental para a sociedade.

A tempestade não só revelou o que é possível, meteorologicamente, em meio a um clima cada vez mais instável, como escancarou o cenário de desigualdades sociais que tornam algumas populações mais vulneráveis a riscos naturais.

 

Como Nova Orleans incorporou a desigualdade em seu DNA

Nova Orleans nasceu desigual. À medida que a cidade crescia como um centro comercial no século XVIII, os residentes ricos reivindicavam os melhores imóveis, muitas vezes em terrenos mais elevados formados por sedimentos fluviais.

A cidade tinha poucos desses terrenos elevados, então todos os outros acabaram por ficar nas áreas periféricas. Elas eram mais próximas dos pântanos, onde os terrenos eram baratos e as inundações eram comuns.

No início do século XX, uma nova tecnologia de bombeamento de água permitiu o desenvolvimento imobiliário em pântanos propensos a inundações. No entanto, o bombeamento causou uma grave erosão do solo, o que agravou as inundações em bairros como Lakeview, Gentilly e Broadmoor.

ParaTodosVerem: Uma imagem de satélite mostra o furacão Katrina no momento em que ele atingiu a costa dos Estados Unidos, em 29 de agosto de 2005 (Foto: National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) / AFP)
Foto: National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) / AFP ParaTodosVerem: Uma imagem de satélite mostra o furacão Katrina no momento em que ele atingiu a costa dos Estados Unidos, em 29 de agosto de 2005

Então, na década de 1930, começou uma prática conhecida como “redlining”, termo em inglês que se refere à discriminação socioeconômica baseada na localização de comunidades.

Para orientar as decisões de empréstimos federais, as agências governamentais começaram a usar mapas que classificavam os bairros segundo o risco financeiro. Bairros predominantemente negros eram normalmente marcados como “alto risco”, independentemente da qualidade real das moradias.

Isso criou um ciclo vicioso: famílias negras e de baixa renda já estavam presas em áreas propensas a inundações porque era lá que ficavam os terrenos baratos.

Neste mapa de 1939 elaborado para o Federal Home Loan Bank Board, a discriminação separava Nova Orleans em classes. O verde representa a classe A, ou primeira classe; seguido pelo azul, amarelo e vermelho, que é o último, representando a classe D, ou quarta classe. (Foto: Arquivo Nacional dos Estados Unidos da América /Mapping Inequality Project/Universidade de Richmond)
Foto: Arquivo Nacional dos Estados Unidos da América /Mapping Inequality Project/Universidade de Richmond Neste mapa de 1939 elaborado para o Federal Home Loan Bank Board, a discriminação separava Nova Orleans em classes. O verde representa a classe A, ou primeira classe; seguido pelo azul, amarelo e vermelho, que é o último, representando a classe D, ou quarta classe.

A discriminação manteve os valores de suas propriedades mais baixos. A população negra também foi privada de hipotecas garantidas pelo governo e dos benefícios habitacionais, concedidos, por exemplo, para ex-militares.

Assim, quando o furacão chegou, ficou nítido como as decisões de zoneamento urbano se traduziam em desigualdade.

 

 

Quando a história cobrou seu preço 

Em 29 de agosto de 2005, quando o furacão Katrina atingiu Nova Orleans, os diques que protegiam a cidade romperam-se e a água inundou cerca de 80% da cidade.

Os danos seguiram a geografia racial — padrões espaciais de onde os residentes negros e brancos viviam devido a décadas de segregação — como um projeto bem arquitetado.

Cerca de três quartos dos residentes negros sofreram com inundações graves, em comparação com metade dos residentes brancos.

ParaTodosVerem: Um homem espera para ser resgatado de um telhado enquanto as águas da enchente continuam a subir, em 2 de setembro de 2005, em Nova Orleans.(Foto: Robert Galbraith / AFP)
Foto: Robert Galbraith / AFP ParaTodosVerem: Um homem espera para ser resgatado de um telhado enquanto as águas da enchente continuam a subir, em 2 de setembro de 2005, em Nova Orleans.

Entre 100 mil e 150 mil pessoas não puderam ser evacuadas. Eram, em sua maioria, idosos, negros, pobres e pessoas sem carro.

Entre os sobreviventes que não foram evacuados, 55% não tinham nenhum meio de transporte para sair da cidade, e 93% eram negros.

Por ser o fim do mês, muitos também não tinham condições de arcar com passagens de ônibus. Como resultado, mais de 1.800 pessoas morreram.

Essa falta de meios transporte deixou as pessoas presas na geografia em forma de concha da cidade, incapazes de escapar quando os diques romperam.

 

 

Recuperar para quem não perdeu 

Após o furacão Katrina, o governo federal criou o programa Road Home para ajudar os proprietários a reconstruir suas casas, mas com uma falha de concepção devastadora: calculava a ajuda com base no valor da casa antes do furacão ou nos custos de reparo, o que fosse menor.

Isso significa que os proprietários de baixa renda, que já viviam em áreas com valores imobiliários mais baixos devido ao histórico de discriminação, recebiam menos dinheiro.

ParaTodosVerem: Um morador usa uma prancha para remar pelas águas da enchente em Nova Orleans, em agosto de 2005.(Foto: James Nielsen / AFP)
Foto: James Nielsen / AFP ParaTodosVerem: Um morador usa uma prancha para remar pelas águas da enchente em Nova Orleans, em agosto de 2005.

Ou seja, se uma família com casa avaliada em US$ 50 mil precisasse de US$ 80 mil em reparos, ela receberia apenas US$ 50 mil. Enquanto isso, outra família com uma casa de US$ 200 mil que precisasse dos mesmos US$ 80 mil em reparos receberia o valor integral da reforma. 

A diferença média entre as estimativas de danos e os fundos de reconstrução era de US$ 36 mil.

“Mesmo 10 anos após o Katrina, os dados mostram que as pessoas de baixa renda, residentes negros, mães solteiras e pessoas com deficiência eram menos propensas a voltar para casa”, aponta a professora Lori Peek.

ParaTodosVerem: Um homem se agarra ao teto de um veículo antes de ser resgatado pela Guarda Costeira dos EUA das ruas inundadas após o furacão Katrina em Nova Orleans, em 4 de setembro de 2005(Foto: Robert Galbraith / AFP)
Foto: Robert Galbraith / AFP ParaTodosVerem: Um homem se agarra ao teto de um veículo antes de ser resgatado pela Guarda Costeira dos EUA das ruas inundadas após o furacão Katrina em Nova Orleans, em 4 de setembro de 2005

“Importante dizer que esses sobreviventes não foram passivos. Muitas pesquisas documentaram a incrível engenhosidade e força de famílias que trabalharam incansavelmente para reconstruir suas vidas após a catástrofe”, relata.

Uma década após o furacão Katrina, enquanto 70% dos residentes brancos achavam que Nova Orleans havia se recuperado, apenas 44% dos residentes negros podiam olhar ao redor de seu bairro e dizer o mesmo.

E esse padrão não é exclusivo de Nova Orleans. Um estudo que analisou dados do furacão Andrew, em Miami (1992), e do furacão Ike, em Galveston (2008), descobriu que a recuperação habitacional foi consistentemente lenta e desigual em bairros de baixa renda e minorias.

Os corpos de duas vítimas do furacão permanecem em uma porta do ginásio esportivo Superdome, em Nova Orleans, no dia 2 de setembro de 2005 (Foto: James Sullivan / AFP)
Foto: James Sullivan / AFP Os corpos de duas vítimas do furacão permanecem em uma porta do ginásio esportivo Superdome, em Nova Orleans, no dia 2 de setembro de 2005

Famílias de baixa renda têm menos chances de ter seguro ou poupança adequados para uma reconstrução rápida.

Além disso, casas de baixo valor com danos extensos ainda não haviam recuperado seu valor pré-tempestade quatro anos depois, enquanto casas de valor mais alto que sofreram danos moderados ganharam valor.

 

 

Depois da tempestade, nem sempre vem a bonança

As lições do furacão Katrina sobre a desigualdade dos desastres são importantes para as comunidades atuais, à medida que as mudanças climáticas trazem condições meteorológicas mais extremas.

As taxas de recusa da Agência Federal de Gerenciamento de Emergências (Fema) para ajuda em desastres continuam altas devido a obstáculos burocráticos.

Processos de solicitação complexos que fazem os sobreviventes passarem por várias agências, muitas vezes resultam em recusas e atrasos de recursos financeiros essenciais.

ParaTodosVerem: As águas da enchente causada pelo furacão Katrina cobrem um cemitério em 30 de agosto de 2005, em Nova Orleans(Foto: Vincent Laforet / AFP)
Foto: Vincent Laforet / AFP ParaTodosVerem: As águas da enchente causada pelo furacão Katrina cobrem um cemitério em 30 de agosto de 2005, em Nova Orleans

Essas são as mesmas barreiras sistêmicas que contribuíram para que as comunidades negras se recuperassem mais lentamente após o furacão Katrina.

O próprio conselho consultivo da Fema relatou que as políticas de assistência institucional tendem a enriquecer áreas mais ricas, predominantemente brancas, enquanto prejudicam as comunidades de baixa renda e minorias em todas as etapas da resposta a desastres.

 

 

Conexão Brasil - Nova Orleans 

No Brasil, apesar de não serem registrados furacões, eventos climáticos extremos também não poupam os mais pobres.

Uma pesquisa da Datafolha revelou que a população mais pobre, negra e com menor escolaridade foi aquela que mais sofreu perdas de patrimônio e de renda nas enchentes dos no Rio Grande do Sul, em 2024.

Nas cidades atingidas pelas inundações, quase metade (47%) das famílias que ganhavam até dois salários mínimos respondeu ter perdido casa, móveis, eletrodomésticos ou o próprio sustento.

Destroços no Rio Grande do Sul, após enchentes de 2024(Foto: NELSON ALMEIDA / AFP)
Foto: NELSON ALMEIDA / AFP Destroços no Rio Grande do Sul, após enchentes de 2024

Já entre aquelas com renda de cinco a dez salários, só 13% relatam algum tipo de prejuízo. Além disso, mais da metade (52%) das pessoas pretas nos municípios afetados relata algum tipo de perda com as enchentes.

Entre os pardos, 40% responderam que teve algum tipo de prejuízo. Entre a população branca dessas mesmas cidades, a proporção de entrevistados que relatou alguma perda material ou de renda foi de 26%.

O arquiteto e urbanista William Mog, assessor técnico do Ministério Público gaúcho, diz que a proporção maior de pobres, pardos e pretos entre os afetados por tragédias climáticas é um padrão nacional pela dificuldade de acesso dessas populações à moradia formal.

Vista dos danos causados por um ciclone em Roca Sales, estado do Rio Grande do Sul, Brasil, em 7 de setembro de 2023(Foto: SILVIO AVILA / AFP)
Foto: SILVIO AVILA / AFP Vista dos danos causados por um ciclone em Roca Sales, estado do Rio Grande do Sul, Brasil, em 7 de setembro de 2023

"Essas famílias não poderiam estar nessas áreas, à beira de rios ou nas encostas de morros, do ponto de vista da legislação ambiental. E o fato de estarem ali é um indicativo de que elas não têm condição de entrar no mercado imobiliário formal, não têm dinheiro para isso", ele diz.

"Essas áreas estão fora do mercado formal justamente por serem suscetíveis às cheias e a deslizamentos.

Em Fortaleza, uma das áreas de risco mais conhecidas é a região marginal do rio Maranguapinho.

ParaTodosVerem: A imagem mostra várias casas do bairro Granja Lisboa, construídas na margem do rio Maranguapinho (Foto: JÚLIO CAESAR)
Foto: JÚLIO CAESAR ParaTodosVerem: A imagem mostra várias casas do bairro Granja Lisboa, construídas na margem do rio Maranguapinho

Anunciado em agosto de 2025, um projeto do Governo do Estado do Ceará prevê desapropriar 700 famílias que vivem em áreas próximas a riachos e canais afluentes do curso d'água.

O objetivo do Projeto de Urbanização dos Afluentes do Rio Maranguapinho, segundo a Secretaria das Cidades (SCidades), é melhorar as condições de habitação dessas pessoas e realizar a recuperação socioambiental de seis afluentes.

Ao todo, de acordo com a SCidades, o projeto prevê que, entre as 700 famílias que serão afetadas, 400 serão indenizadas, com orçamento previsto de R$ 40 milhões por meio de recursos do Estado.

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