Árvores foram arrastadas por quilômetros. Marcas de água atingiram 6 metros de altura, deixando as paredes das casas escurecidas. Buracos em telhados revelavam onde famílias desesperadas haviam usado machados para tentar escapar das enchentes avassaladoras.
Esse foi o cenário que Lori Peek encontrou duas semanas após o Furacão Katrina atingir a costa dos Estados Unidos em agosto de 2005.
“Você olhava para as casas e precisava fazer uma pausa e ficar em silêncio,” lembra Peek, que poucos meses antes do Katrina havia obtido seu doutorado em Sociologia pela Universidade do Colorado e voltado para casa, na Louisiana.
Semanas após a tempestade, ela resolveu iniciar um estudo colaborativo sobre os impactos do Katrina nas crianças.
“Não saber se as pessoas sobreviveram ou o que aconteceu com as crianças e seus pais... São imagens que nunca esquecerei”, relata. A pesquisadora foi entrevistada por e-mail pelo O POVO+.
Vinte anos depois, Peek foi coautora de três livros e quase 20 trabalhos de pesquisa sobre a tempestade histórica. O evento matou mais de 1.800 pessoas, deslocou por volta de 1,2 milhão de moradores da Costa do Golfo e separou cerca de 5.000 crianças de suas famílias, conforme dados da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (NOAA)
Agora, como diretora do Centro de Riscos Naturais e professora de sociologia na Universidade do Colorado, ela vê o Katrina como um ponto de virada fundamental para a sociedade.
A tempestade não só revelou o que é possível, meteorologicamente, em meio a um clima cada vez mais instável, como escancarou o cenário de desigualdades sociais que tornam algumas populações mais vulneráveis a riscos naturais.
Nova Orleans nasceu desigual. À medida que a cidade crescia como um centro comercial no século XVIII, os residentes ricos reivindicavam os melhores imóveis, muitas vezes em terrenos mais elevados formados por sedimentos fluviais.
A cidade tinha poucos desses terrenos elevados, então todos os outros acabaram por ficar nas áreas periféricas. Elas eram mais próximas dos pântanos, onde os terrenos eram baratos e as inundações eram comuns.
No início do século XX, uma nova tecnologia de bombeamento de água permitiu o desenvolvimento imobiliário em pântanos propensos a inundações. No entanto, o bombeamento causou uma grave erosão do solo, o que agravou as inundações em bairros como Lakeview, Gentilly e Broadmoor.
Então, na década de 1930, começou uma prática conhecida como “redlining”, termo em inglês que se refere à discriminação socioeconômica baseada na localização de comunidades.
Para orientar as decisões de empréstimos federais, as agências governamentais começaram a usar mapas que classificavam os bairros segundo o risco financeiro. Bairros predominantemente negros eram normalmente marcados como “alto risco”, independentemente da qualidade real das moradias.
Isso criou um ciclo vicioso: famílias negras e de baixa renda já estavam presas em áreas propensas a inundações porque era lá que ficavam os terrenos baratos.
A discriminação manteve os valores de suas propriedades mais baixos. A população negra também foi privada de hipotecas garantidas pelo governo e dos benefícios habitacionais, concedidos, por exemplo, para ex-militares.
Assim, quando o furacão chegou, ficou nítido como as decisões de zoneamento urbano se traduziam em desigualdade.
Em 29 de agosto de 2005, quando o furacão Katrina atingiu Nova Orleans, os diques que protegiam a cidade romperam-se e a água inundou cerca de 80% da cidade.
Os danos seguiram a geografia racial — padrões espaciais de onde os residentes negros e brancos viviam devido a décadas de segregação — como um projeto bem arquitetado.
Cerca de três quartos dos residentes negros sofreram com inundações graves, em comparação com metade dos residentes brancos.
Entre 100 mil e 150 mil pessoas não puderam ser evacuadas. Eram, em sua maioria, idosos, negros, pobres e pessoas sem carro.
Entre os sobreviventes que não foram evacuados, 55% não tinham nenhum meio de transporte para sair da cidade, e 93% eram negros.
Por ser o fim do mês, muitos também não tinham condições de arcar com passagens de ônibus. Como resultado, mais de 1.800 pessoas morreram.
Essa falta de meios transporte deixou as pessoas presas na geografia em forma de concha da cidade, incapazes de escapar quando os diques romperam.
Após o furacão Katrina, o governo federal criou o programa Road Home para ajudar os proprietários a reconstruir suas casas, mas com uma falha de concepção devastadora: calculava a ajuda com base no valor da casa antes do furacão ou nos custos de reparo, o que fosse menor.
Isso significa que os proprietários de baixa renda, que já viviam em áreas com valores imobiliários mais baixos devido ao histórico de discriminação, recebiam menos dinheiro.
Ou seja, se uma família com casa avaliada em US$ 50 mil precisasse de US$ 80 mil em reparos, ela receberia apenas US$ 50 mil. Enquanto isso, outra família com uma casa de US$ 200 mil que precisasse dos mesmos US$ 80 mil em reparos receberia o valor integral da reforma.
A diferença média entre as estimativas de danos e os fundos de reconstrução era de US$ 36 mil.
“Mesmo 10 anos após o Katrina, os dados mostram que as pessoas de baixa renda, residentes negros, mães solteiras e pessoas com deficiência eram menos propensas a voltar para casa”, aponta a professora Lori Peek.
“Importante dizer que esses sobreviventes não foram passivos. Muitas pesquisas documentaram a incrível engenhosidade e força de famílias que trabalharam incansavelmente para reconstruir suas vidas após a catástrofe”, relata.
Uma década após o furacão Katrina, enquanto 70% dos residentes brancos achavam que Nova Orleans havia se recuperado, apenas 44% dos residentes negros podiam olhar ao redor de seu bairro e dizer o mesmo.
E esse padrão não é exclusivo de Nova Orleans. Um estudo que analisou dados do furacão Andrew, em Miami (1992), e do furacão Ike, em Galveston (2008), descobriu que a recuperação habitacional foi consistentemente lenta e desigual em bairros de baixa renda e minorias.
Famílias de baixa renda têm menos chances de ter seguro ou poupança adequados para uma reconstrução rápida.
Além disso, casas de baixo valor com danos extensos ainda não haviam recuperado seu valor pré-tempestade quatro anos depois, enquanto casas de valor mais alto que sofreram danos moderados ganharam valor.
As lições do furacão Katrina sobre a desigualdade dos desastres são importantes para as comunidades atuais, à medida que as mudanças climáticas trazem condições meteorológicas mais extremas.
As taxas de recusa da Agência Federal de Gerenciamento de Emergências (Fema) para ajuda em desastres continuam altas devido a obstáculos burocráticos.
Processos de solicitação complexos que fazem os sobreviventes passarem por várias agências, muitas vezes resultam em recusas e atrasos de recursos financeiros essenciais.
Essas são as mesmas barreiras sistêmicas que contribuíram para que as comunidades negras se recuperassem mais lentamente após o furacão Katrina.
O próprio conselho consultivo da Fema relatou que as políticas de assistência institucional tendem a enriquecer áreas mais ricas, predominantemente brancas, enquanto prejudicam as comunidades de baixa renda e minorias em todas as etapas da resposta a desastres.
No Brasil, apesar de não serem registrados furacões, eventos climáticos extremos também não poupam os mais pobres.
Uma pesquisa da Datafolha revelou que a população mais pobre, negra e com menor escolaridade foi aquela que mais sofreu perdas de patrimônio e de renda nas enchentes dos no Rio Grande do Sul, em 2024.
Nas cidades atingidas pelas inundações, quase metade (47%) das famílias que ganhavam até dois salários mínimos respondeu ter perdido casa, móveis, eletrodomésticos ou o próprio sustento.
Já entre aquelas com renda de cinco a dez salários, só 13% relatam algum tipo de prejuízo. Além disso, mais da metade (52%) das pessoas pretas nos municípios afetados relata algum tipo de perda com as enchentes.
Entre os pardos, 40% responderam que teve algum tipo de prejuízo. Entre a população branca dessas mesmas cidades, a proporção de entrevistados que relatou alguma perda material ou de renda foi de 26%.
O arquiteto e urbanista William Mog, assessor técnico do Ministério Público gaúcho, diz que a proporção maior de pobres, pardos e pretos entre os afetados por tragédias climáticas é um padrão nacional pela dificuldade de acesso dessas populações à moradia formal.
"Essas famílias não poderiam estar nessas áreas, à beira de rios ou nas encostas de morros, do ponto de vista da legislação ambiental. E o fato de estarem ali é um indicativo de que elas não têm condição de entrar no mercado imobiliário formal, não têm dinheiro para isso", ele diz.
"Essas áreas estão fora do mercado formal justamente por serem suscetíveis às cheias e a deslizamentos."
Em Fortaleza, uma das áreas de risco mais conhecidas é a região marginal do rio Maranguapinho.
Anunciado em agosto de 2025, um projeto do Governo do Estado do Ceará prevê desapropriar 700 famílias que vivem em áreas próximas a riachos e canais afluentes do curso d'água.
O objetivo do Projeto de Urbanização dos Afluentes do Rio Maranguapinho, segundo a Secretaria das Cidades (SCidades), é melhorar as condições de habitação dessas pessoas e realizar a recuperação socioambiental de seis afluentes.
Ao todo, de acordo com a SCidades, o projeto prevê que, entre as 700 famílias que serão afetadas, 400 serão indenizadas, com orçamento previsto de R$ 40 milhões por meio de recursos do Estado.