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A psicologia da perda: como cuidar da mente sem um teto?
Reportagem Seriada

A psicologia da perda: como cuidar da mente sem um teto?

Sem um teto não há trabalho, nem estudo. Sem um teto, famílias vivem em um ciclo estrutural de exclusão. Desamparados, Sabrina, Marvin e Ducarmo sobrecarregam a mente tentando sobreviver, superar as perdas e não parar
Episódio 2

A psicologia da perda: como cuidar da mente sem um teto?

Sem um teto não há trabalho, nem estudo. Sem um teto, famílias vivem em um ciclo estrutural de exclusão. Desamparados, Sabrina, Marvin e Ducarmo sobrecarregam a mente tentando sobreviver, superar as perdas e não parar
Episódio 2
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“A gente nasceu de novo”, comentam Sabrina de Paulo, 21 anos, e Marvin Alves, 25. Residentes na comunidade do Serviluz, no Cais do Porto, estão juntos há pouco mais de um ano e já vivenciaram a dificuldade de perder tudo e recomeçar depois que a casa onde moravam, em uma pequena vila, desabou em 2024.

Sendo uma das 89 áreas de risco de Fortaleza, a região, também conhecida como Titanzinho, sofre há décadas com a exclusão social. Sem planejamento para revitalização ou políticas de habitação digna, os moradores constroem casas sobre casas. Na região, construções feitas sem supervisão do Estado colocam em risco as vidas daqueles que não têm para onde ir.

“Lembro de estar dormindo quando, umas três horas da manhã, escutei um estralo na parede subindo. Pensei que era um gato ou alguma telha que tivesse caído. Tentei acordar ela (Sabrina) para ver se ela também tinha escutado. Ela falou que era coisa da minha cabeça e me mandou voltar a dormir. Só deu tempo a gente se virar. Quando abracei ela, veio outro estralo e a casa desabou com tudo”, contou Marvin.

Uma das duas casas que desabaram na vila onde Sabrina e Marvin moravam. Uma terceira casa teve a estrutura comprometida sendo interditada(Foto: Fábio Lima/ O POVO)
Foto: Fábio Lima/ O POVO Uma das duas casas que desabaram na vila onde Sabrina e Marvin moravam. Uma terceira casa teve a estrutura comprometida sendo interditada

O casal relata que ficou debaixo dos escombros por volta de três horas, encolhidos em um espaço pequeno, sob muita chuva. Tentaram ao máximo não se mexer, pois tinham medo de que mais destroços caíssem sobre eles.

“Eu pensei todo tipo de besteira enquanto estava lá embaixo. Chorei muito, estava desesperada e queria gritar, ele (Marvin) quem tentava me acalmar. Achei que íamos morrer. Chovia muito e eu tinha medo de algum cabo de eletricidade encostar na água e levarmos um choque”, completa Sabrina.

Sabrina é mãe de uma menina de apenas cinco anos. Na noite anterior ao ocorrido, precisou mandar a criança para a casa da avó, pois a chuva que infiltrava pelo teto estava molhando tudo. “Não tinha canto para dormir, era muita água, tudo estava molhado, sem condição de enxugar. Foi um livramento”, comentou.

Sabrina e Marvin conseguiram alugar uma nova casa para morar e tetam um recomeço com a ajuda de amigos e familiares (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Sabrina e Marvin conseguiram alugar uma nova casa para morar e tetam um recomeço com a ajuda de amigos e familiares

A vizinhança acionou o Corpo de Bombeiros para o resgate. Sabrina, Marvin e outro casal, resgatado na casa ao lado, foram levados para o Instituto Dr. José Frota (IJF). O vizinho, retirado dos escombros em estado grave, não resistiu e faleceu no mesmo dia.

“Ela (a vizinha) estava transtornada, muito nervosa. Perguntava a todo instante onde estava o marido. Ele não tinha sido levado com a gente. Parece que já saiu de lá sem vida e o levaram para outro lugar. Os médicos pediram para a gente não falar nada, para a gente não contar que o marido dela não tinha resistido”, informou Sabrina.

A Defesa Civil interditou o local e outras casas no entorno, que também apresentavam risco de desabamento. Ao todo, dez famílias foram deslocadas. Os moradores foram orientados a procurar abrigos solidários, casa de familiares e amigos.

Marvin mostra seu celular, destruído no dia que a casa desabou(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Marvin mostra seu celular, destruído no dia que a casa desabou

“Perdemos tudo. Tudo que temos aqui ganhamos de outras pessoas”, Marvin fala, enquanto mostra os poucos móveis da casa nova. Eles conseguiram, com ajuda de amigos e familiares, alugar uma residência de dois cômodos na mesma comunidade. Desempregados, vivem de auxílios e da venda de algumas remixagens que ele faz.

Mostraram à equipe do O POVO+ o aparelho telefônico que resistiu ao desabamento. Quase um ano depois, ainda não conseguiram celulares novos.

Sabrina relata que a dificuldade na comunicação atrapalha na busca por emprego e a procura por uma renda fixa. Além dos desafios do recomeço, não receberam nenhum tipo de auxílio, como o Aluguel Social, ou compensação pelas perdas.

 

 

A natureza não é cruel com a cidade, a cidade é cruel com a natureza

Eventos como o desabamento enfrentado por Sabrina e Marvin podem se tornar cada vez mais comuns com os impactos da crise climática, especificamente das chuvas extremas em áreas urbanas.

Jander Monterio, professor adjunto do curso de Geografia e vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), explica as relações entre o aumento da emissão de gases de efeito estufa e as mudanças nos padrões de precipitação e na intensidade de eventos climáticos extremos.

Jander Monterio, professor Adjunto do Curso de Geografia e vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Vale do Acaraú(Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal Jander Monterio, professor Adjunto do Curso de Geografia e vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Vale do Acaraú

“Enquanto algumas localidades do planeta vão experimentar, nas próximas décadas, um aumento de precipitações extremas, outras áreas vão enfrentar déficits de precipitação”, explica.

Para o pesquisador, a relação entre a cidade e o meio ambiente é complexa, com impactos significativos em ambos. As cidades, como centros de atividade humana, exercem pressão sobre os recursos naturais e, ao mesmo tempo, são afetadas pelas mudanças ambientais.

Em 2023, acompanhamos a exclusão de dezesseis áreas verdes de zonas ambientais, alteração que passa a permitir construções em áreas importantes para manutenção climática da cidade.

“No contexto urbano, a diminuição de áreas verdes também influencia no dano causado à população. Se pararmos para pensar, a vegetação tem um papel primordial. Quando temos um evento de chuva mais concentrado, mais forte, a vegetação vai ajudar a infiltrar a água. Quando retiro essa vegetação e dou espaço especialmente ao asfalto, ao concreto, ao cimento, eu estou impermeabilizando a cidade e dificultando essa infiltração, favorecendo o escoamento dessa água”, afirma.

A água que não é absorvida pelo solo escoa pelas ruas, causando alagamentos, inundações e danificando construções. As populações mais vulneráveis são as mais afetadas — a isso se dá o nome de racismo ambiental.

Para Jander, projetos que visam diminuir as áreas verdes, já tão escassas nos cenários urbanos, são um desserviço ao bem-estar social. “Nós, cientistas, estamos fazendo uma fala baseada em dados científicos, em pesquisas que desenvolvemos, tentando mostrar aos gestores de forma muito assertiva e clara o papel da vegetação. Ver notícias como essa (das áreas verdes), a gente recebe com tamanha tristeza”.

Sabrina e Marvin passaram toda a vida na Comunidade do Serviluz. Próximos de amigos e familiares, não consideraram deixar o bairro(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Sabrina e Marvin passaram toda a vida na Comunidade do Serviluz. Próximos de amigos e familiares, não consideraram deixar o bairro

O professor explica que existem formas de minimizar os efeitos das mudanças climáticas no contexto urbano. A arborização, a manutenção dos corpos hídricos, o planejamento sustentável, o investimento em infraestrutura e a redução das desigualdades sociais seriam um longo primeiro passo.

Políticas públicas planejadas e contínuas que pudessem evitar também questões psicológicas ligadas ao sentimento de incapacidade diante da natureza.

“Quando falamos de desastres associados às chuvas, é comum usar termos como tragédia e fatalidade, como se fosse algo inevitável, marcado pelo destino, ou seja, um infortúnio. É como se reduzíssemos o desastre a uma forte chuva que ocorreu, e nada pudemos fazer. Isso pode levar as comunidades e a sociedade a uma resignação, a uma sensação de não poder lutar contra algo inevitável”, completa.

 

 

A psicologia da perda

“Ninguém vive em área de risco porque quer, ninguém escolhe viver em área de risco", assim inicia Valéria Pinheiro, pesquisadora, diretora-presidente da Ser Ponte, membro da Frente de Luta por Moradia Digna e conselheira do Conselho de Leitores d'O POVO.

"Essas pessoas que vivem em áreas de risco são vítimas da ausência estatal, de políticas públicas que não priorizam quem deveria ser priorizado. Então, a elas resta os pedaços da cidade que o mercado imobiliário não quer. São pessoas que vêm de um ciclo estrutural de exclusão e de falta de acesso à moradia digna", conclui.

Valéria Pinheiro, Pesquisadora, Diretora-presidente da Ser Ponte, membro da Frente de Luta por Moradia Digna(Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal)
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal Valéria Pinheiro, Pesquisadora, Diretora-presidente da Ser Ponte, membro da Frente de Luta por Moradia Digna

Ela atua há 25 anos junto a movimentos de moradia com pessoas em áreas de risco e ameaçadas de despejo, e acompanha o dia a dia de famílias que vivem à margem da sociedade.

“De alguns anos para cá, tenho falado muito isso, nunca vi tantas crianças sendo diagnosticadas com problemas de saúde mental, o que não quer dizer que não existia antes. Talvez agora se consiga um acesso mais fácil ao diagnóstico, mas, infelizmente, não ao tratamento e aos cuidados”, relata.

Da dificuldade em formar laços afetivos até os obstáculos para mudar de vida, existe um caminho perpetuamente difícil na mente de quem vive constantemente com o risco de perder tudo.

“Imagine uma criança nessa situação de perder o contato com o vizinho, com o amiguinho, perder a comunidade escolar onde ela frequentava, perder seus referenciais de identidade que ela tinha do seu território. É viver precariamente, não estabelecer laço, não conseguir constituir identidade. Isso, com certeza, é muito ruim”, completa.

Um sentimento de abalo difícil de suportar e que Maria do Carmo, 61, sentiu quando precisou deixar a casa em que morou durante a vida inteira, após parte do teto desabar. Os olhos enchem de lágrimas só de olhar para a fachada da casa interditada pela Defesa Civil em 2024.

Ela passa um tempo em silêncio, olha para a casa, procura forças para relatar as dificuldades que vem passando. Moradora do Serviluz, área de risco de soterramento, precisou alugar uma nova residência, com o apoio do Aluguel Social.

Maria do Carmo mostra a casa interditada que precisou abandoar após parte do teto desabar(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Maria do Carmo mostra a casa interditada que precisou abandoar após parte do teto desabar

Ducarmo, como gosta de ser chamada, conta que, durante toda a vida, cuidou da simples residência onde morava com um neto, uma neta e uma bisneta, todos crianças entre 3 e 5 anos. No entanto, as reformas que conseguia arcar com o pouco dinheiro que juntava foram insuficientes para frear os danos que a infiltração causou na estrutura da moradia.

Após o desabamento de parte do teto, precisou abandonar a residência e alugar uma moradia segura até conseguir reformar a casa própria.

Ana Lizete Farias, psicanalista, dra. em Meio Ambiente e Desenvolvimento, pós-doutoranda  em Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS, MSc geologia ambiental(Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal )
Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal Ana Lizete Farias, psicanalista, dra. em Meio Ambiente e Desenvolvimento, pós-doutoranda em Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS, MSc geologia ambiental

Conseguiu um empréstimo de 11 mil reais, comprou materiais, contratou uma pessoa, mas o dinheiro não foi suficiente. Aposentada, pagando advogado, as dívidas logo começaram a acumular e a reforma precisou ser adiada.

Ana Lizete Farias, psicanalista e doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento, explica as relações das perdas com a desconstrução de uma identidade.

"Desenvolvemos relações de afeto com nossas coisas, com os lugares onde vivemos, com as pessoas, com o trajeto que fazemos todo dia para pegar o ônibus. Tudo isso se constrói como algo muito importante na vida. Quando uma pessoa perde isso, ela não perde só o material, perde toda a construção subjetiva de ser e pertencer", comenta.

O sentimento da perda é ainda mais avassalador quando tratamos de pessoas em situação de vulnerabilidade, que custam muito mais a conquistar bens de alto valor, como casas e móveis.

Ana Lizete comenta que apesar de indicações científicas apontarem a necessidade indiscutível de uma acompanhamento psicológico às pessoas afetadas com efeitos climáticos extremos, o tema ainda é negligenciado.

Como consequência, as pessoas podem passar por depressão e ansiedade, chegarem a episódios extremos, como o suicídio, tornarem-se apáticas ou recorrerem a vícios. Condições que podem agravar ainda mais o desenvolvimento econômico e emocional.



Desde o acontecimento, Ducarmo adoeceu e foi diagnosticada com depressão e ansiedade. A cada dia que passa, a preocupação aumenta. Relatou não dormir bem, sente falta do antigo lar.

Em breve, logo que o desabamento completar um ano, a vigência do Aluguel Social acabará. Sem ter concluído a reforma, Ducarmo passará a arcar sozinha com os custos da casa, do advogado, das dívidas e da reforma.

Sem condições de pagar acompanhamento psicológico, ela sente uma piora. Sente o coração acelerar, a respiração ficar pesada com frequência, recorre aos cigarros. Mas, afinal, como poderia cuidar da saúde mental quando mal se tem um teto?

 

Ponto de vista 

Duas faces da mesma cidade

Por Bianca Nogueira*

Para chegar ao Saporé, precisamos passar pelo núcleo do Mucuripe, o bairro com o metro quadrado mais caro de Fortaleza, que passa dos 16 mil reais. Não é incomum ver carros luxuosos transitando nas avenidas principais puxando pequenos barcos ou jet skis.

Turistas hospedados em hotéis caros, caminhando em direção à praia, aproveitando as manhãs, mesmo nubladas. Nas raras vezes do ano que passo pela região, um prédio em específico sempre me surpreende, mais que outros.

O One Residencial, da construtora Colmeia, é um superprédio com 170 metros, 50 andares e apartamentos com mais de 600 metros quadrados, comercializados por aproximadamente nove milhões de reais.

Regina Sousa, moradora da Comunidade Saporé(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Regina Sousa, moradora da Comunidade Saporé

Cem metros acima do que o permitido pelo teto médio estabelecido pela Prefeitura de Fortaleza, a construtora precisou desembolsar uma boa grana para pagar uma Outorga Onerosa, meio que permite a construção acima do limite do Plano Diretor.

Em dois anos, a gestão municipal acumulou R$ 174.771.413,00 com a venda de Outorgas Onerosas. Dinheiro que vai para o Fundo de Desenvolvimento Urbano de Fortaleza (Fundurb), regulamentado e estruturado em 2016, para dar suporte financeiro à implementação dos objetivos, programas e projetos do Plano Diretor Participativo (PDP).

Menos de um quilômetro separa o barraco de tapumes de madeira de Regina do luxuoso residencial. Não somente Regina, mas uma comunidade interna imersa em pobreza vive às portas de uma riqueza inalcançável.

Uma comunidade inteira espelhada na imagem de uma mulher que batalhou durante a vida interna, para no fim não ter nada. Invisível aos olhos do Estado.

Após conhecê-la, é impossível não olhar o descaso e a demora na elaboração de políticas públicas com insatisfação. Não existe um tom de urgência, por parte das gestões, para tratar as questões habitacionais da cidade. Eles não conhecem Regina.

No auge dos sentimentos, senti o ímpeto de balançá-los, sacudir seus ternos lustrosos pelos ombros, e gritar: “Pessoas precisam de um lar digno, suas vidas, seus futuros correm perrigo”. Não posso. Sento e escrevo. Queria que Fortaleza inteira conhecesse Regina.

"O que é muito difícil é você vencer a injustiça secular que dilacera o Brasil em dois países distintos: o país dos privilegiados e o país dos despossuídos" Ariano Suassuna, escritor, poeta e professor brasileiro

*Bianca Nogueira é estagiária d'O POVO+ e estudante de Comunicação Social - Jornalismo na Universidade Federal do Ceará (UFC)

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Cidade vulnerável

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