“Não repara na bagunça do meu barraquinho”, é assim que Regina Sousa, 50, recepciona quem entra no barraco que, durante quase 20 anos, foi seu lar. Uma construção de dois andares, feita com tapumes de madeira, situada na comunidade Saporé, às margens do Riacho Maceió, no bairro Mucuripe — e uma das 89 áreas de risco de desastres em Fortaleza.
Regina nasceu em Itarema, no interior do Ceará, e se mudou para a Capital em busca de melhores oportunidades. Aos poucos, foi construindo a casa própria, comprando suas coisas e se estabelecendo com o marido e as duas filhas.
A proximidade do terreno com o riacho gerava preocupação; tinha medo da água subir muito e danificar os bens que custou a conseguir. Tentando contornar o problema, ela comprou um cano comum de PVC, e o marido instalou-o para evacuar a água da chuva. Mas o cano estreito não dava conta do volume e não tinha outra: toda chuva era o mesmo sofrimento.
“Perdi a conta de quantas vezes, durante a madrugada, precisei sair com a água por aqui”, diz, enquanto aponta para a altura do pescoço, indicando que a água da chuva chegava a pouco mais de um metro e meio e alagava toda a parte inferior do barraco.
Não era a vida que ela almejava na cidade, mas tampouco queria retornar para a região rural de onde veio. Colocou as filhas na escola e foi tocando a vida. O marido fazia as manutenções no barraco, pegava mais madeira e consertava o que a chuva destruía. Muito novas, as filhas saíram de casa.
Regina passou a viver apenas com o marido, até ele falecer em decorrência de problemas cardíacos em agosto de 2024. “Quando tinha meu esposo, ele ia arrumando (o barraco), ele quem atravessava o canal e desentupia o cano. Agora só tem eu, então saí (da casa) por medo das chuvas. De noite, eu me aperreio muito, não consigo dormir. De dia, minhas amigas me socorrem, eu vou para um lado e para o outro. Só uma chuvinha que deu agora, eu já perdi tudo”, comentou.
Com receio de enfrentar mais uma quadra chuvosa pela primeira vez sem o marido, Regina decidiu tirar do pouco dinheiro que recebe do Bolsa Família uma quantia para pagar um aluguel. Conseguiu mudar-se para uma casa de alvenaria, a alguns passos do seu antigo barraco.
A nova moradia, composta por dois pequenos cômodos, compromete mais da metade da renda mensal e ainda está praticamente vazia.
Quando recebeu a equipe do O POVO+, Regina, muito contente, comentou estar certa de que receberá o Aluguel Social. Por isso, não estava saindo muito de casa; tinha medo de perder a visita de quem chegaria para fazer seu cadastro.
O Programa Locação Social
O programa abrange famílias afetadas por ações de urbanização e revitalização promovidas pela prefeitura, situações emergenciais de desastres naturais, pessoas em situação de rua e mulheres em situação de violência sexual, mas depende da disponibilidade de vagas.
A atual gestão municipal informou ao O POVO+ que, “diante da incoerência constatada nos dados repassados pela gestão anterior a respeito do funcionamento de programas e serviços, ainda não é possível precisar quantas pessoas constam na fila de espera do programa”.
Sem ampliação prevista, cerca de 22 mil famílias residentes nas 89 áreas de risco da capital cearense sobrevivem na incerteza, propensas a sofrer com inundações, deslizamentos, alagamentos e desabamentos, segundo dados de 2022 da Defesa Civil.
O número permanece inalterado desde 2012, quando a Fundação de Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor) divulgou o Plano Local de Habitação de Interesse Social (PlisFor) e identificou as 89 áreas.
Mais de uma década depois, os dados (ou a falta destes) denunciam o descaso e o pouco avanço na mitigação de um problema histórico, que acompanha a cidade desde sua formação.
O que fazer em caso de risco
Ao identificar riscos de desabamento ou semelhantes, a população deve acionar a Defesa Civil via 190, através da Ciops.
Uma equipe será enviada ao local para vistoria e, se necessário, encaminhará a família para o cadastramento no Programa de Locação Social (PLS).
A DC disponibiliza para as famílias o material assistencial básico, composto por cesta básica, redes/colchonetes, mantas, lonas e sacos de ráfia.
Dependendo da situação e da necessidade de cada família, a DC também pode doar roupas e calçados, arrecadados por meio das Caixas Solidárias.
As Caixas Solidárias podem ser encontradas em sedes de empresas, escolas, órgãos públicos. A Campanha é permanente e acontece durante todo o ano.
Os condomínios residenciais e empresas interessadas em participar devem entrar em contato com o Núcleo de Ações Comunitárias (Nucom) da DC de Fortaleza, através do fone: (85) 98867-9283.
As 89 áreas de risco indicadas em Fortaleza foram identificadas pela Defesa Civil em 2012 e permanecem as mesmas por mais de uma década. O número é garantido pela Defesa Civil e pelo prefeito Evandro Leitão (PT) em entrevista ao O POVO.
Definidas pela sobreposição do levantamento de assentamentos precários do PLHIS-For com a relação entre ambientes frágeis, ações naturais, assentamentos precários e danos potenciais aos grupos sociais, concentram-se principalmente em margens de rios, córregos, lagoas, encostas de dunas e faixas de praia.
O POVO+ solicitou à Defesa Civil de Fortaleza e à Assessoria da Gestão Municipal a relação das 89 áreas de risco, com as informações sobre o bairro, localidade e risco, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.
Utilizando dados da Defesa Civil disponibilizados à reportagem por terceiros, estudos acadêmicos da Universidade Federal do Ceará (UFC) e mapas divulgados no site Fortaleza em Dados, foi possível confirmar 66 das 89 áreas citadas pelos órgãos, localizadas em 39 bairros da Capital cearense.
Áreas de risco em Fortaleza
Resultado de um crescimento urbano desordenado e da falta de acesso à moradia adequada para a população de baixa renda, essas áreas representam um risco crítico agravado com o aumento das chuvas e a falta de ações estruturais para mitigar os problemas habitacionais da cidade.
Das 66 áreas identificadas pelo OP+, 48 estão vulneráveis a inundações (72,7%), como é o caso do barraco de Regina; 10 a deslizamentos (15%); 6 a alagamentos (9%); 1 a soterramento e 1 a desmoronamento (1,5% cada). Isso considerando apenas as áreas rastreadas pela reportagem. Se o número tual é maior ou menor, ainda é difícil saber.
A falta de dados atualizados dificulta o planejamento de políticas públicas eficientes. Durante a Reunião Estratégica do Comitê Integrado para Quadra Chuvosa de 2025, realizada em 27 de janeiro, o coordenador da Defesa Civil da Capital, tenente-coronel Haroldo Gondim, reconheceu que os dados estão defasados e os locais passarão por nova análise.
Já o prefeito Evandro Leitão (PT) garantiu, além da reavaliação das áreas de risco, uma revisão do Plano Diretor de Fortaleza “partindo do zero”. A expectativa do prefeito é que o novo plano seja aprovado ainda este ano, mas não informou nomes ou possíveis equipes de pesquisadores que estariam trabalhando na nova formulação.
Para Renato Pequeno, professor do Instituto de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC, coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab/UFC) e pesquisador do Observatório das Metrópoles, a revisão do Plano Diretor é uma ação positiva, já que, na elaboração anterior, “foi feito um diagnóstico que não foi considerado na hora de elaborar propostas".
“É fundamental, em uma cidade com tanta pobreza, com tanto nível de precariedade nas condições de moradia como Fortaleza, que haja um diálogo entre a política urbana e a política habitacional”, comunicação que não existiu na gestão anterior, aponta Renato.
Ele menciona como exemplos os grandes conjuntos habitacionais construídos na capital cearense por meio do programa Minha Casa Minha Vida. “Foram milhares de famílias deslocadas para periferias onde o Estado está ausente”, completa.
Em 2022, O POVO acompanhou denúncias de moradores dos conjuntos habitacionais Heloneida Studart e Ana Facó, no bairro Bom Jardim. Entregues em 2018, as duas mil pessoas beneficiadas tinham o acesso a direitos básicos, como saúde e educação, dificultados pela distância entre os conjuntos e os serviços oferecidos pelo Estado.
Ao afastar a população de direitos fundamentais, contribui-se para a perpetuação de uma estrutura baseada na miséria. Cada vez mais, uma parte considerável dos fortalezenses é empurrada para as áreas de risco, regiões onde elas podem sofrer com as ações da natureza e do próprio Estado.
Desde 2009, Renato, por meio do Lehab/UFC, acompanha casos de remoção em Fortaleza. Segundo o professor, foram 34 casos até 2020, entre remoções e ameaças denunciadas junto à Defensoria Pública e a escritórios de direitos humanos, problema que envolve cerca de 26 mil famílias.
“Para onde vão essas famílias? Aqui, a gente entende por que as áreas de risco não acabam. Quando eu removo e não dou uma opção de reassentamento, o que essa população vai fazer? Vai procurar um lugar que dê para ficar escondido. Onde é que ninguém chega? Na beira do Maranguapinho, na beira de uma lagoa, em cima da duna, na faixa de praia, nas margens do lixão, perto de lagoa de estabilização”, afirma o pesquisador.
“O processo histórico de Fortaleza tem a sua particularidade. A cidade se forma, assim como as outras, devido à industrialização, mas também pela chegada dos refugiados das secas”, explica Vinícius Saraiva, mestre em Arquitetura e Urbanismo e integrante e pesquisador do Lehab/UFC.
A formação de Fortaleza passa a sofrer alterações significativas entre os anos 1915 e 1930, quando refugiados das secas passaram a migrar para os centros urbanos em processo de industrialização em busca de empregos e renda.
“Essas pessoas chegam e vão, pela falta de oportunidades, pelo fenômeno da
"
O pesquisador conta que, por volta das décadas de 1970 e 1980, áreas de praia como Mucuripe, Beira Mar e Praia de Iracema não eram regiões muito valorizadas pelo mercado imobiliário como hoje. Portanto, os moradores migravam para as áreas litorâneas, formando comunidades como a do Titanzinho, da Saporé, do Pirambu e muitas outras, que dão origem às primeiras grandes áreas de ocupação da cidade.
Com a prerrogativa do desenvolvimento, a especulação imobiliária foi empurrando cada vez mais as comunidades às margens e gerando um encarecimento dos aluguéis e do custo de vida, mesmo no mercado informal.
“Em Fortaleza, assim como já acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo, os aluguéis estão ficando mais caros. Então, você não consegue dentro da política de aluguel social que se tem no governo municipal, no valor de 420, puxar um aluguel nem em favelas ou assentamentos precários que estão dentro do mercado informal”, completa Vinicius.
Do barraco de Regina, é possível ver prédios luxuosos construídos e em construção. O som da obra invade pelas janelas e atrapalha o louvor, mas ela não se incomoda. Passa as manhãs sozinha, balançando em uma rede na sala, pensando na economia que precisa fazer até a temporada de chuvas acabar.
Quando a equipe do O POVO+ chegou, sua casa tranquila não denunciava que alguma comida estivesse sendo preparada ali, mesmo tão próximo da hora do almoço. Ela comentou, bem descontraída, que há dois dias não se sentia bem da barriga, por isso não comia nada.
Quando olhamos para a composição de Fortaleza, é inevitável perceber que determinadas áreas da cidade recebem um número maior de obras de revitalização e infraestrutura.
“A distribuição das áreas de risco revela uma divisão que existe na cidade, entre as partes contempladas com infraestrutura e as outras que ficam ao Deus dará. Isso é uma evidência, assim, de onde moram os tomadores de decisão”, completa Renato Pequeno.
Segundo o professor, nos últimos anos houve investimento em áreas de risco, como o que aconteceu no projeto Maranguapinho, mas as ações têm sido insuficientes.
"Ao longo dos anos, recorrentemente, tem havido uma redução dos investimentos nessas áreas. Temos que considerar, também, a necessidade de um programa continuado. Infelizmente, a gente tem, em Fortaleza, essa descontinuidade das políticas públicas", complementa.
Em dissertação de mestrado, a arquiteta Camila Rodrigues Cabral concluiu que o Plano Diretor de Fortaleza não foi o instrumento básico da política urbana no município durante 2010 e 2021, embora tenha sido um avanço em termos de participação popular e inclusão de instrumentos como as
A pesquisa examinou a implementação das políticas urbanas sob diferentes gestões municipais, analisando as dimensões normativa, institucional, orçamentária e territorial. Apresentou análises dos Planos Plurianuais (PPAs) e Leis Orçamentárias Anuais (LOAs).
A falta de regulamentação, a pressão de interesses econômicos e a priorização de projetos específicos em detrimento do planejamento urbano resultaram na desconsideração do plano como orientador da política urbana municipal.
O atraso na atualização e a escassez de investimento em pesquisas que investiguem as dinâmicas políticas e institucionais presentes no espaço urbano são outros fatores que atrasam o desenvolvimento e coloca em risco a dignidade e a vida da população.
Para esta reportagem, O POVO+ consultou dados da Defesa Civil do município nos anos de 2022 e 2024.
Em cinco ocasiões solicitamos os dados consolidados à Defesa Civil e à assessoria de comunicação do prefeito Evandro Leitão (PT): em 27 de janeiro de 2025, durante a Reunião Estratégica do Comitê Integrado para a Quadra Chuvosa 2025; em 3 de fevereiro, pelo WhatsApp da Assessoria de Comunicação da Defesa Civil, e então reforçando o pedido em 4 de fevereiro após recebermos dados incompletos e inconsistentes.
No dia 4 de fevereiro, também solicitamos a informação pessoalmente ao assessor de comunicação do prefeito Evandro Leitão (PT), em ocasião de visita do gestor à redação d'O POVO. Como não tivemos retorno, reafirmamos o pedido em 10 de fevereiro.
Não tivemos retorno com dados precisos. A justificativa da Defesa Civil é que as informações não estão atualizadas e que novo levantamento será realizado, mas sem data prevista.
No processo de apuração, O POVO+ conseguiu a planilha de 2024 por terceiros e, a partir dela, conferiu as 89 áreas de risco registradas pela Defesa Civil em 2012 e reafirmadas em 2022.
A partir da planilha de 2024, a reportagem conferiu as informações de nome, localidade e riscos, identificando 66 áreas de risco em Fortaleza. Pela falta de retornos da Defesa, não é possível saber quais seriam as outras 23 regiões rastreadas.
Para a construção do mapa, utilizamos a planilha de 2024 e cruzamos os dados com as regiões delimitadas no mapa Assentamentos em Áreas de Risco, disponível no portal Fortaleza em Mapas. A partir desse cruzamento, foi possível definir a população das áreas de risco.
Para garantir transparência e a reprodutibilidade deste material, os dados podem ser acessados pela planilha Áreas de Risco COPDC, disponível publicamente.
Conheça as histórias de Sabrina, Marvin e Ducarmo, moradores da comunidade do Serviluz que perderam casas após desabamentos, e como o trauma afeta o cotidiano e a saúde mental das famílias.