O silêncio também é um dado. Ele não aparece nas tabelas, não está nas planilhas, mas se impõe em cada lacuna deixada pelos registros oficiais. No Ceará, quando o assunto é violência sexual contra crianças e adolescentes, o silêncio ocupa quase todo o espaço: em mais de 96% dos indiciamentos feitos entre 2009 e 2024, o vínculo entre agressor e vítima não foi informado.
Esse vazio não é neutro. Ele esconde relações de proximidade, oculta laços familiares, apaga da estatística a dor que muitas vezes nasce dentro de casa. Sem esses nomes, o que poderia ser um mapa claro de prevenção e combate à violência se transforma em um retrato incompleto, onde os agressores parecem fantasmas sem rosto nem lugar.
Essa falha sistêmica, segundo especialistas, limita a compreensão do problema e compromete o planejamento de políticas públicas efetivas de prevenção e combate no Estado.
Entre 2009 e 2024, foram realizados no Ceará 6.877 indiciamentos por crimes sexuais envolvendo menores de idade. Em 6.616 (quase 97%) desses casos, porém, o campo “grau de parentesco ou vínculo com a vítima” aparece simplesmente como “Não informado”.
Nos raros registros em que a relação é identificada, o quadro é contundente: pais, padrastos, tios, namorados, avós, amigos da família. Ou seja, a violência quase sempre chega de dentro do ciclo de confiança das crianças e pelas mãos de quem deveria proteger.
Outro ponto que se evidencia é o perfil dos acusados. Homens representam 95,30% dos indiciados (6.564), com maior concentração entre 18 e 44 anos, faixa etária que responde por mais de 60% das ocorrências. Ao mesmo tempo, porém, as informações não relacionam quem foram suas vítimas – as quais aparecem em uma base de dados à parte.
Sexo e idade dos indiciados por crimes de abuso sexual contra crianças e adolescentes no Ceará (2009-2024)
No gráfico à direita, cada ícone representa um indiciamento. Ao passar o mouse ou clicar em algum, você verá informações como data, município, idade, sexo e grau de proximidade dos indiciados
Esta é uma análise exclusiva da Central de Dados O POVO+ a partir de dados públicos obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) junto à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), por meio da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), da Gerência de Estatística e Geoprocessamento (Geesp) e do Sistemas de Informações Policiais (SIP), obtidos pela plataforma Ceará Transparente.
As informações compartilhadas nesta reportagem buscam ajudar a entender a dimensão do problema de violências sexuais contra vulneráveis. A ausência massiva de informações que mostrem os laços mais frequentes entre vítima e agressor, no entanto, acabam por dificultar a identificação de quem aquela pessoa era para a criança.
E esses silêncios podem desinformar ou atrapalhar a cobrança por mudanças.
Entre 2009 e 2024, o Ceará contabilizou 23.006 vítimas de violência sexual contra crianças e adolescentes. A média revela a brutalidade em números frios: cerca de 1.437 casos por ano, 119 por mês, quatro por dia. É como se uma criança ou adolescente fosse violentado a cada seis horas, todos os dias, ao longo dos 16 anos.
Vítimas de abuso sexual no Ceará entre 2009 e 2024
Apesar da gravidade, a resposta do Poder Público está longe de acompanhar o ritmo das denúncias. No mesmo período, o número de indiciamentos não chegou a 7 mil, uma diferença de mais de 16 mil casos sem responsabilização formal.
Em nota explicativa na solicitação realizada pela reportagem, a Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp) informa que:
"A quantidade de relacionamentos pode não conferir com a quantidade de indiciados/suspeitos identificados, uma vez que um indiciado/suspeito pode cometer a ação criminosa contra uma ou mais vítimas, possuindo relacionamento igual ou diferente com cada uma delas, bem como pode haver ausência na informação de relacionamento entre indiciado e vítima."
Vítimas x indiciado por abuso sexual no Ceará entre 2009 e 2024
Ao levar essa análise em consideração, é como se cada pessoa indiciada tivesse violentado, necessariamente, duas ou quatro crianças ou adolescentes entre 2009 e 2024.
Integrante da Comissão de Enfrentamento a Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes do Fórum DCA Ceará, Lídia Rodrigues comenta que a falta de cruzamento entre os registros dificulta compreender se os indiciamentos se referem a múltiplas vítimas de um mesmo agressor ou a diferentes pessoas, o que compromete a leitura da real dimensão da violência sexual contra crianças e adolescentes.
Por isso, o número de indiciamentos sem confirmar o grau de relacionamento com as vítimas salta aos olhos. Segundo especialistas, essa lacuna estatística não é apenas um problema técnico e passa a representar um apagamento institucional que impede até mesmo com que o Estado entenda e aja de forma efetiva diante do problema.
A organização sem fins lucrativos Terre des Hommes, que atua na garantia de direitos de crianças, adolescentes e jovens há 40 anos no Brasil, considera que a falta de acesso a informações essenciais sobre a violência sexual é um obstáculo significativo para a criação e execução de políticas públicas eficazes.
Pedro Alisson, psicólogo da instituição e integrante do
“O que acontece é que a gente tem sistemas de notificação muito deficitários, que não dão conta de apreender todas as informações necessárias para que a gente tenha uma intervenção mais qualificada”, complementa Lídia Rodrigues, que também é ex-coordenadora da ECPAT Brasil, rede internacional de combate à exploração sexual de crianças.
Ela lembra que, no dia a dia de quem acompanha as lutas por proteção de crianças e adolescentes, já há um entendimento de que os abusos sexuais são cometidos, na maioria das vezes, por pessoas do círculo de confiança da criança. “Geralmente acontecem dentro de casa. Não é o estranho na rua. É o tio, o pai, o padrasto, o irmão. É alguém com quem a criança convive e confia”, enfatiza.
Nos poucos casos com registros nas bases de dados do Estado, há de fato uma breve confirmação desse cenário. São apenas 2,54% (175) dos casos que constam com a informação sobre o grau de parentesco ou vínculo. Essa pequena amostra revela que os abusadores por vezes são padrastos (50 casos), pais (30), tios (28), namorados (21) ou amigos (10).
Parentesco dos indiciados por crimes de abuso sexual contra crianças e adolescentes no Ceará
O psicólogo Pedro Alisson acrescenta que a dificuldade de acesso às informações repercute também na formulação de planos de enfrentamento. Em Fortaleza, por exemplo, o plano municipal de proteção de crianças e adolescentes deveria ter sido construído desde o ano 2000, mas segue estagnado. Para ele, com isso, a falta de dados acaba gerando uma reação em cadeia e de paralisia social.
"A principal barreira não é apenas a ausência de dados, mas questões políticas, questões de vontade e mobilização da sociedade civil", afirma, destacando a relação intrínseca entre dados e estratégia. Ele questiona: "Se eu não tenho acesso às informações, qual é a efetividade das ações que eu vou propor nesse plano?".
Assim, a falta de dados concretos compromete uma comunicação mais esclarecedora com a sociedade, atrapalha a criação de propostas e praticamente impede a definição de metas mais bem direcionadas às vítimas e às suas famílias.
Mesmo diante da escassez de dados precisos, os padrões de violência são evidentes.
“A violência sexual contra crianças e adolescentes é sobretudo uma relação de poder desigual. Todas as relações de poder que atravessam a nossa sociedade vão também atravessar essa relação. Não é à toa que tem aí que o maior número de vítimas são meninas, e sabe-se que as meninas negras são as mais violentadas”, complementa Lídia.
De fato, os números indicam uma maior parte das violências sendo direcionadas às vítimas do sexo feminino: 19.730 casos (85,76%). Enquanto isso, vítimas do sexo masculino foram contabilizadas 3.275 vezes (14,24% do total). OBS.: Uma única vítima não teve seu sexo revelado.
Vale ressaltar que, na série história, as bases disponibilizadas à reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) não revelam a raça/etnia e que consideram apenas o sexo biológico tanto das vítimas quanto dos indiciados.
Vítimas de abuso sexual no Ceará por sexo biológico
Os dados trazem ainda as idades das vítimas, com destaque para a faixa de 13 anos, com 3.258 casos. Logo em seguida, estão as idades de 12 e 14 anos, com 2.621 e 1.944 registros, respectivamente. Esses números indicam um pico preocupante no início da adolescência, fase marcada por transições físicas e emocionais.
Outro dado relevante é que mesmo entre as idades mais baixas os números são expressivos: foram 595 casos com vítimas de 2 anos, e 158 registros envolvendo bebês com menos de 1 ano de idade. E a partir dos 9 anos, os números ultrapassam os mil casos por idade.
Idade das vítimas de abuso sexual no Ceará entre 2009 e 2024
Com atuação direta com adolescentes que foram autores de abuso sexual, Pedro Alisson também chama atenção para a relação de poder desigual que marca esse tipo de violência. Segundo o psicólogo, a dinâmica do abuso está profundamente atravessada por questões de gênero, prova disso é que a maioria dos agressores é formada por homens, enquanto as vítimas, em grande parte, são mulheres.
Além do mais, entre os adolescentes atendidos por ele por terem cometido atos infracionais análogos ao abuso, a regra tem sido a escolha de vítimas significativamente mais novas. Pedro explica que a diferença de idade reflete a lógica de uma sociedade "adultocêntrica", na qual os adultos ocupam posições de poder e superioridade, enquanto crianças e adolescentes permanecem em situação de vulnerabilidade.
Por isso ele observa ser incomum que adolescentes cometam abusos contra pessoas da mesma idade, sendo ainda mais rara violências dirigidas a pessoas mais velhas. E nos casos envolvendo meninos, ele destaca que os abusos ocorrem, em sua maioria, durante a primeira infância, que é a fase em que os corpos ainda têm características mais infantis.
Durante a apuração dos dados, a hipótese da equipe de reportagem era que os meses de férias escolares e finais de semana seriam os momentos com maiores índices de violência contra crianças e adolescentes no Ceará. Por serem ocasiões em que as crianças estariam mais tempo em casa, imaginou-se que as violências aumentariam. Porém, a hipótese não se confirmaram.
Isso porque a violência sexual contra crianças e adolescentes no Ceará segue um roteiro perverso, marcado por dias da semana e horários específicos. E o que poderia parecer aleatório, na verdade ganha contornos nítidos quando os dados são cruzados com as dinâmicas familiares.
De 2009 a 2024, os registros de violência sexual contra vulneráveis no Estado revelam uma concentração expressiva no início da semana. As segundas-feiras lideram os casos entre as vítimas (3.790 registros, ou 16,4%), seguidas pelas terças (3.421 casos) e quartas (3.415), cerca de quase 15% cada. Juntas, as três datas respondem por 46% do total de registros.
Nos fins de semana, os números caem: sábados (11,7%) e domingos (13,3%) aparecem com as menores incidências.
Dias da semana com maiores números de vítimas de abuso sexual no Ceará
Essa regularidade estatística não é coincidência, conforme explica a especialista Lídia Rodrigues, integrante da Frente de Assistência à Criança Carente. Ela comenta que, aos finais de semana, mais pessoas tendem a estar em casa, e em famílias de classes mais baixas, não há muitos espaços dentro da casa onde as pessoas possam se isolar ou ter privacidade.
“Mas durante a semana, a dinâmica da família muda. Alguém vai para a escola, outra pessoa vai ao trabalho, alguém faz compras… e com o aumento das jornadas de trabalho flexíveis, muitas vezes as crianças não ficam sozinhas em casa, sempre há um adulto por perto. Por isso, durante a semana, há uma maior vulnerabilidade para o abuso sexual intrafamiliar”, diz.
Segundo dados obtidos pela Central de Dados O POVO+, é possível perceber também que as violências têm hora marcada para acontecer. As manhãs lideram os registros e o horário das 10 horas concentra 14,1% das notificações entre as vítimas. Entre 8h e 11h, somam-se 40% das ocorrências com hora informada. As tardes, especialmente entre 14h e 16h, também mantêm incidência relevante.
Horários e dias com mais casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes no Ceará
Sobre a ausência de informações estruturadas sobre o vínculo entre vítima e agressor em crimes sexuais contra crianças e adolescentes no Ceará também questionamos a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) e o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE).
A SSPDS foi procurada para esclarecer os motivos da omissão desses dados nos registros. Perguntamos se o campo "Grau de parentesco entre indiciado e vítima" seria de preenchimento obrigatório no registro de inquéritos policiais, se há motivo técnico que justifique a omissão dessa informação, se a pasta pretende revisar seus protocolos de coleta de dados, e se a ausência dessa informação compromete o trabalho investigativo, estatístico e de prevenção desses crimes. No entanto, não houve nenhum retorno.
Já a Secretaria Executiva das Promotorias da Infância e da Juventude do MPCE afirmou que a inclusão de filtros e parâmetros nos sistemas policiais, como o registro específico do vínculo, “transcende a atuação em nível de controle externo” dessas promotorias. Segundo o órgão, embora não haja um campo estruturado para esse dado, nas denúncias envolvendo violência sexual contra menores “via de regra há descrição ou identificação do agressor (quando conhecido) no conteúdo da denúncia”.
Para o MPCE, a ausência do campo “não compromete ou afeta o trabalho de investigação e persecução penal” dos casos. O órgão destacou, por outro lado, que estatísticas e dados estruturados são “ferramentas valorosas” para o combate à violência sexual, pois permitem identificar tendências e direcionar recursos.
Por sua vez, o TJCE informou que, no Sistema de Automação da Justiça (SAJ) de Primeiro Grau, utilizado pela 12ª Vara Criminal da Comarca de Fortaleza, responsável por julgar crimes sexuais contra crianças e adolescentes, não há um campo padronizado para registrar o grau de parentesco entre vítima e agressor. Esses dados, quando existentes, aparecem apenas nos relatos e petições.
O TJCE afirmou possuir normas que incentivam a coleta e centralização de informações, como as Resoluções nº 25 e nº 26 de 2022, mas reconheceu que ainda não dispõe de um banco de dados capaz de filtrar estatísticas por essa variável. Também ressaltou que não há integração formal entre os sistemas da Justiça estadual e os da Polícia Civil ou do MP, o que impede cruzamentos mais precisos.
Para a elaboração desta reportagem, foram utilizadas bases de dados públicas obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI). As solicitações foram encaminhadas à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) e atendidas pela Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), por meio da Gerência de Estatística e Geoprocessamento (Geesp) e do Sistema de Informações Policiais (SIP), com acesso realizado pela plataforma Ceará Transparente.
Foram requeridos dados estatísticos referentes aos crimes de estupro de vulnerável, estupro, violação sexual mediante fraude, importunação sexual e favorecimento da prostituição ou exploração sexual de criança, adolescente ou vulnerável.
As informações solicitadas incluíam o sexo do(a) acusado(a) e sua relação com a vítima, conforme previsto no artigo 226, parágrafo II, do Código Penal (ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima, ou qualquer outro vínculo de autoridade).
Também foi pedido que o recorte temporal contemplasse o ano de 2009 em diante, ou o mais antigo disponível, com detalhamento de datas, municípios ou Áreas Integradas de Segurança (AIS) e idades das vítimas.
Em resposta, a reportagem recebeu planilhas referentes aos crimes listados, com registros sobre vítimas e indiciados/suspeitos. As bases incluíam informações como: AIS, data, horário e município da ocorrência, além do sexo e idade das vítimas. No caso dos indiciados, havia ainda o campo “Relacionamento”, destinado a registrar o grau de parentesco ou vínculo com a vítima.
As informações foram fornecidas em dez planilhas distintas. A Central de Dados O POVO+ compilou todos os arquivos, organizando-os em bases separadas para vítimas e indiciados. Em seguida, realizou o tratamento e a limpeza dos dados, utilizando Google Planilhas e a linguagem de programação Python, por meio da plataforma Google Colab, para leitura e análise das informações.
Com o objetivo de garantir transparência e reprodutibilidade, a Central de Dados O POVO+ mantém uma página no GitHub, onde códigos e dados podem ser acessados pelo público. Além disso, cada gráfico publicado na reportagem contém botões de download, permitindo ao leitor acessar diretamente as bases utilizadas nas visualizações.