A violência sexual contra crianças e adolescentes ainda é um dos temas mais silenciosos na sociedade cearense. Grande parte dos registros não traz informações básicas, como o grau de parentesco ou proximidade entre vítima e agressor, evidenciando um vazio que torna mais difícil entender como esse crime se perpetua. Mas um recorte específico, até então pouco discutido, chama atenção: os casos em que adolescentes surgem como autores da violência.
Entre 2009 e 2024, 571 jovens com menos de 18 anos foram indiciados por abuso sexual no Ceará, conforme dados inéditos obtidos pela Central de Dados O POVO+ via Lei de Acesso à Informação (LAI).
O número mostra que, embora pouco debatido, esse perfil existe e precisa ser compreendido com cuidado, já que pode estar ligado à reprodução de padrões de violência e a contextos de vulnerabilidade que se repetem de geração em geração.
Os registros também evidenciam a dimensão de gênero: 533 autores eram meninos e 38 meninas, reforçando o peso da lógica de dominação masculina que reflete na maioria dos casos de abuso sexual.
Em paralelo, chama atenção a concentração das ocorrências em idades mais próximas da maioridade, o que pode indicar a descoberta da sexualidade ou mesmo a reprodução de comportamentos observados em ambientes familiares e comunitários.
Esta reportagem busca trazer à luz não apenas aos números, mas também às razões que ajudam a explicar o porquê de adolescentes cometerem abusos sexuais. O POVO+ mostra como iniciativas locais, a exemplo do Projeto Elos de Proteção, do Instituto Terre des Hommes, tentam quebrar o ciclo a partir de abordagens humanizadas e de reconstrução de trajetórias.
Ao longo de 16 anos, o Ceará contabilizou 571 indiciamentos de adolescentes por abuso sexual, de acordo com dados da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), da Gerência de Estatística e Geoprocessamento (Geesp) e do Sistema de Informações Policiais (SIP).
Por meio dessas informações, é possível identificar a predominância masculina e a concentração em determinadas faixas etárias que ajudam a compreender a dinâmica dessa violência.
Do total registrado no período, 533 indiciados eram do sexo masculino (93,4%) e 38 do sexo feminino (6,6%). A distribuição por idade reforça ainda a adolescência média como período mais crítico. A maior incidência ocorre aos 16 anos, com 130 registros, sendo 119 cometidos por meninos e 11 meninas.
O recorte temporal também mostra oscilações ao longo dos anos, mas uma constância na predominância masculina. O ano de 2013 foi o com maior número de registros, 66 no total, seguido por 2014, com 49 casos.
Os dados permitem, portanto, delinear um perfil de adolescentes autores sendo majoritariamente formado por meninos, entre 13 e 17 anos, ano a ano sendo registrados nos bancos de indiciamento do Ceará.
O recorte quantitativo indica uma realidade muitas vezes invisível no debate público e abre espaço para compreender os fatores que levam adolescentes a se tornarem agressores. Para especialistas, a questão pode estar diretamente ligada a traumas anteriores e às dinâmicas de poder e gênero presentes na sociedade.
Para o psicólogo Pedro Alisson, que atua no Projeto Elos de Proteção em Fortaleza, do Instituto Terre des Hommes Brasil, não se trata apenas de responsabilizar o autor, mas de compreender o contexto em que ele está inserido.
Ele explica que, em boa parte dos casos acompanhados, os adolescentes também foram vítimas de abuso sexual em algum momento de suas vidas, sobretudo durante a infância. Esse relato encontra eco em pesquisas que analisaram o chamado “ciclo da violência sexual”.
O artigo “Violência sexual contra crianças e adolescentes e suas consequências psicológicas, cognitivas e emocionais”, publicado na revista Psicologia e saúde em debate em 2020, confirma que experiências de abuso sexual vividas na infância aumentam de forma significativa o risco de que um adolescente venha, ele próprio, a reproduzir comportamentos abusivos – especialmente quando essas experiências não são acompanhadas por suporte psicológico e intervenção adequada.
“As expressões do fenômeno da violência integram uma rede que envolve a violência estrutural (oriunda do sistema social), assim como a violência interpessoal (doméstica, trabalho, amigos), atravessando camadas sociais e podendo transformar vítimas em agressores”, escrevem as pesquisadoras Emanuela Varela de Aguiar e Caroline Araújo Lemos Ferreira.
Outro trabalho acadêmico intitulado de “Educação sexual nas escolas: um debate de ruptura do ciclo da violência sexual na infância e adolescência”, desenvolvido na Universidade de Brasília (UnB) e publicado em 2024, reforça que romper o ciclo depende de políticas públicas de prevenção e de educação que quebrem o silêncio e promovam redes de proteção ativas.
“A falta de debates sobre o tema no ensino básico no Brasil pode contribuir para o aumento nos indicadores de casos de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes. Dessa forma, destaca-se uma necessidade emergente de incluir e discutir a educação sexual e suas influências na vida de crianças que frequentemente sofrem silenciamento, abuso e exploração sexual no ambiente escolar”, escreveu a pesquisadora Kessya Epaminondas de Jesus.
Portanto, o abuso vivido na infância, somado à ausência de suporte psicológico e à falta de uma rede de proteção eficiente, aumenta a probabilidade de que o adolescente repita, em outro momento da vida, a violência que sofreu.
“Se eu não identifico, não lido e não responsabilizo, essa pessoa provavelmente vai cometer esse ato de novo”, alerta Pedro Alisson.
Ele descreve que, dentro das famílias, há um fenômeno que promove o silenciamento dos atos infracionais cometidos por adolescentes, sobretudo em casos de abuso sexual dentro do contexto familiar.
“As famílias não querem denunciar o próprio filho, o irmão, o sobrinho, o primo. Então ainda existe uma cultura de não responsabilizar, deixando esses casos abafados”.
Pedro defende que seja aplicada uma justiça restaurativa. Nela, além da responsabilização, busca-se que o adolescente entenda o que aconteceu e que aquilo causou sofrimento para outra pessoa. Esse conceito surge como um contraponto ao sistema brasileiro atual, predominantemente punitivista.
Por outro lado, o psicólogo enfatiza a necessidade de responsabilizar o adolescente para que ele entenda que existem limites que não podem ser ultrapassados, como o limite do corpo do outro, da sexualidade, da faixa etária, do gênero, da raça e da orientação sexual.
Outro aspecto apontado por Pedro Alisson remete às questões de gênero. Ele reforça que o abuso sexual está relacionado às dinâmicas históricas de poder, patriarcado e dominação masculina. Isso ajuda a explicar o porquê da imensa maioria dos indiciados serem meninos, enquanto as vítimas, em regra, são meninas, sobretudo mais novas.
Essa relação entre masculinidade e violência é recorrente em pesquisas acadêmicas. O estudo “Gênero e violência sexual contra crianças: um debate sobre relações de poder”, publicado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), indica que as desigualdades de gênero estruturam práticas de abuso, consolidando a ideia de poder e dominação masculina no imaginário social.
Segundo o estudo, publicado na revista Interação em Psicologia:
“O processo de socialização e construção das identidades dos sujeitos é marcado por práticas e discursos que incidem continuamente sobre os corpos desde sua gestação. Modelos hegemônicos de masculinidades e feminilidades atravessam as vivências dos sujeitos, produzindo marcas, relações de poder, possibilidades e proibições."
"Assim, compreende-se o gênero enquanto categoria de análise produtora de relações de poder assimétricas que, entre outros fatores, contribuem para a reprodução da violência sexual contra crianças e adolescentes.”
O artigo reforça ainda que elementos como machismo, patriarcado e adultocentrismo, aliados a desigualdades sociais, são fatores determinantes na violência sexual infantojuvenil, exigindo políticas públicas e ações que questionem e enfrentem essas normativas de gênero.
Quanto ao chamado “adultocentrismo”, Pedro Alisson explica que o conceito descreve a posição de poder que adultos (ou adolescentes mais velhos) exercem sobre crianças. Nos casos acompanhados pelo Projeto Elos, os atos infracionais são geralmente cometidos contra vítimas de igual idade ou significativamente mais novas, o que provaria essa lógica de dominação baseada na idade.
Diante desse cenário, os motivos que levam adolescentes a cometerem violência sexual não podem ser vistos de forma isolada.
Eles revelam um emaranhado de fatores individuais, familiares e sociais, que vão desde traumas anteriores até padrões estruturais de gênero e falhas na rede de proteção. Para especialistas, compreender essas múltiplas camadas é o primeiro passo para formular estratégias que realmente quebrem o ciclo da violência.
Se os números revelam a gravidade da violência sexual cometida por adolescentes no Ceará, iniciativas locais mostram que há caminhos possíveis para interromper esse ciclo.
Um dos exemplos mais expressivos é o Projeto Elos de Proteção, desde 2022 em Fortaleza. O projeto adota uma abordagem multidisciplinar e humanizada, entendendo que enfrentar a violência sexual exige muito mais do que punição.
A proposta é atuar em diferentes frentes: dentro das escolas, estimulando debates e práticas de autoproteção; na formação de jovens como agentes de mudança em seus territórios; na articulação de redes de proteção que conectam sociedade civil, saúde, Conselhos Tutelares e outros órgãos; e, sobretudo, no acompanhamento psicológico de adolescentes autores de violência sexual.
É neste último eixo em que o psicólogo Pedro Alisson concentra seus esforços. Ele explica que o trabalho não se resume a corrigir comportamentos, mas a reconstruir perspectivas de vida.
A ideia é ajudar esses adolescentes a entender que sua existência não se limita ao ato infracional cometido. “Para além do ato, eles continuam sendo adolescentes, pessoas com passado, presente e futuro”, destaca.
O acompanhamento é estruturado como um processo terapêutico que busca responsabilização, bem como a prevenção da reincidência — e os resultados têm mostrado impacto. Segundo Pedro, a maioria dos jovens atendidos pelo projeto não voltam a praticar abusos e conseguem construir relações mais saudáveis em seu cotidiano.
A metodologia também reconhece que muitos desses adolescentes foram vítimas antes de se tornarem autores. Ao oferecer espaços de escuta e elaboração de traumas, então, o projeto trabalha para romper a cadeia de vitimização.
“Se eu estou trabalhando com esses adolescentes, diminui a probabilidade de que eles cometam esse ato novamente”, afirma o psicólogo.
De dentro do projeto, a experiência mostra que, quando bem aplicadas, políticas e metodologias de proteção podem gerar novos horizontes. Pedagogo e educador social, Josiberto Sousa é assessor técnico do Projeto Elos, trabalhando há 17 anos no enfrentamento de violências cometidas contra crianças e adolescentes.
Ele menciona que o Projeto Elos de Proteção aposta na criação de vínculos duradouros dentro das comunidades atendidas. O fortalecimento dessas redes é visível não só entre os estudantes, mas também entre profissionais das escolas e familiares.
"Quando crianças e adolescentes percebem que existem adultos de confiança atentos, a tendência é que se sintam mais protegidos para relatar situações de abuso e buscar ajuda", salienta o pedagogo. Esse sentimento se reflete em relatos frequentes de famílias que, a partir das ações do projeto, passaram a enxergar a escola como um espaço seguro e parceiro fundamental na proteção dos filhos.
Outro aspecto destacado é a mudança de atitude entre os próprios adolescentes após as atividades do Elos. Não raro, alunos se tornam agentes multiplicadores, levando o debate sobre prevenção e direitos para os lares e as ruas dos bairros onde vivem.
"A gente já presenciou casos de jovens que identificaram situações de abuso envolvendo colegas ou familiares e souberam como agir, acionando o Conselho Tutelar ou orientando outros colegas", conta Josiberto.
Por fim, o educador defende que o combate à violência sexual só se torna sustentável com educação continuada e a participação do Poder Público. Ele ressalta que, além do atendimento direto, é fundamental investir em políticas permanentes de capacitação de professores, campanhas de informação e estruturação da rede de proteção social.
“O enfrentamento à violência não pode depender só de projetos pontuais ou da boa vontade de determinadas equipes. Precisa ser compromisso de toda a sociedade e, principalmente, das gestões públicas, para garantir escala, continuidade e impacto real nas futuras gerações”, conclui.
Tanto de maneira local, quanto nacional, diversas instituições realizam trabalhos que depositam um olhar atento para combater violência contra crianças e adolescentes. Abaixo, O POVO+ lista algumas delas.
ATENÇÃO: Se você ou alguém que conhece está em situação de violência, denuncie: Disque 100 ou procure um desses serviços de proteção:
Para a elaboração desta reportagem, foram utilizadas bases de dados públicas obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI). As solicitações foram encaminhadas à Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) e atendidas pela Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), por meio da Gerência de Estatística e Geoprocessamento (Geesp) e do Sistema de Informações Policiais (SIP), com acesso realizado pela plataforma Ceará Transparente.
Foram requeridos dados estatísticos referentes aos crimes de estupro de vulnerável, estupro, violação sexual mediante fraude, importunação sexual e favorecimento da prostituição ou exploração sexual de criança, adolescente ou vulnerável.
As informações solicitadas incluíam o sexo do(a) acusado(a) e sua relação com a vítima, conforme previsto no artigo 226, parágrafo II, do Código Penal (ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima, ou qualquer outro vínculo de autoridade).
Também foi pedido que o recorte temporal contemplasse o ano de 2009 em diante, ou o mais antigo disponível, com detalhamento de datas, municípios ou Áreas Integradas de Segurança (AIS) e idades das vítimas.
Em resposta, a reportagem recebeu planilhas referentes aos crimes listados, com registros sobre vítimas e indiciados/suspeitos. As bases incluíam informações como: AIS, data, horário e município da ocorrência, além do sexo e idade das vítimas. No caso dos indiciados, havia ainda o campo “Relacionamento”, destinado a registrar o grau de parentesco ou vínculo com a vítima.
As informações foram fornecidas em dez planilhas distintas. A Central de Dados O POVO+ compilou todos os arquivos, organizando-os em bases separadas para vítimas e indiciados. Em seguida, realizou o tratamento e a limpeza dos dados, utilizando Google Planilhas e a linguagem de programação Python, por meio da plataforma Google Colab, para leitura e análise das informações.
Com o objetivo de garantir transparência e reprodutibilidade, a Central de Dados O POVO+ mantém uma página no GitHub, onde códigos e dados podem ser acessados pelo público. Além disso, cada gráfico publicado na reportagem contém botões de download, permitindo ao leitor acessar diretamente as bases utilizadas nas visualizações.
Série de reportagens de dados explora os números da violência sexual contra crianças e adolescentes no Ceará, a partir de dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação (LAI) solicitada pela Central de Dados O POVO+