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Fortaleza, terra de Sol maior: os cantos da Cidade que ressoam como música
Reportagem Seriada

Fortaleza, terra de Sol maior: os cantos da Cidade que ressoam como música

Rumo ao tricentenário, Fortaleza entoa a si mesma com cantos que ecoam através de suas ruas, paisagens, experiências, personagens e transformações ao longo de 299 anos
Episódio 2

Fortaleza, terra de Sol maior: os cantos da Cidade que ressoam como música

Rumo ao tricentenário, Fortaleza entoa a si mesma com cantos que ecoam através de suas ruas, paisagens, experiências, personagens e transformações ao longo de 299 anos Episódio 2
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Há quase três séculos, sempre que o Sol acende os refletores do céu, Fortaleza sobe ao palco entre acordes de luz e sussurros de marés. ► Nas longarinas da Ponte Velha, com pés descalços na areia e cabelos que dançam no vento, ela canta forte e se faz forte em seus cantos. Cantos de amor e de dor, de fé e festa, de saudade e reinvenção.

Diva popular e trovadora urbana, estrela de karaokê e solista de coral — uma cidade que entoa a si mesma em muitas vozes, timbres e ritmos. Que transforma ruas em refrãos, bairros em estrofes, memórias em acordes. A arte, aqui, é farol, ponte e porto seguro.

Fortaleza é melodia de domingo, beat no paredão, cântico de missa, batuque de terreiro. É aquela música que você não escolheu ouvir, mas agora mora na sua cabeça. É assobio de menino, poesia de esquina, canção que se esconde no avesso da pele e que só se revela quando o vento sopra um arrepio bem ao pé do ouvido.

 

Foi ao descrever esse encantamento cotidiano que o cantor Ednardo eternizou o cenário em que Fortaleza se debruça sobre o mar para cantar. Hoje, olhando para os quase 300 anos da capital cearense, ele reconhece o quanto a paisagem mudou — mas também como o sentimento permanece.

“A Fortaleza que retratei só permanece em sonho. A Cidade mudou muito. Cresceu, se espalhou, é a quarta maior do Brasil. É uma cidade grande, distinta da que vivenciei. Mas em alguns lugares se manteve aquele charme de antigamente. Eu amo do mesmo jeito. É como se fosse uma mulher que, com o tempo, fosse alterando sua fisionomia. Você não deixa de amar porque ela mudou fisicamente.”

Neste especial de aniversário, celebramos os 299 anos de Fortaleza com mais do que um “Parabéns pra você”; traçamos uma cartografia sonora guiada pelas melodias que a atravessam.

Aqui, a Cidade se revela em forma de música. Para cantar a chuva, o imaginário, as experiências ou as transformações, seus cantos, tantos e tão diferentes, formam um coral urbano que canta a vida em Sol maior.

Para quem está acostumado com mapas oficiais que mostram ruas, avenidas e prédios, aqui os mapas são de memória, vivências e afetos harmonizados pelos sons. Para ajudar a construí-los, O POVO+ convidou 13 personagens que tiveram sua vida tocada pela música e a utilizaram para tocar outras pessoas também.

Este é um convite para escutar a Cidade com outros sentidos. Porque todo lugar tem suas notas musicais, mas só Fortaleza é a terra do Sol.

 

 

Uma cidade, muitos cantos

Uma cidade feita de vozes, batuques, guitarras, sanfonas, beats e versos. Fortaleza é um lugar, mas é também uma experiência sonora em constante mudança. Viva, múltipla, polifônica, vibrante, desigual e cheia de subjetividades, ressoa seu cotidiano.

Das calçadas, becos e vielas aos arranha-céus, rooftops e cenários paradisíacos, a Cidade pulsa como se cada bairro tivesse sua própria trilha sonora — do forró ao rap, do reggae ao brega, do rock à MPB.

Rumo aos 300 anos, a identidade da Capital cearense pode ser lida pelas partituras que dela fizeram trilha, letra e melodia. Uma das pessoas que conduzem com maestria essa viagem musical é a professora Silvia Belmino, do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará (ICA/UFC).

Imagem mostra Silvia Belmino, professora que desenvolveu um aplicativo chamado "Fortaleza em Música" onde agrupa diversos artistas que cantam sobre lugares da Capital. Na imagem, ela aparece sorridente no centro de um corredor do Instituto de Cultura e Arte da UFC enquanto segura o celular.(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Imagem mostra Silvia Belmino, professora que desenvolveu um aplicativo chamado "Fortaleza em Música" onde agrupa diversos artistas que cantam sobre lugares da Capital. Na imagem, ela aparece sorridente no centro de um corredor do Instituto de Cultura e Arte da UFC enquanto segura o celular.

Ela é idealizadora do projeto Fortaleza em Música, um mapeamento musical desenvolvido pelo Grupo de Imagem, Consumo e Experiência Urbana (Giceu), do qual Belmino é coordenadora.

Tudo começou com uma inspiração que veio de longe: monumentos em Portugal onde era possível ouvir versos de Fernando Pessoa ao alcance de um QR Code.

Mas e se, em Fortaleza, a poesia viesse em forma de canção? “Como seria legal a gente criar um roteiro pela Cidade de lugares que foram musicados, que as pessoas cantaram de alguma forma”, pensou Silvia.

E assim, em 2019, nasceu a ideia de mapear todas as músicas que falam sobre Fortaleza e seus lugares: bairros, praias, praças, bares, delegacias, mangues e lembranças. Hoje já são 264 canções cartografadas e 73 compositores entrevistados pelo grupo.

Cada música é um ponto nesse mapa que une vivências e geografias afetivas. Mais do que um projeto de pesquisa, Fortaleza em Música virou um aplicativo, um guia turístico, um álbum de figurinhas, um e-book, um banco de dados e, sobretudo, um convite: que cidade você ouve quando escuta Fortaleza?

“É uma Fortaleza multifacetada, multicultural, multiexperimentada”, diz Silvia. “São formas diferentes de habitar a Cidade por meio da música. Para muitos artistas, a canção é a maneira que eles encontram de mostrar como habitam Fortaleza.”

Há de tudo nesse grande coral urbano: Ednardo, Fagner, Rodger Rogério, Falcão, Ângela Linhares, Mona Gadelha, BAKKARI, Nego Gallo, Daniel Medina, Selvagens à Procura de Lei, Gigi Castro, Erivan Produtos do Morro, Mateus Fazeno Rock, Má Dame, Matuê.

Imagem mostra as mãos da professora Silvia Belmino percorrendo o aplicativo "Fortaleza em Música" pela tela do celular. Há um mapa da Cidade com vários ícones de música na cor laranja que indicam lugares que foram cantados(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Imagem mostra as mãos da professora Silvia Belmino percorrendo o aplicativo "Fortaleza em Música" pela tela do celular. Há um mapa da Cidade com vários ícones de música na cor laranja que indicam lugares que foram cantados

Há clássicos e descobertas que levam à conclusão de que “não existe uma única identidade musical. O que existe é uma Fortaleza cantada de muitas formas, por muitas gerações. Cada uma com seu olhar e seu tempo”.

Silvia cita a chuva como metáfora dessas mudanças. “Ednardo canta a chuva com paixão, como algo desejado, símbolo da seca que precisa acabar. Já artistas mais jovens, como Daniel Medina ou Lídia Maria, veem a chuva como buraco na rua, atraso no trânsito. É a mesma água, mas outra Cidade.”

Os territórios também ganham outros contornos conforme o tempo passa. As velas do Mucuripe retratadas por Belchior dão lugar à luta dos pescadores no hip hop de Erivan Produtos do Morro. O Castelo Encantado retratado por Eugênio Leandro é um lugar de boemia nos morros com a vista da lua e do mar; e quando cantado por Rodger Rogério é um lugar de torres finas e altas. 

A professora Silvia Helena Belmino aparece apoiada em um corrimão nas dependências do Instituto de Cultura e Arte da UFC. Uma de suas mãos está no encostada no rosto dela, que sorri. Ao fundo, a palavra "democracia" está pixada em cor vermelha numa parede branca do ICA(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA A professora Silvia Helena Belmino aparece apoiada em um corrimão nas dependências do Instituto de Cultura e Arte da UFC. Uma de suas mãos está no encostada no rosto dela, que sorri. Ao fundo, a palavra "democracia" está pixada em cor vermelha numa parede branca do ICA

A coordenadora do Giceu explica que o mapeamento começou centrado em zonas mais conhecidas — o Centro, a Praia de Iracema, o Benfica. “Quando eu abri para o funk, o hip hop, o rap, o trap, o reggae, aí entrou a periferia. Aí apareceu outra Fortaleza”, conta Silvia.

Uma Fortaleza que não cabe nas imagens de cartão-postal, que fala das lagoas aterradas na Sapiranga, da violência, do medo de circular por espaços em que certos corpos ainda são vistos como estranhos.

O rap, por exemplo, não canta o mar, mas as margens. Fala de violência, de racismo, de exclusão — e também de resistência. Já a MPB, sobretudo a mais antiga, romantiza a cidade solar e das jangadas, aquela Fortaleza idealizada pelos turistas e quase nostálgica.

Fortaleza em músicas

 

“O pessoal do rap mostra um mundo real, uma cidade muito mais crua. É a violência que eles vivem, a discriminação que eles passam, são as formas de lazer que eles encontram. Retratos do cotidiano, das dores e das alegrias de viver aqui. O pessoal do rock também tem uma pegada de protesto, mas já é uma outra Fortaleza”, diz.

“Você encontra músicas sobre Fortaleza que são carregadas de saudosismo, que cantam a cidade do mar. É uma cidade que nem existe mais, mas no imaginário ficou aquela cidade do sol e mar, da jangada, aquela coisa bem bucólica da praia do Mucuripe, dos pescadores. Mas há pessoas que cantam outra realidade.”

Silvia elenca algumas delas: “O Pedro Viajante, por exemplo, canta um aterro do que não existe mais. O Parahyba de Medeiros traz muito do Conjunto Palmeiras. A Má Dame canta mais o Quintino Cunha. A Mumutante fala da Sabiaguaba. Tem pessoas como Calé Alencar, Pingo de Fortaleza, Lúcia Simão, que vão trazer o maracatu. O que eu menos encontrei, por incrível que pareça, foi o forró. Porque o forró canta muito sentimento, e sentimento é por pessoas, não por lugares”.

 

 

Há músicas que emocionam, outras que provocam, algumas que incomodam. O projeto não busca censurar — mas contextualizar. “Eu não vou deixar de registrar uma música porque ela foi feita em outra época, com outra mentalidade. Isso também é memória. Isso também é Fortaleza. Eu não vou fechar os ouvidos à Cidade”, afirma Silvia.

A professora explica que o critério de entrada no projeto é simples: “Se a música cita um lugar de Fortaleza, ela entra. Não importa o estilo, o gosto pessoal, a fama do artista. Importa que ela registra um território, uma vivência. Às vezes, a música cita só uma rua, uma praça, mas isso já basta para a gente começar a escutar o que aquele lugar representa.”

Ela relembra que o projeto também é um convite à escuta crítica da cidade: “Que Fortaleza é essa que se canta? Quem canta? Quem é silenciado? Que territórios estão presentes? Quais estão ausentes? E por quê? Essas são perguntas que nos atravessam o tempo todo.”

A professora reforça o valor da escuta como método de pesquisa: “Não queremos respostas prontas. Queremos ouvir o que pulsa no corpo do artista, na experiência dele com aquele lugar. Às vezes, a pessoa nunca tinha falado da música daquele jeito. E ali, caminhando com a gente, ela redescobre a própria história.”

“Fortaleza tem muitas Fortalezas dentro dela. E cada canção revela uma dessas cidades. O que a gente quer é escutar todas elas”, diz. E quem escuta, jamais volta a andar por Fortaleza do mesmo jeito.


 

Um roteiro de canções: a música que conecta pessoas, lugares e memórias

Foi em meio às aulas de Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Ceará (UFC) que Fabrício Andrade e Metusael Silva se encontraram — primeiro como colegas, depois como parceiros de vida, e por fim como coautores de um projeto que une música, cidade e afeto.

“Os Cantos de Fortaleza”, guia turístico-musical que nasceu como trabalho de conclusão de curso do casal, é uma dessas ideias que soam como canção boa: começa com uma inquietação, cresce com sentimento e fica na memória como refrão.

A semente foi plantada na disciplina “Comunicação, Música e Cidade”, da professora Silvia Helena Belmino, que também inspira o aplicativo Fortaleza em Música, e que influenciou a dupla a pensar a metrópole como um mapa de sons e sentidos.

O jovem casal de publicitários Fabrício Andrade e Metusael Silva jogam para cima o guia turístico "Os cantos de Fortaleza", elaborado por eles. Ao fundo está o planetário e uma parte do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE O jovem casal de publicitários Fabrício Andrade e Metusael Silva jogam para cima o guia turístico "Os cantos de Fortaleza", elaborado por eles. Ao fundo está o planetário e uma parte do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura

A vontade de traduzir Fortaleza por meio de sua diversidade musical partiu de uma percepção compartilhada: a cidade é um caleidoscópio de experiências e cada bairro canta uma história própria.

“Mesmo passando 22 anos da minha vida aqui, percebi o quão pouco da cidade eu conhecia”, confessa Fabrício. “A forma como vejo Fortaleza é totalmente diferente de quem mora no Pici, na Aldeota ou na Messejana. Existem muitas Fortalezas dentro de uma só.”

Já Metusael, que chegou de Sobral para estudar na Capital, enxergava a Cidade também com olhos de visitante: “Sempre tive curiosidade de entender como a cidade era vista pelos turistas, até porque um dia eu fui um deles. A música nos pareceu a linguagem ideal para traduzir essa pluralidade”.

Os cantos de Fortaleza

Clique nos lugares para conhecer algumas canções e artistas que cantam a Cidade

 

O guia reúne músicas que fazem referência direta à Cidade e seus bairros, propondo roteiros onde os pontos turísticos ganham trilhas sonoras afetivas. “Uma que me marcou muito foi “Do Mucuripe à Fazenda Boa Vista”, do Carlinhos Palhano”, conta Fabrício.

“Ele canta os nomes dos bairros de Fortaleza e diz: ‘Tantos bairros, tanta história em pouco tempo’. Essa frase resume bem o que senti: Fortaleza muda, cresce e se transforma, mas continua carregando as memórias de quem vive por aqui.”

Mais do que um guia funcional, o projeto funciona como um convite para escutar Fortaleza com outros ouvidos. E isso se reflete também na estética visual. “As ilustrações foram inspiradas pela própria cidade. As cores, formas e texturas ajudam a criar um material que realmente represente Fortaleza”, explica Fabrício, que assina a identidade visual.

Metusael e Fabrício aparecem de costas um para o outro, apoiados. Os dois seguram páginas do guia turístico "Os cantos de Fortaleza" em forma de leque. Eles estão sentados em uma escadaria do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Metusael e Fabrício aparecem de costas um para o outro, apoiados. Os dois seguram páginas do guia turístico "Os cantos de Fortaleza" em forma de leque. Eles estão sentados em uma escadaria do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura

Muitos dos lugares ilustrados vinham das lembranças de infância; outros, foram revisitados com um novo olhar. “É interessante como a nossa percepção muda com o tempo.”

Para Metusael, a criação do guia também revelou o quanto da produção musical local ainda é invisibilizada. “Percebemos a variedade musical que Fortaleza possui e que muitas vezes permanece escondida por falta de investimento e reconhecimento”, diz. E é justamente esse movimento de dar visibilidade à musicalidade escondida nos becos, calçadas e palcos da cidade que aproxima o projeto de outros trabalhos como o Fortaleza em Música, que mapeia canções relacionadas a bairros da Cidade.

“Unimos nossas paixões — por música e por Fortaleza — em um projeto que carrega muito da gente”, resume Metusael. Agora, a dupla sonha com novos caminhos para “Os Cantos de Fortaleza”: levar o guia à Secretaria de Turismo, traduzi-lo, distribuí-lo em pontos turísticos. Fazer com que ele chegue a mais ouvidos, olhares e passos.

Mais do que um TCC, o projeto virou gesto de agradecimento à cidade e à Universidade. Um mapa afetivo. Um roteiro de canções. Um tributo em forma de canto — à Fortaleza de todos os tempos e territórios.



No solar dos ritmos

Fortaleza é muitas e múltiplas em seus tons. Para a professora Catherine Furtado, do curso de Música da UFC, a Cidade pulsa como um tambor coletivo. Seus becos e avenidas, mais do que vias urbanas, são como “encruzilhadas sonoras” onde o batuque da cultura e os cantos de pertencimento se encontram.

“Há um impulso fértil para o cantar, tocar e compor a Cidade”, diz a pesquisadora, que estuda a área da percussão popular brasileira e africana, além de etnomusicologia. Ela completa: “Fortaleza tem a força musical pela inquietação e paixão dos seus artistas que a sonorizam até mesmo com seus silêncios”.

Silvia Belmino entende que toda música é uma forma de lugar — e é nesse ponto que seu pensamento cruza com o de Catherine, mesmo que seus compassos dancem em áreas distintas da pesquisa. Ambas estão comprometidas com um ofício que é também missão: escutar. Mas não qualquer escuta — uma escuta que, como define a etnomusicologia, é cultural, histórica, crítica e profundamente encarnada.

Catherine Furtado é professora do curso de Música da UFC e pesquisadora na área da percussão popular brasileira e africana e etnomusicologia. Está em pós-doutorado na África e é autora do livro "No solar dos ritmos". Na imagem ela aparece sorrindo apoiada em dois tambores de batuque(Foto: Catherine Furtado/Acervo pessoal)
Foto: Catherine Furtado/Acervo pessoal Catherine Furtado é professora do curso de Música da UFC e pesquisadora na área da percussão popular brasileira e africana e etnomusicologia. Está em pós-doutorado na África e é autora do livro "No solar dos ritmos". Na imagem ela aparece sorrindo apoiada em dois tambores de batuque

Há 16 anos regente e coordenadora do Grupo de Música Percussiva Acadêmicos da Casa Caiada — projeto de extensão da Pró-Reitoria de Cultura da UFC —, Catherine atualmente faz pós-doutorado em Ghana, na África, pelo Institute of African Studies da University of Ghana.

Sua pesquisa investiga paralelos entre os ritmos Kpanlogo e Agbadza, da África Ocidental, e o samba e os toques do candomblé, no Brasil.

“Até o momento estas investigações revelam semelhanças estruturais impressionantes para uma matriz rítmica africana comum.” É a música como ponte ancestral, elo entre territórios e histórias.

“A cultura africana é essencial para entender nossa cultura brasileira”, afirma a professora. Essa escuta transatlântica, para além dos ritmos, é também a escuta de um povo em diáspora que encontrou nas batidas um instrumento de permanência.

O caminho até esse interesse passou pelos jardins da Casa de José de Alencar, entre tambores e pés descalços.

Um samba-enredo de Descartes Gadelha e Inês Mapurunga batizou o espaço de criação: “Mas a casinha caiada, relíquia de sua inspiração [...] hoje é altar de luz do saber, refúgio dos que fazem da vida uma canção”.

Para Catherine, o vínculo com o maracatu cearense veio de uma vivência direta com o Mestre Descartes: “Tive a oportunidade de acompanhá-lo nas caminhadas pelos vários grupos da cidade. Vivências de extrema musicalidade e aprendizado ao lado desse importante artista da nossa cidade, ao qual sou muito grata”.

Dessa experiência surgiu o livro “No Solar dos Ritmos”, escrito com o músico Pingo de Fortaleza. “Escrever esse livro foi uma grande oportunidade de contribuir com a ‘gramática dos tambores’, as memórias e os registros da manifestação do Maracatu Solar, que bem expressam a potência dinâmica e criativa da manifestação do maracatu cearense”, afirma.

A publicação reúne partituras, imagens e gravações em QR Code: “É um trabalho coletivo onde pude colaborar com a parte musical discutindo sobre as diversidades rítmicas que temos nesse grupo”.

Lúcia Simão, precursora do movimento negro em Fortaleza, é presidente da Associação Cultural e Educacional Afro-brasileira Maracatu Nação Iracema, referência no maracatu cearense. Na imagem, aparece com trajes de rainha com expressão imponente na frente de uma lona amarela(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Lúcia Simão, precursora do movimento negro em Fortaleza, é presidente da Associação Cultural e Educacional Afro-brasileira Maracatu Nação Iracema, referência no maracatu cearense. Na imagem, aparece com trajes de rainha com expressão imponente na frente de uma lona amarela

Mais do que documento, o livro é um ato de afeto: “Isso representa também a importância de promover o acesso às produções artísticas para nossa sociedade, registrando, contando memórias e, ao mesmo tempo, incentivando o conhecimento e o interesse pela nossa cultura popular de Fortaleza.”

O toque do maracatu também toca a Cidade. Um de seus sons mais característicos é o do ferro, instrumento percussivo que, segundo Catherine, “faz uma alusão ao badalar dos sinos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, localizada na conhecida Praça dos Leões”. Nesse gesto, o som urbano se mistura ao rito, o cotidiano ao sagrado.

“Fortaleza e suas diversidades sonoras são transbordantes em todos os aspectos”, resume. “Para cada área do xadrez urbano, ou melhor, nas encruzilhadas dos espaços desta Cidade, temos uma possibilidade de ouvir, sentir, criar e criticar.”

Imagem mostra crianças de diferentes idades tocando instrumentos de percussão em um espaço de ensaio do Maracatu Solar(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Imagem mostra crianças de diferentes idades tocando instrumentos de percussão em um espaço de ensaio do Maracatu Solar

Essa escuta, diz ela, é muitas vezes marcada por um campo “não necessariamente harmônico”, mas fértil, pois “pela necessidade vital em fazer arte, a interação humana-cidade produz diversas musicalidades em seus espaços”.

Se tivesse que escolher apenas um som para representar Fortaleza? Catherine hesita. “Se eu for nomear um toque, acredito que posso limitar a riqueza que Fortaleza possui”, diz.

“Mas posso então sugerir que, dentro dos nossos ‘toques sincopados’ — na terra dos maracatus, sambas, balanceio, coco e baião — há um espaço convidativo para toda diversidade musical da Cidade”.



Playlist colaborativa

Conhece músicas que cantam sobre Fortaleza? Acesse a nossa playlist colaborativa e ajude a construir mais um acervo musical para a memória da nossa Cidade.

  • Concepção, textos e recursos digitais Karyne Lane
  • Edição O POVO+ Catalina Leite e Fátima Sudário
  • Design Cristiane Frota e Gil Dicelli
  • Fotografia Fco Fontenele, Fábio Lima, Samuel Setubal, Fernanda Barros, Júlio Caesar e Clemilton Barreto/Especial para O POVO+
  • Agradecimentos especiais Silvia Belmino, Clemilton Barreto, Fabrício Andrade, Metusael Silva, Luana Vieira e Sofia Herrero/Vida&Arte O POVO
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