Ar fresco, família perto e um lugar seguro: aos 75 anos, prestes a se aposentar, isso é tudo o que a teóloga e filósofa cearense Maria Lúcia Simão Pereira quer. “É tudo o que todo preto quer”, corrige. Enquanto observa a neta do meio, Dandara, de 6 anos, a precursora do movimento negro no Ceará reflete: “Eu espero que se levantem e que vocês encontrem outras mulheres negras que continuem essa história”.
Das três Marias que compõem a escadinha na mais nova geração da família Simão (Maria Jasmim, 7, Dandara Maria, 6, e Maria Flor, 5), Lúcia identifica e celebra as semelhanças: o cabelo, os traços, a cor. Todos elementos da identidade negra que ela não reconhecia em si mesma quando passou por essas idades. “Se você perguntar, ela diz bem direitinho por que se chama assim”, aponta, orgulhosa, para Dandara.
Foi justamente por Dandara — seja a neta ou a do
Terceira dos cinco filhos de Chico e Mazé Simão, em sua narrativa não há separação entre a história de vida e a história do movimento. Trabalhou como empregada doméstica em casa de família, viajou para a casa de irmãs católicas na tentativa de seguir um caminho religioso, mas foi na casa em que cresceu, no bairro Jardim Iracema, na periferia de Fortaleza, que ela entendeu que o que lhe movimentava era a necessidade de se aquilombar junto aos seus.
Ainda entre os vestígios do Carnaval, na sede do Maracatu Nação Iracema, sua segunda casa, ela recorda: “Eu pensava que era discriminada por ser pobre. Foi longe da minha família que descobri que era discriminada pelo meu cabelo, meus traços e minha cor; por ser negra. Porque o negro é o mais pobre dos pobres. E discriminado pelos pobres”.
Dos irmãos, todos já se foram, exceto Cleide — uma companheira de vida e de luta, com quem desde cedo compartilhou os desconfortos que sentia: “No colégio, iam examinar a turma e quando chegava minha vez e a da Cleide diziam ‘aqui não precisa olhar porque são preta (sic), não dá para ver porque tem sujo’”.
“O professor começava a fazer perguntas sobre matemática e ninguém sabia, aí ele: quer ver uma pessoa que vai saber, vou falar com a minha ‘Pelézinha’ aqui. Me apelidavam de picolé de alcatrão, macaca, e por aí vai”, relata.
Desde criança, tinha o desejo de ser religiosa, mas o pai sempre lhe dizia: “Lúcia, você não pode ser religiosa porque você é pobre e preta. Negro não pode ser religioso, é uma decisão da Igreja Católica de Roma. Eu queria que você pensasse em outra coisa, menos em ser religiosa”.
Certo dia, na década de 1970, conheceu religiosas católicas que procuravam uma casa para morar no bairro e partiu com elas, mesmo que a contragosto de Chico Simão.
“Elas tinham como lema uma vida simples e vivenciar a pobreza. Viviam como irmãs contemplativas no meio do povo e visitavam a casa das famílias. Eu decidi participar dessa vida, elas me mandaram para o Rio de Janeiro. Vi muitos negros na rodoviária, me senti em outro mundo. Mas comecei a perceber que a quantidade de negros na cidade não era suficiente para me sentir livre”, conta.
“Pessoas chegavam lá na casa e diziam: ‘eu fiquei sabendo que agora vocês têm uma menina que veio trabalhar para vocês, irmã’; ‘quem é essa escurinha que está aqui?’; ‘quem é essa preta?’, até os próprios padres perguntavam. Eu comecei a sentir que não era meu lugar. Ela nunca respondia ‘ah, é a Lúcia, lá do Ceará’. E quando eu começava a chorar, ‘não, você pode sofrer preconceito dos outros, do povo de fora, mas de nós, não’”, relembra.
Lúcia percebeu que, enquanto as irmãs da casa eram cumprimentadas com um beijo ou um abraço, ela recebia apenas um aperto de mão na ponta dos dedos. Nas palavras da maior liderança de organização negra contemporânea no Ceará, aquele cumprimento não era para a Lúcia Simão, negra, cearense, mas para a religiosa.
“Eu queria ser Lúcia e só poderia ser Lúcia longe da congregação. Estava vivendo algo que era falso. O tema era tratar bem a todas as pessoas que procurassem a fraternidade. Mas quando as pessoas tinham uma reação por conta de eu ser negra, eu já não tinha disponibilidade de tratar bem e sentir fraternidade”, narra.
Desde 1977, Lúcia conhecia as Irmãs Religiosas da Congregação do Sagrado Coração de Jesus, da qual fizera uma experiência vocacional. Em 1981, viajou a convite delas para participar da Missa dos Quilombos, em Recife. Ao chegar lá, diz que encantou-se ao ver o povo negro reunido.
Por muito tempo ela descreve que sofreu a angústia de não ter conseguido desenvolver, na irmandade, o sonho de ser religiosa. Mas dessa angústia também nasceu a inquietação para encontrar um lugar onde negros pudessem se encontrar, conversar a mesma linguagem, discutir os problemas de discriminação - e, se esse lugar não existisse, criar um.
Foi o que aconteceu. De volta para Fortaleza, mas em articulação com o Grupo de União e Consciência Negra (Grucon), que conheceu em São Paulo, ela começou um pequeno grupo com a mãe e a irmã para estudar e difundir as questões raciais.
Passaram a realizar reuniões para falar de questões que só elas sentiam na pele todos os dias e, no começo, foi difícil atrair outras pessoas negras para o núcleo cearense.
“Naquela época, era uma grande ofensa chamar um negro de negro, mesmo tendo muitos no Jardim Iracema. Quando a gente convidava, respondiam: ‘não sou negra, tomo sol. Ando na praia. É que o sol daqui é muito baixo’. Ou então ‘meu cabelo ficou assim porque uma mulher que não tinha a mão boa cortou’, ‘uma mulher que estava menstruada cortou’”, lembra.
Numa dessas reuniões, o jovem William Augusto apareceu. Curioso, mas ao mesmo tempo um tanto desinteressado, ele foi levado pelo irmão a convite de Lúcia. Seis meses depois, estavam casados. “Hoje ele está casado com o mestrado. Estou quase mandando a rede dele para lá”, brinca Lúcia sobre o tempo em que William fica em Redenção, já que estuda na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).
Professor, historiador, pesquisador e escritor, com uma voz serena, um jeito tranquilo e sempre sorridente, ele fala com mansidão sobre a admiração que sente pela companheira.
“Ela se preocupou em construir uma identidade para os seus descendentes. É uma referência de liderança, de estudiosa, de pesquisadora, de coletivo, de comunidade”, fala.
Não à toa, William fez questão de contar como se conheceram enquanto ela se arrumava para que a fotógrafa Fernanda Barros fizesse suas imagens em frente à lona amarela recém-desmontada após o Carnaval — que despretensiosamente formou o cenário perfeito para a fotografia —, e permaneceu sentado a observá-la e escutá-la durante mais de duas horas de entrevista, atento e em silêncio como se assistisse a uma aula. Porque a sensação de quem fica diante de Lúcia Simão é exatamente essa.
“Foi longe de minha família que descobri que era discriminada não só por conta de ser pobre. Porque o negro é o mais pobre dos pobres. E discriminado pelos pobres” — Maria Lúcia Simão Pereira
O professor rememora uma mobilização que fizeram juntos em Conceição dos Caetanos, uma comunidade quilombola no município de Uruburetama, a pouco mais de 100 quilômetros de Fortaleza.
“Lá, os negros eram conhecidos através da imprensa, porque os repórteres iam até lá colocar correntes, pedras no pescoço dos negros, tirar fotos para falar do mês de maio, contar a história da escravidão através deles. Mostravam que o negro era escravizado. Ela ficou sabendo dessa história e pensou ‘que tal a gente ir lá e mostrar para eles o outro lado da história?’. Foi o que nós fizemos. Em 1984, lá estávamos nós pela primeira vez em Conceição dos Caetanos”.
E, pela primeira vez, como relata, “não foram olhados como escravos, mas como iguais. Também não faziam como uma pessoa que chegou ao Ceará, dizia que ia pesquisar em Conceição, balançava a rede com as idosas dentro e tirava foto. Nem colocar correntes. Ela tirou as correntes deles”.
“Não é fácil ser negro. Você entra no supermercado, o segurança te segue. Você entra numa loja de tecidos, te mostram os piores tecidos, que são os mais baratos. Nunca acham que você quer ou que pode comprar o melhor. Fui fazer compras, deixei o William no caixa e lembrei de pegar uma coisa, o segurança chegou bem pertinho e deu um boa tarde, respondi logo ‘eu vou pagar’. O jornaleiro chegou, me falou pra chamar a dona da casa, respondi ‘eu tanto sou a dona como sou eu que pago a assinatura do jornal’”, expõe.
Assim, Maria Lúcia Simão Pereira iniciou a militância no Grupo de União e Consciência Negra (Grucon), aos 33 anos. Na sequência, formou-se em Teologia Católica e Filosofia. Em busca de mais conhecimento, tornou-se especialista em Planejamento Educacional e cursou Psicologia.
Era técnica em enfermagem do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC), da Universidade Federal do Ceará (UFC), até dar entrada na aposentadoria em janeiro deste ano. Em todos os lugares por onde passou, trouxe para perto quem ainda não conhecia o poder do movimento negro.
A educação sempre foi o melhor caminho. Ela enche os olhos ao dizer dos filhos Italo, Cristiano e Estevão: um advogado, outro no mestrado, outro no segundo doutorado, todos em uma busca insaciável por conhecimento.
Um orgulho que pesa mais quando ela pensa que municiou seus filhos com formação e informação, mas a consciência negra deles não impediu que fossem alvo de quem chega armado de preconceitos: “O Estevão foi pra faculdade e a professora nova chegou pedindo pra ele passar um pano lá no quadro. Quando descobriu que ele não era da limpeza, perguntou se era bolsista [na época, Lúcia pagava as mensalidades do filho]. O Cristiano, toda vida que sai no carro dele a polícia para. Ele já sai com a carteira da OAB na mão. Eles me contam tudo”.
Quando o do meio, que é advogado criminalista, decidiu estudar Direito, ela ainda tentou: “Por que você não vai ser médico? Queria tanto um médico na família. Aí ele disse ‘mãe, quando eu passo e vejo a polícia fazendo baculejo nos meninos que ficam no pé do morro e vai primeiro nos pretos, eu me revolto. Quero defender esse povo que não tem dinheiro e acha que também não tem direito’”.
Pai de Jasmim e Flor, Cristiano cultivou dentro de casa as maiores referências de negritude que poderia ter: o pai e a mãe. “Liberdade é a busca incansável deste causídico”, crava.
“Nasci em uma família que sempre teve no sangue o ideal social, uma mãe que foi precursora no debate sobre o movimento negro no Ceará e que fez minha paixão pelo Direito surgir quando me ajudou a entender que a cor da pele sempre faz diferença nessa sociedade de colonizados racistas”, dispara.
“Desde que eu me entendo por gente, há uma discussão de questão racial na minha casa. Eu e meus irmãos, a gente conseguiu entender ainda pequeno que o simples fato de as pessoas não te quererem, te esnobarem, te menosprezarem, te excluírem, isso não é ao acaso. Todas essas situações têm um certo reflexo do racismo, da discriminação racial. E é muito difícil passar por essa trajetória sem sofrer. Isso aconteceu na escola, na faculdade, no fórum, na delegacia, isso continua acontecendo quando saio na rua”, relata.
Agora, com a missão de educar duas meninas negras, ele acrescenta: “Quando atendo alguém aqui na calçada de casa é em decorrência dos ensinamentos da minha mãe e do meu pai de tirar as correntes, de mostrar para esses meninos que eles podem ter um futuro diferente, que eles podem se visualizar enquanto advogados, professores, psicólogos, engenheiros, que existem opções que não são o crime. A falta de oportunidade, de exemplo, faz com que muitos de nós siga para o caminho errado”.
“Em sala de aula, já ouvi que o Código Penal foi feito para pretos e pobres. Ao longo da minha graduação tive percalços e situações discriminatórias, mas isso só serviu para que eu me empoderasse na resistência. Nos debates e nas sustentações orais, busco trazer para o discurso a experiência de ser um jovem advogado preto oriundo da periferia”, adiciona.
“O maracatu descende dos negros africanos, e se a gente queria estudar a história da negritude, tinha que estudar também o maracatu. Nas minhas pesquisas, descobri que o maracatu é o único grupo de Carnaval que conta a história do negro que os livros não contam. Os sons, as cores, as figuras da criança, do preto velho, tudo isso faz parte da nossa origem afro-brasileira”, explica Lúcia Simão.
Responsável pela difusão da luta dos negros pelo interior do Estado, Lúcia Simão fundou, junto com o esposo, o professor, historiador e pesquisador William Augusto Pereira, a Associação Cultural e Educacional Afro-brasileira Maracatu Nação Iracema.
A agremiação foi fundada em 2002, não por acaso no dia 13 de maio — data em que se celebra a abolição da escravatura no Brasil. No primeiro ano de competição na avenida Domingos Olímpio, berço do Carnaval de rua da Capital, saiu com fantasias desenhadas pelo artista plástico Isidoro Santos e música de Descartes Gadelha e Inês Mapurunga.
“É uma grande reunião aberta na avenida e foi lá que a gente conheceu um jornalista, um folclorista que se apaixonou pelo que a gente fazia nas nossas missas dançadas e ritmadas no ritmo afro, e nos levou pra desfilar na rua. Já estamos aí nos 22 anos”, celebra.
Lúcia se refere ao jornalista Paulo Tadeu Sampaio de Oliveira, folclorista, pesquisador e um dos fundadores do Maracatu Vozes D’África, que subsidiou e apoiou a fundação da associação.
A descrição do grupo dá o tom: “Isso significa a responsabilidade de representar uma fatia da população mais sofrida, necessitada, mas, acima de tudo, orgulhosa e determinada, alegre e vibrante. Somos o povo de Iracema, da virgem dos lábios de mel, do povo negro e índio, do povo cearense”.
“O Nação Iracema representa um povo novo com sangue revigorado de uma juventude sadia, com vontade de acertar e que se movimenta para isso. Meninos e meninas de Messejana, da Barra do Ceará, do Jardim Iracema”, exclama o professor William.
“Onde podemos encontrar o Mateus, de 11 anos, apaixonado pelo maracatu cearense e pelo batuque; o Paulo Sérgio, outro garoto mas que também tem o cunhão do triângulo, que segura o ritmo e dança feito gente grande, pois já é; da Rosana e sua irmã, que se fizeram de negras para iluminar o brilho da avenida quase sem luz naquela noite; da Cleide, que se virava como podia para nada faltar; da Mariza, que conseguiu os bolos e as sopas dos parceiros; do seu Carlos e da Nereide, que costuraram nos momentos mais angustiantes da agremiação. O Deus de cada povo e as orações de cada um nos traz força e muita garra”, assevera.
Para o historiador, “todos fazem parte desse mecanismo sociocultural do fazer um maracatu diferente, de uma comunidade, mas também de um povo”: “A cultura extrapola os ideais, ela foca, determina, parece ter um fim, mas ao findarmos um processo cultural construímos apenas uma teia de tudo que começamos, e o fim será outro momento. É vibrante. Esse resultado mostra que podemos construir novas maneiras de fazer maracatu no Ceará”.
“O Nação Iracema se preocupa com todo o processo, por isso estamos nessa partilhando com todos e todas, principalmente aqueles que querem construir um Ceará melhor, um povo sadio, uma humanidade sem vencedores e perdedores. Todos somos vencedores, pois a parte que nos coube fazer, fizemos, ou estamos a fazer”, pontua.
Apesar do forte envolvimento com o maracatu, Lúcia e William não são de nenhuma religião de matriz africana. A influência católica segue na família: “Antes de fazer parte do movimento negro, eu morria de medo de candomblé, porque a história que me foi repassada é que macumba era maldade, despacho, galinha preta, cachaça, vela preta”.
“A Igreja Católica dizia que quem era católico e ia à missa e ia à macumba estava excomungado, estava no inferno, era uma coisa da linha do mal, que o satanás entrava nas pessoas. Em resumo, Jesus Cristo estava com os católicos e o satanás estava com os macumbeiros. Depois eu comecei a ver que existem pessoas que buscam Deus em vários sentidos, do jeito delas, e eu respeito”, revela.
O regime racista e escravocrata que marcou o Brasil Colônia ainda circula nas veias da história de um País onde a violência, a invisibilidade, a carência e as vulnerabilidades têm cor — a mesma cor daqueles e daquelas que tiveram seu sangue e suor derramados sobre a bandeira verde e amarela.
Maioria da população — 55,5%, de acordo com o Censo 2022, do IBGE —, negros e negras tentam se reerguer num território estruturado sob agressões, silenciamentos e mortes do seu povo, enquanto tentam produzir e proteger sua cultura, sua história, suas raízes.
No Ceará, terra que primeiro anunciou sua redenção e libertou o povo escravizado, o apagamento histórico também é uma herança. Exemplo disso são mulheres que foram imprescindíveis para a luta contra a escravidão e o tráfico de pessoas negras, mas não são citadas ou lembradas.
Uma dessas personagens foi Preta Tia Simoa, importante liderança na mobilização dos jangadeiros contra o transporte de negros escravizados para a capital da então província do Ceará, no século XIX. Referência para Lúcia Simão, que, dois séculos depois, mantém vivo o legado de quem começou o movimento negro cearense quando ele ainda nem tinha esse nome.
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"
Série de reportagens apresenta quatro mulheres cujas histórias também contam a história da cidade: Mocinha, Lúcia Simão, Valéria Pinheiro e Dora Andrade — cada uma a sua maneira fez da própria força impulso para transformar o lugar onde vive