O mundo está mais próximo de oficialmente declarar-se na época do Antropoceno. Basta um “sim” da União Internacional de Ciências Geológicas (IUGN, na sigla em inglês) para determinar que em 1950 a Terra presenciou um impacto ambiental significativo o suficiente para sair de uma época geológica para outra.
O que é a escala geológica do tempo?
É a divisão do tempo em um conjunto de níveis hierárquicos que caracterizam mudanças em maior ou menor grau no sistema Terra. Existem as eras geológicas, dentro delas os períodos e, dentro deles, as épocas. As épocas também podem ser divididas em idades.
Enquanto em outros momentos a mudança vinha de causas naturais ou externas — como o choque de um asteroide na Terra capaz de extinguir os dinossauros e retirar o mundo do período Cretáceo para o Paleogeno (a extinção K-Pg)—, o Antropoceno é resultado da atividade humana em diversas frentes.
Uma delas são as explosões nucleares, responsáveis por liberar montes gigantescos de gases na atmosfera. Entre eles o plutônio, que pode ser identificado em camadas no fundo do Lago Crawford, no Canadá, e provavelmente será o
Acompanhando o plutônio, a sobrecarga de gás carbônico (CO2) na atmosfera, liberado pela queima de combustíveis fósseis. Também as camadas e mais camadas de plástico percorrendo cada centímetro e ser vivo do planeta — inclusive aqueles que não nasceram, considerando os microplásticos encontrados em placentas humanas.
Com o Antropoceno, o mundo deixa para trás o Holoceno, época cujas condições climáticas foram cruciais para o estabelecimento da civilização humana. Diferente a outras eras glaciais, o Holoceno manteve um clima relativamente quente e particularmente estável; o suficiente para viabilizar a agricultura e, com ela, a subsistência humana.
Foram 11,7 mil anos de conforto térmico favorável à humanidade, rapidamente transformados em calor intenso. Basta olhar a famosa imagem da mudança de temperatura global dos anos 1850 a 2022 desenvolvida pelo climatologista Ed Hawkins, da Universidade de Reading (Reino Unido).
Desde 1950, as baixas temperaturas em azul escuro deixaram de ser o padrão. A partir dos anos 90, o tom foi totalmente substituído por vermelhos intensos, indicando altas temperaturas:
“Se você pensar, muitas espécies foram extintas de imediato há 66 milhões de anos, com o evento de
É a consequência do aquecimento global, provocado unicamente por ações antrópicas. Queima de combustíveis fósseis, desmatamento, poluição, sobrepesca, supressão da biodiversidade; esses e outros fatores influenciam no aumento desenfreado da temperatura global.
No Brasil, os setores que mais emitem
Já em relação ao gás carbônico (CO2), são as indústrias de petróleo, gás e carvão que mais emitem, também de acordo com o Our World in Data, com dados de 2021. Mesmo assim, o Brasil só é responsável por 0,96% do CO2 acumulado na atmosfera terrestre.
Mundialmente, as emissões anuais equivalem a 700 milhões de bombas de Hiroshima. “É como você pegar a energia da explosão de 700 milhões de bombas de Hiroshima e armazenar isso anualmente no sistema climático terrestre”, explica Alexandre.
Ainda que o Antropoceno seja o nome que realmente vai ficar, há outras sugestões de nomenclaturas tentando chamar a atenção para as diferentes causas da mudança climática. Clique nas imagens para explorar alguns nomes:
indica a influência do plástico como o marcador de horizonte poluente do ser humano.
é defendida por Jason Moore. O provocador das mudanças climáticas seria o sistema econômico capitalista.
sugere que a época geológica teria iniciado com o modelo de plantation, durante a colonização europeia.
fauna e flora são homogeneizadas pelos humanos. Refere-se ao transporte de materiais orgânicos desde as grandes navegações.
a era da gosma. Refere-se ao excesso de águas vivas e gosmas microbianas no Oceano, consequência da sobrepesca e da pesca fantasma.
faz referência a um mundo em chamas florestais e superaquecido, seja por queimadas, seja por luzes das cidades.
Ainda que essas possibilidades tenham boas justificativas, elas são apenas recortes da enorme cadeia de influenciadores na nova época geológica. O climatologista Alexandre Costa menciona como a ideia de uma “Era dos humanos” remonta ao século XVIII, recebendo nomes como era antropozóica, idade do homem e época antropozóica; inclusive, em 1879, o geólogo Joseph LeConte sugeriu que o “reino do homem” poderia ser chamado de Era Psicozóica.
A crítica ao nome “Antropoceno” vem da ideia de que ele coloca todos os seres humanos como igualmente responsáveis pelo atual status global — o que seria equivocado.
O norte global, por exemplo, é o principal responsável pelas emissões de gases de CO2. O Estados Unidos chega a ter emissão per capita de CO2 maior que a média mundial, junto à China (como segunda maior economia do mundo) e ao Reino Unido. Por outro lado, os mais prejudicados pelos impactos da emergência climática são os países do sul global.
Então, em um mundo de desigualdades, faz sentido dizer que a culpa é dos “humanos”? Pode ser, afinal a desigualdade também faz parte do rol de fatores que intensificam o aquecimento global. Não à toa, boa parte dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) envolvem a luta contra a desigualdade econômica, a de gênero, a de raça, a de orientação sexual e tantas outras.
A nova época geológica, em si, também é um alerta para o modelo de vida global. A centralidade humana na nomenclatura abre espaço para uma das reflexões mais importantes estimuladas pelo Antropoceno: o que significa ser humano agora?
“Nós nos tornamos uma força geológica, mas individualmente a gente não tem a experiência de ser uma espécie. A gente tem a experiência de ser um indivíduo”, define a filósofa Alyne Costa, professora no Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Se algo mudou na percepção humana com a emergência climática foi a noção de que somos totalmente dependentes e interconectados com a Terra. Claro, essa afirmação só é verdadeira para quem ainda não sabia disso: especialmente as sociedades ocidentais. Afinal, povos tradicionais sempre souberam da importância do equilíbrio entre humanos e planeta.
Foi pensando nisso que Alyne decidiu estudar o Antropoceno de um ponto de vista filosófico e social, resultando na tese Cosmopolíticas da Terra: Modos de existência e resistência no Antropoceno. Nela, a pesquisadora procurou em diversas culturas e tradições possíveis caminhos para pensar o que significa resistir diante da crise ecológica.
O Antropoceno forçou a humanidade a repensar o próprio bem-estar e conforto. Agora, nenhuma decisão é individual: tudo tem consequências em escala muito maior do que a noção que estamos acostumados de corpo humano e o nosso alcance físico.
“É como se a nossa extensão humana se ampliasse agora que eu entendo que eu vou ter que me preocupar também com uma atmosfera que não pode passar de um certo volume de CO2. Do solo que não pode ficar árido senão eu não vou ter o que comer… Então é como se o sentido de humano se expandisse para abarcar uma série de outros não humanos”, explica Alyne.
Para alguns filósofos, a ecoansiedade e a mudança de privilégios provocada pelo Antropoceno é intensa a ponto de estimular o retorno de visões neoliberais, de negacionismo e de perseguição aos direitos de minorias.
“Tudo tem a ver com um certo desespero de que a gente não sabe mais ser humano nessa terra. Isso vai criando uma sensação de amarra que a extrema-direita diz justamente para soltar. O negacionismo é uma tentativa de se livrar dessas consequências indesejáveis”, analisa a pesquisadora.
Por mais que a humanidade saiba o que é necessário para “puxar o freio de mão do trem desgovernado” — como define o climatologista Alexandre Costa —, o sacrifício que isso significa para o conforto que conhecemos assusta. Por isso, é mais fácil fechar os olhos.
Por outro lado, muitos estão lutando para reverter o cenário. No campo científico, na política, no ativismo, também nas artes — vide o surgimento de gêneros literários como a zooliteratura, nos quais os animais viram protagonistas ou foco nas narrativas. O Antropoceno inevitavelmente reflete na organização social do mundo.
“Nós precisamos ter a noção de que nós vivemos em um planeta limitado. A gente começa a ver isso se incorporar na política, ainda que infelizmente longe da escala que a gente precisaria, o surgimento de movimentos de figuras como a Greta (Thunberg), a de partidos verdes na Europa, a incorporação da ecologia a diferentes setores”, cita o professor Alexandre.
Como a crise é titânica, os desafios também são. Para enfrentá-los, a humanidade precisa ressignificar a própria noção do “eu”; mas como trilhar esse caminho? No próximo episódio, leia a entrevista completa com a filósofa Alyne Costa sobre os desafios existenciais e práticos da sociedade no Antropoceno.
Série de reportagens aborda a Época dos Humanos em diferentes frentes