A época do homem, o Antropoceno, reforça o maior desafio já enfrentada pela civilização humana: a crise climática. Desde 1950, o planeta está aquecendo em uma velocidade anormal, em razão da queima de combustíveis fósseis e da liberação desenfreada de gases de efeito estufa na atmosfera.
Enquanto muito se discute sobre o Antropoceno do ponto de vista biológico, é essencial questionar como a humanidade entende-se e coloca-se na nova época geológica. De acordo com a filósofa Alyne Costa, professora no Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), apesar de a espécie humana ter se transformado em uma força geológica, ela ainda é incapaz de compreender-se como um corpo coletivo.
Em entrevista ao O POVO+, a pesquisadora fala sobre a Terra como um sujeito, a nova percepção existencial da humanidade e como a ecoansiedade, aliada à perda de controle sobre o planeta, estimula novas insurgências violentas e de perseguição a direitos humanos.
O POVO+ - Por que é importante olhar o Antropoceno do ponto de vista sócio-filosófico?
Alyne Costa - Quando nós, humanos, temos que pensar nos nossos problemas, nossas questões, nossa prosperidade, a gente acha que pode se valer dos recursos que a Terra oferece. Foi assim por muito tempo. Só que agora a gente tá vivendo uma situação em que qualquer atividade que se faz na busca do nosso bem-estar, do crescimento econômico, da nossa prosperidade, ganhou um sinal negativo. Porque tá tudo marcado pelo extrativismo, pelo petróleo, pela mineração… Não tem maneira de produzir esse bem-estar social — que é importante, sobretudo para países em desenvolvimento — sem essa destruição massiva que está contribuindo para a transformação da Terra nesse outro lugar para se viver.
Agora nós nos tornamos uma força geológica, a força geológica dominante que está forçando todos os processos da Terra.
O nome Antropoceno, apesar de várias críticas, tem a vantagem de sinalizar essa súbita e profunda transformação na maneira como a gente vinha pensando a relação entre a humanidade e a natureza. Agora nós nos tornamos uma força geológica, a força geológica dominante que está forçando todos os processos da Terra. Isso não é banal, né?
Então não é à toa que exista esse interesse tão grande das ciências humanas num objeto da geologia, justamente por essa absurda transformação. Porque implica muita coisa, implica a maneira como a gente vê o mundo, implica a maneira como a gente faz ciência, implica a maneira como a gente faz política. E como a gente vive no mundo. Acho que realmente é a maior ameaça já enfrentada pela civilização, simplesmente porque a gente não tem aparato emocional, cognitivo e instrumental para lidar com um problema coletivo, né? Tendo tantos outros problemas coletivos para se resolver.
OP+ - E por que, para encarar isso, a senhora foi atrás de analisar essas diversas visões e maneiras de viver de várias culturas humanas?
Alyne - Pois é, porque acho que justamente esses outros povos e grupos coletivos que eu fui analisar na minha pesquisa já se deram conta de que eles não são apenas humanos agindo no mundo. Eu acho que é um pouco essa expansão, digamos, da capacidade de ação que outra pessoa convida a gente a fazer. Se nós humanos nos tornamos uma força geológica e a Terra está de certa forma respondendo, reagindo a essa grande intervenção humana, é sinal de que os humanos não são os únicos agindo no mundo. É sinal de que a partir de agora nós temos que prestar atenção na resposta da Terra.
A pandemia da Covid-19 mostrou isso pra gente, né? Tivemos que nos tornar humanos de outra forma, para evitar que o vírus se espalhasse. Foi uma transformação que um vírus, um agente não humano, fez na maneira de ser humano. É um pouco desse conceito de humanos e terranos (ou terrestres): tem a ver com essa transformação na perspectiva de não pensar que nós somos os únicos agindo na Terra, e que aqueles que se transformaram em terrestres entendem que eles precisam se aliar a outras forças não humanas.
Então, quando você pensa nos povos indígenas, é o que eles fazem desde sempre. Os povos indígenas não acham que são os únicos agindo na Terra. Você vê lá o que o líder indígena Ailton Krenak fala, todos estão falando da montanha como um agente político, dos espíritos como agentes políticos, da força de fertilidade da própria floresta… Então esses outros povos já têm uma relação de atenção e cuidado com essas outras forças que não são unicamente humanas.
Filosoficamente tem uma trajetória ali na obra do Bruno Latour e de outros autores ligados aos estudos da Ciência da Tecnologia, em que mais do que dizer “é humano ou não humano, e por isso é um sujeito ou não é um sujeito”, nessas filosofias é sujeito todo aquele que age. Então a Terra, nesse sentido, se transforma em um sujeito, porque ela age e reage.
É um pouco esse convite que essas filosofias hoje estão fazendo para a gente, inclusive como forma de buscar alianças improváveis. Então é essa abertura de perspectiva que também convida a novas alianças. Sem essas perspectivas, a gente poderia falar: “Não, o que os indígenas estão dizendo é uma mera crença. Só quem sabe a verdade é o cientista.” Quem sabe, se a gente expandir o sentido de agência, a gente pode levar a sério que eles estão falando, né? Sem precisar reduzi-los a uma mera representação cultural.
OP+ - Às vezes a sensação que dá é que a gente fica dependendo que tudo seja parecido ao ser humano para agir. Por exemplo, essa questão dos direitos dos animais, é preciso várias pesquisas para falar que eles têm consciência e, portanto, eles são muito mais próximos dos humanos do que a gente imaginava e só aí eles têm direito a viver e tudo mais…
Alyne - É uma questão super importante essa porque quando a gente fala de pensar a Terra como um sujeito, se trata menos de comparar a Terra com um humano, e mais de nos comparar a modos de agência que não são humanos. A ideia é tentar inverter.
O humano é só uma possibilidade das várias formas de existir e de agir.
Por exemplo, a filósofa e zóologa Donna Haraway fala que quando a gente aceita que um cachorro ou um gato tem desejos, tem imaginação, linguagem, brincam, não é uma projeção de um antropomorfismo. Como se: “ah, nós temos imaginação, logo nós pensamos que eles têm”. Não, é ao contrário: é estender a capacidade de agência de imaginação a todos os outros seres, e entender o humano como só uma possibilidade disso. O humano é só uma possibilidade das várias formas de existir e de agir.
Então o antropomorfismo serve como um lembrete de que há outros sujeitos, mesmo não humanos. A inteligência deles não precisa ser medida, comparada com a nossa para ser considerada. É o contrário, nós é que temos que ser capazes de entender que tipo de mensagem a Terra está mandando. O filósofo Michel Serres fala muito isso: Qual é a linguagem da Terra? Como é que a gente faz para ouvir a língua da Terra? Não é exatamente a mesma língua que a nossa, mas considerar que a Terra tem uma língua é uma forma de nos descentralizar e de nos colocar como mais uma das possibilidades de manifestação da existência.
OP+ - Quais são os desafios enfrentados pela sociedade para conseguir encarar essas realidades?
Alyne - Admitir isso implicaria uma transformação tão radical no tipo de vida que a gente leva, de conforto que a gente está acostumado a ter, no tipo de comunidade… Acho que a gente não quer abrir mão das coisas que a gente aproxima à vida próspera. Então, tem um lado muito difícil mesmo que é de pensar coletivamente como fazer isso, né?
Nós nos tornamos uma força geológica, mas individualmente a gente não tem a experiência de ser uma espécie. Tem uma experiência de ser indivíduo. E eu enquanto indivíduo, o melhor que eu posso fazer é separar meu lixo, é tomar banho curto… Então, é difícil coadunar o individual e o coletivo na questão do Antropoceno, o local e o global, né?
Sei lá, vai que o Brasil resolve se comprometer com super iniciativas para reduzir a crise ecológica, mas não adianta nada se os Estados Unidos não o fizerem. Então a gente tem uma série de problemas práticos, também afetivos, cognitivos, que a gente enfrenta daí.
E mais: justamente porque a gente não sabe o que pensam as pedras, o que pensam os pássaros, a gente não vai ter acesso a isso. Justamente porque a nossa sociedade ocidental, herdeiros que somos no modo de vida euro-americano na Ciência e tal… A Ciência produz um modo de considerar o que é real e o que não é muito baseado no fato, na prova. Então se a gente pensar, por exemplo, na existência do que o Davi Kopenawa fala dos espíritos da floresta, sobre a ótica da Ciência eles não passam no teste como existentes, né? Então a gente está sempre nesse lugar meio de ou a gente duvida ou a gente abraça meio incondicionalmente.
É difícil mesmo, porque a gente tá tão formatado no modo de considerar o que é verdade e o que não é baseado na faticidade das coisas, que tudo que não passa muito pelo aparato da Ciência a gente tende a duvidar como crença, né? Ao mesmo tempo, não se trata de duvidar do que a Ciência tá fazendo, mas talvez entender que o registro em que a Ciência opera é diferente do que essas outras cosmologias operam.
A Donna Haraway tem uma fala que eu acho muito bonita: a gente tem que suspender nossas cosmogonias. Suspende um pouquinho, segura um pouco mais leve, porque se a gente corre para perguntar “existe? Não existe? É? Não é? O gato tá mesmo sentindo?”; talvez a gente perca um monte de possibilidades de percepção.
Isso aqui é muito mais no registro filosófico, no político talvez tenha outras particularidades, mas no filosófico talvez seja importante a gente não ter pressa para decidir. Tem que aceitar que talvez haja outras formas de agência no mundo, que eu individualmente, Alyne, talvez não consiga conhecer, mas eu posso confiar um pouco mais no que aqueles que sabem consultar os espíritos, ou os etólogos, que estudam os comportamentos animais, têm a dizer.
Nós não somos mais humanos delimitados pelo nosso corpo, vivendo numa natureza; nós somos terrestres vivendo com outros terrestres dos quais dependemos.
OP+ - A presença dessa diversidade de visões ajudaria a gente a tomar decisões políticas que também considerem esse lado filosófico?
Alyne - Eu tô muito segura que sim. Se a política de certa forma não se basear tanto nessa oposição de verdade e de mentira, talvez se a gente suspender um pouco as nossas certezas e ouvir o que outros povos têm a dizer, outras decisões seriam tomadas. Por exemplo, sobre Belo Monte, sobre mineração e exploração de petróleo na Amazônia, talvez outras decisões pudessem ser tomadas se a gente levasse a sério que o indígena tá dizendo. É algo importante, né? É preciso manter aquela floresta em pé, preservando inclusive os espíritos que nela habitam.
Se a política pudesse pensar levando essa diversidade a sério, talvez a gente pudesse encontrar maneiras em alguma medida, sim, mais duras, que talvez demandasse da gente alguns sacrifícios de ordem de conforto, sobre o que que a gente está disposto a perder, quem sabe comer menos carne, mudar o sistema de transporte… Mas essa decisão vai ter que ser tomada em algum momento. E talvez a gente pudesse fazer isso respeitando também esses povos que estão na linha de frente do problema, que está sofrendo mais diretamente com o Antropoceno.
OP+ - Mas a senhora acha que está existindo uma conversa entre, digamos, as Ciências Naturais e esses outros saberes?
Alyne - Está, sim, existindo uma conversa. É super interessante porque se você olhar o relatório do Painel Governamental de Mudanças Climáticas, na parte 3, sobretudo, você vê lá uma menção aos povos indígenas, já se fala na necessidade de buscar as tecnologias indígenas.
O pessoal das Ciências Naturais está com muito mais boa vontade de incluir os cientistas humanos na conversa do que o contrário. Tá acontecendo, mas tem essas dificuldades, a gente não sabe muito bem como juntar as coisas. A maneira de falar, a maneira de escrever, de pensar das Ciências Naturais, não é o mesmo registro das Humanas, mas tem acontecido experimentações muito interessantes de pensar junto. Até porque o Antropoceno demanda um conhecimento muito interdisciplinar.
A própria discussão do Grupo de Trabalho do Antropoceno tem historiador, tem filósofo participando, e isso é absolutamente inédito na história da Geologia. Então está havendo, sim, esse esforço de não só conversar com os pesquisadores das Ciências Humanas, mas também trazer militância. Ativistas indígenas, ativistas negros… A questão do movimento negro se envolvendo com a questão climática é muito interessante, muito importante. Autores pensando a questão da reparação também como uma questão de justiça climática, então é sobre esse ponto de vista.
Eu acho que tem muita coisa legal sendo feita, o que justamente garante uma variedade de intervenções de ações possíveis. A questão é como a gente pensa o problema da escala, como é que realmente faz essas diferentes iniciativas, se juntarem numa voz para tentar frear um pouco essa ameaça da mudança climática.
OP+ - E o que significa ser um ser humano dentro do Antropoceno?
Alyne - Essa é uma ótima pergunta porque é um pouco da dualidade entre terrestres e humanos. É um pouco essa percepção justamente de o que é o humano. Ele é uma das formas de vida possíveis da Terra, né?
É como se em vez de pensar um humano nos limites do nosso corpo, nós agora temos que pensar o humano com uma forma expandida. Pensando, por exemplo, que nós dependemos; que o ar que a gente respira faz parte de nós, de certa forma. Que dependemos das minhocas que fertilizam o solo para que a gente consiga ter alguma alimentação. Então aí tem uma ideia de expansão, de uma linhagem de outros seres que a gente depende para existir, que é como se os humanos se tornassem toda uma outra coisa.
Chama a nossa atenção para as nossas condições de existência, nossa habitabilidade da própria Terra. E quando a gente entende que nós somos uma forma de vida complexa entre outras e que se essas desaparecem, nós desapareceremos também, o que varia é a própria percepção do que é humano.
Então fica uma discussão também de antropocentrismo. Não tem problema de antropocentrismo porque não tem centro, o humano não é o centro, nunca foi o centro. Nós dependemos desses muitos outros, né? É como se a nossa extensão se ampliasse agora que eu entendo que eu vou ter que me preocupar também com uma atmosfera que não pode passar de um certo volume de CO2. Do solo que não pode ficar árido senão eu não vou ter o que comer… Então é como se o sentido de humano se expandisse para abarcar uma série de outros não humanos, né? Nós não somos mais humanos delimitados pelo nosso corpo, vivendo numa natureza; nós somos terrestres vivendo com outros terrestres dos quais dependemos.
Muda completamente a relação entre privilégio na tomada de decisão. Como é que eu vou decidir entre a carne que eu quero comer e a Amazônia que eu preciso preservar? Essa decisão começa a se tornar mais difícil.
A polarização política, de extrema direita ganhando espaço, vem muito dessa ansiedade coletiva de estar vendo que não tem mais muito futuro mesmo.
OP+ - E como fazer essas reflexões saírem da academia e alcançarem o público geral?
Alyne - Pois é, isso é mais um dos desafios. Porque, para mim, ultrapassa a questão da crise ecológica, é uma crise epistemológica, é uma crise social política. Eu acho que o que a gente tá vivendo hoje de polarização política, de extrema direita ganhando espaço vem muito de certa forma desse desespero.
Essa ânsia está ligada a uma ansiedade coletiva de estar vendo que não tem mais muito futuro mesmo. Quem não está preocupado com a crise ecológica? Quem não está sendo afetado por esse pressentimento de que não dá mais para continuar explorando o petróleo para conseguir o que a gente conseguia 50 anos atrás? Então tem essa, digamos, essa contenção espaço temporal, a gente não tem mais os quatro planetas que a gente precisava para se desenvolver, e a gente não tem mais o tempo de resolver os problemas sociais para depois resolver os ecológicos.
Tem essa tese, e eu concordo muito, de que todos esses problemas políticos de recrudescimento do neoliberalismo, de violência, de perseguição das mulheres; tudo tem a ver com um certo desespero de que a gente não sabe mais ser humano nessa terra. Você não sabe mais como seguir vivendo bem, né?
Toda vez que a gente vai tomar uma decisão é algo tipo: “Ai, vontade de comer essa carne… Putz, não posso, a Amazônia” ou “Vontade de pegar o meu carro… Putz, mas e os combustíveis fósseis…” Isso vai criando uma sensação de amarra que a extrema-direita diz justamente para soltar. “Ah, que palhaçada, não tem nada disso!”. O negacionismo é uma tentativa de se livrar dessas consequências indesejáveis.
Então eu acho que pra academia tem essa questão também. A academia pode por muito tempo se enfiar numa espécie de espaço privilegiado, que contava com uma confiança da sociedade. Só que justamente considerando a maneira como a Ciência é feita hoje, né, de produzir todo aquele imaginário de neutralidade, de distância, do cientista que faz só ciência, sem se preocupar com a política… Não cabe mais.
Hoje o cientista precisa fazer política, o cientista não pode mais ficar dentro do seu laboratório. E a mesma coisa para o pesquisador, o professor. A própria sociedade tem questionado essa distância que as instituições científicas historicamente se colocaram.
Tudo que a gente entendeu como liberdade desde o século XVIII, o crescimento da sociedade, o industrialismo, a urbanização; está tudo assentado numa base de combustível fóssil. Como é que a gente vai se livrar disso?
OP+ - Eu nunca tinha parado para pensar sobre como essas insurgências de aspectos tão violentos da nossa sociedade têm relação com essa ecoansiedade.
Alyne - Exato, a gente não tem mais futuro de certa forma, né? A imaginação de futuro que a gente tinha estava vinculada a um crescimento baseado num certo gasto de energia. O historiador Dipesh Chakrabarty tem uma frase que eu gosto muito: “A mansão das liberdades modernas está sentada numa base de combustíveis fósseis”.
Tudo que a gente entendeu como liberdade desde o século XVIII, o crescimento da sociedade, o industrialismo, a urbanização; está tudo assentado numa base de combustível. Como é que a gente vai se livrar disso?
A gente está sabendo, tá jogado na nossa cara: a gente precisa se livrar disso, mas a gente não sabe como, então é melhor fingir que não existe, né? É muita ansiedade. Como é que vai alimentar nove bilhões de pessoas sem um agronegócio? No entanto, o agronegócio está destruindo a Amazônia, então assim…
É o Antropoceno. A gente não tá falando aqui de uma questão ambiental, a gente tá falando de uma ameaça existencial. A gente não sabe o que fazer. E aí por isso essas ansiedade difusas, de perseguir o direito das mulheres, porque é uma espécie de tentativa de manter privilégio, manter o espaço que está sendo comprimido.
Série de reportagens aborda a Época dos Humanos em diferentes frentes