Levantamento feito pelo O POVO+ junto ao Sistema Nacional de Armas (Sinarm) mostra que 90% dos pedidos de aquisição, registro e transferência de armas de fogo foram deferidos no Ceará, de janeiro de 2019 até setembro de 2023. De acordo com os números, foram apresentados 12.529 requerimentos e 11.255 foram atendidos de forma positiva. É como se para cada dez pedidos, praticamente nove foram acatados. Somente de janeiro a setembro de 2023, 815 notificações foram aceitas.
A partir dos dados de janeiro de 2016 até 4 de outubro de de 2023, 12.750 armas estavam com registro ativo no Estado, de acordo com os dados que constavam no Sinarm. Pessoas entre 21 e 96 anos são responsáveis por essas armas, sendo 95% delas homens. A média de idade dos proprietários que constam nos registros é de 48 anos.
A tabela do Sinarm, sob comando da Polícia Federal (PF), foi modificada durante a análise dos dados que detalham se as armas eram de cidadãos, empresas ou servidores públicos. As categorias foram suprimidas durante a extração dos índices. A Superintendência da PF no Ceará informou que a reportagem deveria entrar em contato com a Divisão Nacional de Controle de Armas de Fogo (Darm) - que faz parte da mesma instituição - para ter acesso aos números detalhados em relação ao Estado e o porquê da mudança nas tabelas. Uma solicitação foi feita à Divisão, mas não foi respondida.
Um outro grupo de civis armados, os Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs), também cresceu exponencialmente no Estado, nos últimos anos. Controlado até janeiro deste ano pelo Exército Brasileiro (EB), o grupo cadastrava suas armas no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma). Em resposta a um pedido do Instituto Sou da Paz e Igarapé, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o Exército informou que a 10ª Região Militar, da qual fazem parte Ceará e Piauí, tinha 34.647 armas cadastradas por CACs em 2022.
O crescimento do grupo foi de 186%, conforme os dados fornecidos pelo EB, entre 2018 e 2022, aumentando de 12.126 para 34.647 armas. O maior aumento se deu entre os anos de 2021 e 2022, quando 9.522 unidades foram cadastradas. A reportagem solicitou os números de 2023 ao Exército, por email e contato telefônico, mas as informações não foram enviadas.
A falta de respostas da Polícia Federal e do Exército Brasileiro não permite dizer qual a real situação das armas que estão nas mãos de civis no Ceará. Não é possível dizer quantas delas efetivamente estão irregulares, porém, várias autoridades entrevistadas pela reportagem concordam que há falhas na comunicação entre sistemas e um número altíssimo de armas nas ruas.
Um oficial da Polícia Militar do Ceará conversou com O POVO, sem querer se identificar, e afirmou que há centenas de civis donos de arsenais no Ceará. “Estou todo dia nas ruas combatendo ações de facções, enfrentando o tráfico, vendo crimes de toda natureza e não tenho nem preciso de 60 armas. Não há razoabilidade nenhuma em centenas de pessoas passarem a ter um arsenal, de uma hora para outra. Essa liberação causou um desacerto difícil de ser reparado na Segurança Pública do Ceará, porque grande parte das armas que foram adquiridas de forma legal estão indo parar nas mãos de grupos criminosos”, afirmou.
Segundo o policial, um caso específico lhe chamou atenção, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). De acordo com ele, um comerciante registrou mais de dez furtos de armas de fogo, mas com o avançar das apurações, constatou-se que ele estava alugando armamento. “Era uma pessoa acima de qualquer suspeita. Não tinha ligação nenhuma com crimes, mas era um falso CAC. Se aproveitou da facilidade, se cadastrou e passou a alugar armas para criminosos. Com medo de dar algum problema, ia até a delegacia e dizia que tinha sido furtado, que aquela arma não estava mais com ele”, explicou.
Em Caucaia, no dia 25 de setembro, um homem de 37 anos com registro de CAC foi preso em flagrante por suspeita de ceder armas e munições para um grupo criminoso. “Surgiram muitas pessoas que se passaram por CAC ou pediram armas para defesa pessoal e estão se desviando da verdadeira justificativa. Até que se prove que aquela arma legalizada está desvirtuada, muitos crimes já aconteceram”, afirmou o oficial da PM.
Uma fonte da Coordenadoria de Investigação da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (Coin) disse que a falta de comunicação entre sistemas gerou discrepâncias, que dificultaram o rastreamento de armas, munições e seus donos. “O Sigma e o Sinarm deviam ter sido integrados há anos, mas na prática não é assim. Há uma dificuldade até mesmo para nós, que trabalhamos com Segurança Pública, mas não fazemos parte da gestão dessas armas, de sabermos de quantas estamos falando”, afirmou.
A circulação interna de armas aumentou tanto que a lei da oferta e da demanda afetou o mercado. Segundo um policial civil, que atua em uma Delegacia Especializada, o valor de armas de grosso calibre caiu nos mercados paralelos no Estado.
“Um fuzil que custava R$ 40 mil para as facções não vale mais nem metade. Aqui no Ceará muitas pessoas só se cadastraram, adquiriram as armas e não apareceram mais. Estão irregulares e em posse dessas armas. Infelizmente, não há um sistema eficiente de busca ativa para saber o que aconteceu com essas pessoas”, explicou.
O investigador diz que reduzir a quantidade de armas nas ruas será um desafio, com impactos sentidos a longo prazo. “Foi uma facilitação muito grande. Apreender essas armas dará muito mais trabalho do que para liberá-las. Ainda vai dar muita dor de cabeça para a Polícia”, declarou.
As mudanças nas legislações que tratam do porte e da posse de armas foram acontecendo ao longo dos anos no Brasil. O Estatuto do Desarmamento, sancionado no ano de 2003, foi um marco no controle e redução da quantidade de armas em circulação no País. No entanto, uma série de flexibilizações ocorreram com o passar do tempo.
Os efeitos da escalada armamentista deixou sinais claros na campanha do desarmamento. Conforme os números do Sinarm, de 2019 para 2020, as armas devolvidas pela população caíram de 25 para apenas sete unidades. Em 2021, o número subiu para 16. No ano de 2022 voltou a cair para sete e nos nove primeiros meses deste ano subiram para 47.
Em 2017, o então presidente Michel Temer sancionou uma portaria do Exército que permitiu o transporte de armas de atiradores desportivos municiadas, e prontas para uso, entre os locais de guarda dos equipamentos e os de competição e treinamento. Já durante o governo do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, mais 40 decretos alteraram o Estatuto.
Os decretos permitiam às pessoas cadastradas como atiradoras desportivas adquirirem 60 armas, sendo 30 delas de uso restrito; cinco mil munições e até 20 quilos de pólvora por ano. Os civis que tinham porte para defesa pessoal podiam comprar até quatro armas de uso permitido, sem a necessidade de comprovação da efetiva necessidade.
No primeiro dia do mandato atual, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva editou novamente os decretos reduzindo a quantidade de armas e munições que podem ser acessadas por civis para defesa e por CACs; proibiu o trânsito de armas municiadas pelos CACs; restringiu o funcionamento de clubes de tiros; retomou regras de distinção entre armas de uso de órgãos de segurança e armas de cidadãos comuns; diminuiu a validade de registros de armas de fogo; e determinou a migração do controle de armas do Exército para a Polícia Federal.
“O armamento é um reflexo muito claro dos discursos que estão no poder. Há casos de pessoas que colecionam armas por questões culturais, herdam de familiares. Essas não vão devolver de forma nenhuma e dificilmente vão vender às facções. Muitas dessas armas são obsoletas, nem funcionam mais. O grande problema dessa história é aquele cara que comprou uma arma nova, potente, e sumiu”, afirmou uma fonte da cúpula da Segurança Pública do Ceará, que conversou com O POVO desde que não fosse identificado.
O investigador diz que é necessário que a questão das armas se torne central nas políticas de governo, em nível estadual e federal. “As pessoas acham que as facções são uma coisa distante, não percebem como estão infiltradas na sociedade. Idealizou-se o criminoso faccionado como sendo o ‘Marcola’, que aparece sempre com uniforme de presídio ou em uma foto de ficha criminal. Elas não se tocam que o vizinho, parente, amigo que desencaminha uma arma pode estar contribuindo com o mesmo grupo que o ‘Marcola’. É preciso conscientizar sobre o perigo de possuir um arsenal, um paiol dentro de casa, porque as facções têm poder de persuasão em todas as esferas da sociedade”, afirmou o policial.
Os reflexos de como as armas se espalharam nas mãos de civis, nos últimos anos no Brasil, são “uma tragédia”, na visão do secretário Nacional de Segurança Pública, Tadeu Alencar, que atua vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). Ele conversou com O POVO em setembro, durante passagem por Fortaleza para um evento, e pontuou que as medidas de controle de armas lançadas pelo atual governo precisam ter resultados rápidos por causa “da real gravidade da situação”.
“Esse discurso de armamentismo em um país com as dificuldades que o Brasil já tinha, em relação às facções criminosas, foi uma tragédia. Uma pessoa, só porque se dizia CAC, era filiada a um clube de tiros, podia ter 60 armas, podendo 30 delas ser fuzis. Isso deu contornos trágicos à situação, porque boa parte dessas armas foram adquiridas com facilidade e desvirtuadas para as facções criminosas. Isso nós temos demonstrado e comprovado em diversas investigações no Ministério da Justiça”, afirmou o secretário.
O representante do MJSP evitou fazer análises sobre a situação do Ceará, em relação ao avançar das consequências do desvirtuamento dessas armas. Segundo ele, o Ministério pretende tratar a situação da Segurança Pública como uma questão a ser unificada.
“O Ceará tem, sem dúvida, uma particularidade, que é a posição geográfica mais próxima de outros continentes do que outros estados brasileiros, e isso favorece uma rota de tráfico. Mas as questões da Segurança Pública não podem ser vistas de forma individualizada, temos que olhar o Brasil por inteiro. A situação do Ceará é a mesma de outros estados do Brasil que as facções encontraram espaço para evoluírem. Por isso, entendemos que a Segurança Pública precisa ser integrada e com informações de inteligência partilhadas”, disse Alencar.
Segundo o secretário, ainda estão sendo estudadas de que forma e se haverá algum tipo de retenção das armas que foram concedidas de maneira legal nos últimos quatro anos. Porém, para o MJSP já está claro que a regulamentação precisa ser feita “de forma muito mais restritiva e responsável”, conforme Tadeu Alencar.
“É preciso fazer essa regulamentação respeitando os atiradores esportivos, as forças de segurança e aqueles que legitimamente puderam adquirir essas armas, mas aumentando o controle de maneira significativa, para que não seja possível adquirir tantas armas. Voltamos também os calibres ponto 40 e 9 milímetros para serem considerados de uso restrito. Antes dessa facilitação toda, era de uso privativo de forças armadas, e elas foram colocadas à disposição da população.”
Tadeu Alencar disse que a quantidade de armas disponíveis afeta diretamente os indicadores de violência, nos números de crimes como homicídios, latrocínios, roubos e na capacidade de enfrentamento entre facções criminosas. “Temos clareza que isso impacta diretamente os indicadores de violência e, por isso, esse decreto para dificultar o acesso e a circulação já está em vigor. Estamos migrando atribuições do Ministério da Defesa, do Comando do Exército, para a Polícia Federal. Vamos fazer isso sem nenhuma interrupção desse controle restritivo que já está em vigor desde o dia 1º de janeiro”, declarou.
O representante do MJSP disse que a pasta tem uma preocupação central com a redução de homicídios e apreensão de drogas e armas. “As armas são instrumentos de intimidação potentes, e as facções não podem encontrar formas de ter nenhum acesso facilitado. Lançamos um plano de combate ao crime organizado, estamos realizando operações sistemáticas toda semana para combater de forma enérgica esses grupos. Até o final do ano, tenho certeza que isso vai ter um impacto forte na política de Segurança Pública no Brasil”, afirmou Alencar.
As armas de fogo chegam às facções criminosas, principalmente, em duas situações: por contrabando e por extravio de armas conseguidas dentro do País legalmente. O delegado Alison Gomes, titular da Delegacia de Combate ao Crime Organizado (Draco), da Polícia Civil do Ceará (PC-CE), disse que não foi percebido nenhum aumento significativo de contrabando nos últimos anos.
“Podemos dividir a aquisição de armas de duas formas: contrabando, principalmente do Paraguai, e armas que inicialmente eram legais e foram extraviadas, furtadas ou adquiridas já com fins ilícitos, embora tenham obedecido à legislação. Qualquer extravio é um prejuízo para a sociedade”, explicou.
O delegado afirmou que as investigações já identificaram situações pontuais de armas de civis encontradas com facções, mas não encontraram nenhum que se cadastrou no Sigma ou Sinarm como grande fornecedor do crime organizado no Ceará.
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“A arma é o trunfo das facções, e há riscos em qualquer tipo de facilitação ao acesso. A relação das organizações criminosas com as armas é muito estreita, e nós estamos atentos a quem está fornecendo. Mesmo a nossa atuação não sendo voltada, especificamente, para armas de fogo, já apreendemos 37 armas e mais de mil munições neste ano. Isso aponta para uma quantidade alta de armas nas ruas”, afirma.
De acordo com números divulgados pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), de janeiro a setembro deste ano, 4.821 armas foram apreendidas em ações, por meio de suas vinculadas.
Série de reportagens mostra o perfil do uso de armas de fogo do Ceará a partir de dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), ligado à Polícia Federal/Ministério da Justiça, bem falhas no controle do registro desses armamentos