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Ao sabor das ondas: como a regulamentação de armas reflete a polarização política no Brasil
Reportagem Seriada

Ao sabor das ondas: como a regulamentação de armas reflete a polarização política no Brasil

Graças à política de flexibilização do governo Bolsonaro, o mercado de armas de fogo viveu dias de glória entre 2019 e 2022. O retorno de Lula impôs restrições que afetam as dinâmicas do setor e aquecem os debates sobre o tema
Episódio 3

Ao sabor das ondas: como a regulamentação de armas reflete a polarização política no Brasil

Graças à política de flexibilização do governo Bolsonaro, o mercado de armas de fogo viveu dias de glória entre 2019 e 2022. O retorno de Lula impôs restrições que afetam as dinâmicas do setor e aquecem os debates sobre o tema
Episódio 3
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“Imagine que a sociedade é um rebanho de ovelhas”, propõe o advogado Henrique Braz, entusiasta das armas de fogo e defensor da flexibilização das atuais regulamentações. “E aí tem um lobo e um cão pastor. A ovelha, muitas vezes, não acredita no mal. O lobo, que tem os dentes afiados, quer caçar, em bando ou sozinho, as ovelhas. Mas o cão pastor também tem dentes. O desarmamento quer que eu, o cão pastor, tire meus dentes para enfrentar o lobo”.

Henrique é proprietário, em Fortaleza, de duas lojas que vendem armas. “Em termos de vendas, houve uma queda de mais de 90% em relação ao ano passado. Hoje, quem trabalha exclusivamente com isso, dificilmente vai sobreviver. Tenho colegas de trabalho que estão entregues à própria sorte. A gente continua bem porque temos uma variedade muito grande de produtos”, explica ele, que define suas lojas como “de artigos para aventura”.

A primeira unidade da AC Sports (sigla para Armazém Canindé Sports), localizada quase ao lado da Catedral Metropolitana de Fortaleza, no número 513 da rua Conde d’Eu, compartilha da estética de caos organizado das lojas do Centro. Vende uma infinidade de produtos — cordas, telas, ferragens, lonas, redes de proteção — e, entre eles, armas de fogo. Na fachada vermelha do prédio, que, a depender da hora do dia e da posição do sol, é parcialmente coberta por dois toldos também vermelhos, um número impõe respeito entre os comerciários da região: “Desde 1972”.

Henrique Braz é proprietário da AC Sports, que vende "artigos para aventura" e armas de fogo(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Henrique Braz é proprietário da AC Sports, que vende "artigos para aventura" e armas de fogo

A segunda loja da AC Sports, inaugurada em 2020 no número 3465 da avenida Santos Dumont, tem a sofisticação discreta do comércio da Aldeota. Aqui, o vermelho encarnado do Centro da cidade dá lugar a uma sobriedade organizada, de iluminação indireta e tampos de vidro escuro. Henrique desempenha bem o papel de lojista: é atencioso com a clientela, educado com os funcionários e, para a imprensa, tem estatísticas e relatos engatilhados. Conversou com O POVO+ por quase duas horas, emoldurado por mostruários apinhados de mochilas, garrafas, camisas e armas.

A quase oposição entre a estética das duas unidades é emblemática. O que, em 1972, atendia às necessidades práticas de uma clientela pouco interessada em exibicionismos aventureiros e bélicos, abriu espaço, cinco décadas depois, para um público mais sofisticado, ligado ao aparato de armas não (apenas) pela necessidade, mas pelo lazer e pelo esporte, pelo fetiche e pelo status.

 

Anos de ouro, anos de fogo

Não foi à toa que Henrique decidiu, em 2020, expandir seus negócios. Foi naquele ano que a emissão de registros de armas de fogo no Brasil deu um salto impressionante. As 89 mil emissões de 2019 se transformaram, ao fim do ano seguinte, em 155 mil. O incremento foi de 74%. Em 2021, a tendência de alta se manteve: 186 mil novas emissões foram registradas, crescimento de 20% em relação ao ano anterior.

 

Emissão de Registros de Armas de Fogo no Brasil por mês

 

Como empresário atento ao seu ramo (e ao seu hobby), Henrique aproveitou a oportunidade. A segunda unidade da AC Sports, agora incrustada no coração da nobreza imobiliária fortalezense, surfou na avassaladora onda de interesse armamentista despertada por Jair Bolsonaro, seus filhos e apoiadores mais aguerridos a partir da campanha eleitoral de 2018, que terminou com a vitória do candidato do PSL com 55% dos votos.

De acordo com levantamento realizado pelo Instituto Sou da Paz e divulgado em setembro de 2022, houve, desde o início do governo Bolsonaro, “mais de 40 publicações com vistas a afrouxar o controle de armas e munições no País”. Foram 17 decretos assinados pelo mandatário, 19 portarias (a maioria oriunda do Comando do Exército), 3 instruções normativas da Polícia Federal (PF) e 2 resoluções da Câmara de Comércio Exterior (Camex).

“O pessoal não sabia que podia comprar arma. A partir de 2018, houve uma publicidade maior. As pessoas chegavam e me perguntavam: ‘Rapaz, eu posso mesmo comprar uma arma de fogo?’ Começaram a entender que realmente poderiam, que era um direito que estava na legislação”, conta Henrique, “e aí vieram as eleições do ano passado. Em 2023, cortou tudo”.

Durante o governo Bolsonaro, mais de 40 publicações oficiais ajudaram a flexibilizar o controle de armas(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Durante o governo Bolsonaro, mais de 40 publicações oficiais ajudaram a flexibilizar o controle de armas

O “cortou tudo” de Henrique se refere à série de mudanças iniciadas pela assinatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no primeiro dia de 2023, um domingo, de decreto que previa a reestruturação radical da política de controle de armas executada por seu antecessor. O texto firmado por Lula veio transbordante de suspensões: da concessão de novas licenças para clubes de tiro; da emissão de novas licenças para a categoria de Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC); da renovação de registros de arma de uso restrito.

O efeito de sua assinatura foi imediato e, segundo entusiastas do universo bélico ouvidos por O POVO+, devastador. As 135 mil emissões de registros de armas de fogo contabilizadas em 2022 transformaram-se, entre os meses de janeiro e novembro de 2023, em 28 mil. A queda foi de 79%. Donos de fábricas e de transportadoras, de lojas e de clubes de tiro, colecionadores e esportistas, todos sentiram o golpe da caneta do novo presidente.

“Os lojistas que vivem exclusivamente disso estão praticamente acabados. Não conseguem mais vender. Nunca imaginei que alguém pudesse quebrar com o estoque lotado, mas é o que está acontecendo com as lojas e com os clubes de tiro”, lamenta Henrique. De acordo com dados da Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições (Aniam), o setor de armas e munições gerava, em 2022, 60 mil empregos diretos e indiretos, com um faturamento anual de mais de R$ 5 bilhões. Os dados de 2023 ainda não foram divulgados.

 

Arma política, política armada

O ímpeto armamentista do bolsonarismo é melhor observado quando a série histórica da emissão de registros de armas de fogo é analisada mês a mês. Dos 40 meses com mais registro de armas na última década, 35 estão compreendidos na faixa temporal do governo de Jair Bolsonaro. Só em agosto de 2021, mês que representa o ápice de emissões, mais de 18 mil registros foram emitidos.

 

Emissão de Registros de Armas de Fogo no Brasil por ano

 

Outro recorte, agora geográfico, ajuda a ilustrar a intensidade mobilizadora do sentimento armamentista em nossa política. Em uma comparação visual da proporção de armas por habitante com a proporção de votos em Bolsonaro durante o segundo turno das eleições de 2022, percebe-se que os estados que mais deram votos ao ex-presidente são justamente aqueles mais armados.

Em Rondônia, por exemplo, onde Bolsonaro obteve 70,6% dos votos válidos, há 1.897 armas por 100 mil habitantes. Por outro lado, no Piauí, onde Bolsonaro recebeu apenas 23,1% dos votos, o número de armas cai drasticamente: são 283 armas por 100 mil habitantes. No Ceará, a quantidade proporcional de armas é ainda mais baixa: 128 — com 30% de votos válidos em Bolsonaro no segundo turno de 2022.

 

Comparativo do número de armas por Estado com o resultado do segundo turno das eleições em 2022

 

Dos dez estados com maior número de armas a cada 100 mil habitantes, quatro são da região Norte (Rondônia, Acre, Roraima e Tocantins), três do Centro-Oeste (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás), dois do Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina) e um do Sudeste (Espírito Santo). Bolsonaro foi o candidato com mais votos no segundo turno de 2022 em nove desses dez estados, tendo ficado atrás de Lula apenas no Tocantins, onde obteve 48,64% dos votos válidos.

Por outro lado, dos dez estados com menor número de armas a cada 100 mil habitantes, sete estão no Nordeste (Ceará, Bahia, Maranhão, Piauí, Pernambuco, Paraíba e Alagoas), dois no Sudeste (São Paulo e Rio de Janeiro) e um no Norte (Amazonas). Apenas São Paulo e Rio de Janeiro não deram vitória a Lula no segundo turno das eleições de 2022.

 

Rank de estados com armas de fogo com registro ativo

 

“O grande erro foi transformar a questão, em 2018, em bandeira política”, avalia Henrique Braz, proprietário da AC Sports, apontando que a pauta vem sendo explorada e distorcida, por esquerda e direita, desde as eleições daquele ano. Henrique atribui a essa apropriação a falta de aprofundamento, por parte da população, em relação à questão das armas. “Eu queria que as pessoas analisassem e entendessem sem levar pro lado da política”, propõe.

Como prova da retidão de caráter dos entusiastas da flexibilização das políticas armamentistas, Henrique cita o recadastramento de armas de fogo promovido no primeiro semestre de 2023 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). À época, o então ministro Flávio Dino anunciou que 99% das armas haviam sido recadastradas. “Fiquei muito feliz, porque isso mostrou que somos pessoas de bem. Quero que o atual presidente faça um ótimo governo, mas é preciso descer do palanque e enxergar que ele governa para todos”, afirma Henrique.

 

Um conservadorismo para chamar de nosso

“O bolsonarismo é a versão brasileira do conservadorismo estadunidense”, afirma o professor da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) Fernando Vechi, que é doutor em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) com estudo sobre a influência das organizações pró-armas dos Estados Unidos no discurso da Bancada da Bala no congresso brasileiro.

Embora a defesa das armas tenha, no país hoje governado por Joe Biden, uma história antiga, marcada por mobilizações políticas, empresariais e sociais intensas, foi com a presença massiva e estridente de seus entusiastas nas redes sociais que o setor conseguiu chegar a novos patamares de influência. E a ocupação rumorosa desses espaços virtuais é, justamente, uma das principais características desse novo conservadorismo — em suas versões norte-americana ou brasileira.

Donald Trump, que comandou a política dos EUA entre 2017 e 2020, estreitou relações do governo com a Associação Nacional do Rifle (NRA)(Foto: Brendan Smialowski / AFP)
Foto: Brendan Smialowski / AFP Donald Trump, que comandou a política dos EUA entre 2017 e 2020, estreitou relações do governo com a Associação Nacional do Rifle (NRA)

Um dos argumentos centrais de Vechi em sua investigação é o de que a replicação adaptada dessa tendência no Brasil segue a lógica de dois conceitos importantes para as Ciências Criminais: o populismo punitivo (ou penal) e o pânico moral. O primeiro diz respeito ao uso, por parte de figuras do meio político, de temas ligados à violência e à redução da criminalidade para angariar vantagem eleitoral.

Operando a partir da configuração e veiculação de discursos punitivistas, essas figuras replicariam, por aqui, uma das ideias centrais do populismo: “trazer o senso comum popular para ordenar o sistema de justiça criminal, o que é uma maneira de garantir que as políticas do governo reflitam mais a vontade publicizada do que os valores e princípios da justiça”, explica o pesquisador.

Tanto o neoconservadorismo norte-americano quanto sua vertente brasileira pregam a flexibilização das políticas de acesso às armas(Foto: Julio Caesar)
Foto: Julio Caesar Tanto o neoconservadorismo norte-americano quanto sua vertente brasileira pregam a flexibilização das políticas de acesso às armas

O outro conceito que, de acordo com o estudo de Vechi, é balizador dos pensamentos e condutas do neoconservadorismo brasileiro, é o de pânico moral. A ideia se refere ao modo pelo qual eventos casuais acabam determinando o imaginário popular e o sentimento de insatisfação. “Essa categoria se ajusta às pautas temporárias de casos específicos de terror, dor e indignação popular” que acabam servindo como substrato para a promoção e “realização de políticas criminais contra determinados inimigos”, explica.

Em resumo, parte considerável dos políticos identificados com o neoconservadorismo brasileiro opera a partir da apropriação de pautas com elevada capacidade de gerar pânico e indignação popular, utilizando-as como base para a difusão (via redes sociais) de discursos punitivistas radicais que, em medidas variáveis, acabam desaguando na promoção da ideia de que é preciso se armar para sobreviver.

“Diante dessa ideia liberal de que o Estado é falido, que não é capaz de fazer a defesa da população, aparece a figura, nos Estados Unidos, do ‘good citizen’, que o Brasil importou como ‘cidadão de bem’”, explica Vechi. O argumento é o de que é preciso se armar para não ser vítima da incapacidade do Estado: “É o que, na criminologia, chamamos de privatização da segurança pública”.

Representante do neoconservadorismo no Brasil, Bolsonaro assinou pelo menos 17 decretos para flexibilizar o acesso às armas no País(Foto: Evaristo Sá / AFP)
Foto: Evaristo Sá / AFP Representante do neoconservadorismo no Brasil, Bolsonaro assinou pelo menos 17 decretos para flexibilizar o acesso às armas no País

Quando essa lógica invade — pelas mãos de figuras que abraçaram como suas a bandeira armamentista — o universo ruidoso das redes sociais, o que chega ao público é um radicalismo depurado e culminante. “O que vai gerar engajamento não é alguém defendendo uma política moderada, não é uma discussão aprofundada. O que você vai ver é o cidadão de bem se defendendo com uma arma de fogo, e isso vai gerar desejo e fascínio em relação ao poder que envolve uma arma”, argumenta o pesquisador.

Apesar da crescente organização política dessas figuras ligadas ao movimento armamentista e neoconservador, Vechi não enxerga o Brasil, ainda, como nação definida por uma cultura de armas, como seria o caso dos EUA. “A cultura de armas não existe, mas estão tentando criá-la. Esse é o grande ponto. Tentaram estabelecê-la durante o governo Bolsonaro, mas agora no governo Lula ela já se perdeu de novo, está restrita a determinados lugares e territórios”, afirma.

 

Batom e pólvora

A bolsa que a dona de casa Jucilene Martins carrega quando chega para conversar com nossa reportagem parece pesada. Ao ritmo de seus passos ecoa, do interior da bolsa, um barulho de metal. Dela saem medalhas em profusão. “Essa foi com revólver de calibre maior. Essa aqui com pistola de calibre maior, .45. E essa outra com arma longa, calibre .22, que hoje está restrito”, vai explicando enquanto desenrosca as fitas emaranhadas.

A dona de casa Jucilene Martins tem mais de 100 mil seguidores em sua conta no Instagram (@batomepolvora)(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal A dona de casa Jucilene Martins tem mais de 100 mil seguidores em sua conta no Instagram (@batomepolvora)

Jucilene tirou seu Certificado de Registro (CR) — documento emitido pelo Exército que atesta que a pessoa está apta a adquirir e manusear armas de fogo — em 2018. Cinco anos depois, adicionou aos títulos de dona de casa e avó, os quais ostenta com um orgulho sorridente, o de campeã regional. “Foi um campeonato internacional que veio pra cá. Era com o fuzil 5.56, que o povo demoniza mas que pra mim é só um .22 turbinadozinho. Fiquei em primeiro lugar no Nordeste na categoria Dama”, conta.

O processo que levou Jucilene a comprar sua primeira arma foi longo e sinuoso. Começou quando, em 2015, ficou viúva aos 38 anos, depois de 23 anos de casada. Sem o companheiro de toda uma história, vivendo com as duas filhas em um bairro de subúrbio, começou a ter preocupações que antes pareciam exagero. “E aí, dois homens armados tomaram meu carro de assalto”, relembra. “Foi o pontapé”.

Jucilene fez um curso de tiro, obteve seu CR e começou a praticar. Era motivada pela ideia de que, se invadissem sua casa e colocassem em risco ela e suas filhas, estaria preparada para revidar. “Mas acabou virando uma terapia. Eu me reencontrei, renasci”. Seu renascimento veio acompanhado por um inesperado êxito virtual — sua conta no Instagram (@batomepolvora), tem mais de 100 mil seguidores — e pelo estabelecimento de um novo círculo social: as amigas e amigos com os quais divide seu tempo livre no clube de tiro que frequenta, religiosamente, todos os domingos.

Praticante de esportes de tiro, Jucilene coleciona medalhas e títulos(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Praticante de esportes de tiro, Jucilene coleciona medalhas e títulos

Em sua conversa com O POVO+, Juciele utiliza como argumento um dado difícil de ignorar: o feminicídio. No primeiro semestre de 2023, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o registro de casos aumentou em 2,6% em comparação ao mesmo período do ano anterior. Em relação ao número de estupros, o aumento foi ainda mais alarmante: de 14,9% em relação ao ano passado.

“A arma não é para matar, é para defender a vida, a nossa e a dos nossos filhos. Imagine a situação: a vítima vai à delegacia, faz um B.O., recebe uma medida protetiva, mas isso não consegue salvar a vida dela. A mulher fica indefesa, e acaba virando estatística de assassinato, deixando os filhos órfãos. Isso me horroriza. Hoje eu sei que tenho condição de me defender, e treinei muito para isso”, conta.

O Brasil possui, hoje, um total de 713 mil registros de armas de fogo. Desse total, 56 mil estão vencidos e 1.913 foram cancelados. Permanecem ativos outros 655 mil, o que se traduz, visto que há mais de uma arma autorizada por registro, no total de 941 mil armas de fogo no País. No Ceará, há pouco mais de 12 mil armas com registro ativo, o que coloca o Estado na 19a posição entre as unidades federativas. No topo da lista está o Rio Grande do Sul (mais de 129 mil), e a última posição é ocupada pelo Amapá (menos de 4 mil).

Dos 655 mil registros ativos em todo o território nacional, 618 mil são de homens. As mulheres representam apenas 5% desse total, com 37 mil. Traduzindo esses dados em número de armamentos, são 901 mil armas de fogos de homens e pouco mais de 40 mil de mulheres. Jucilene, integrante dessa estatística que, segundo ela, seguia em pleno crescimento antes das restrições do novo governo, revela ter, em seu registro ativo, mais de uma arma: “Mas gosto mesmo é do revólver, é minha arma preferida”.

 

Distribuição etária/gênero do registro ativo de armas no Brasil

 

 

Tipos, métodos e números

Na lista dos tipos de armas de fogo com registro ativo, os revólveres ocupam o segundo lugar — são quase 135 mil unidades em todo o Brasil. Em seguida aparecem os rifles (102 mil) e as espingardas (100 mil). As pistolas são a espécie de arma mais registrada, com número que é mais do que quatro vezes superior ao de registros de revólveres: são mais de 587 mil pistolas com registro ativo no País.

Um dos argumentos centrais utilizados pelos entusiastas das armas de fogo para criticar o discurso da oposição é o de que não há, no mercado bélico para civis no Brasil, facilidades de aquisição. “Não existe isso de pagou, levou”, aponta Henrique, proprietário da CS Sports. Os procedimentos estabelecidos pela Polícia Federal (para posse) e pelo Exército Brasileiro (para CACs) são, de fato, complexos e onerosos. Adquirir uma arma, pelas vias legais, não é tão simples como, muitas vezes, somos levados a crer.

Tanto no caso da posse quanto no caso do CAC, há pré-requisitos que incluem a idade mínima de 25 anos e a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidos pelas justiças Federal, Estadual, Militar e Eleitoral. O requerente também não pode estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal. Além disso, é exigida a apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e residência certa, assim como a comprovação de capacidade técnica e aptidão psicológica para o manuseio de armas de fogo. A filiação a um clube de tiro é requisito para os CACs.

 

Espécie das armas de fogo com registro ativo no Brasil

 

Depois de adquirida, a arma de fogo não pode sair da residência, trabalho ou fazenda do proprietário sem autorização. Em casos de mudança de domicílio, manutenção do equipamento ou treinamento (no caso dos clubes de tiro), é preciso solicitar à PF ou ao Exército uma Guia de Trânsito, que no caso das armas de defesa só é concedida uma vez a cada 30 dias. Durante o transporte, a arma precisa estar desmuniciada.

A questão do desmuniciamento para CACs, exigida a partir da nova regulamentação de armas, é ponto uníssono de crítica entre os praticantes de esportes de tiro. Queixam-se do risco a que se submetem quando se deslocam, com as armas desmuniciadas, para os clubes de tiro, que em geral se localizam em bairros afastados e não raro desertos. “Os casos de assalto nas proximidades dos clubes aumentaram bastante, porque os criminosos sabem que você está levando armas e que não pode se defender”, reclama Jucilene.

 

Série histórica do número de armas com requerimentos aprovados e reprovados no Brasil

 

Entre 2019 e 2023, foram apresentados mais de 618 mil requerimentos relacionados a 1.322.414 armas de fogo no Brasil. Desse total, 83% foram deferidos. Os requerimentos incluem aquisição (270 mil), registro (213 mil), porte (48 mil) e transferência (47 mil). 2021 foi o ano que registrou o maior número de pedidos: foram mais de 405 mil armas, com 374 mil delas tendo seu requerimento deferido. Os dados são do Sistema Nacional de Armas (Sinarm).

Os requerimentos relativos ao porte de arma registraram número recorde em 2022. Foram mais de 15 mil pedidos, dos quais quase 10 mil foram deferidos. No mesmo ano, o número de registros de ocorrências envolvendo armas de fogo foi de 17 mil, aumento de 57% em relação a 2021, que até então ocupava o topo de casos na série histórica, com 11 mil casos. Em 2023, quando foram deferidos 5 mil pedidos de porte (redução de 50% em relação a 2022), o número de ocorrências caiu para 8 mil (redução de 49%).

 

Proporção de requerimentos deferidos e indeferidos por tipo, a cada ano

 

 

Violências compartilhadas

Um dos argumentos centrais dos defensores de novas legislações que tornem menos rígido o acesso às armas de fogo e munições é o decréscimo nos índices de homicídios registrados no Brasil a partir de 2019, quando o então presidente Jair Bolsonaro começou a flexibilizar as regras estabelecidas no Estatuto do Desarmamento, de 2003.

De acordo com dados publicados no “Atlas da violência”, documento produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o número de ocorrências envolvendo homicídios dolosos, de fato, apresentou queda nos anos de Jair Bolsonaro à frente do Executivo Federal. Entre 2019 e 2021 (o último ano contemplado pelo Atlas), os índices de homicídio foram os menores de toda a série histórica, retornando a patamares anteriores a 2008.

Considerando todos os indicadores relacionados a homicídios no Atlas, observa-se que, entre 2011 e 2021, a taxa de homicídios no País caiu 18,3%. A redução foi positiva, mas o número total ainda impressiona: nessa década, 616 mil pessoas foram assassinadas, o equivalente, a modo de comparação, às populações de Caucaia e Maracanaú juntas.

Entusiastas das armas apontam a redução no número de homicídios no Brasil após os decretos de flexibilização assinados por Bolsonaro(Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil)
Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil Entusiastas das armas apontam a redução no número de homicídios no Brasil após os decretos de flexibilização assinados por Bolsonaro

Segundo Melina Risso, diretora de pesquisa do Instituto Igarapé e com experiência de 15 anos no campo da Segurança Pública, não é possível atrelar essa redução nos índices de homicídios à maior circulação de armas resultante das flexibilizações do governo Bolsonaro. “É um fenômeno multicausal, não tem uma causa única”, afirma em entrevista ao O POVO+. Fatores como a presença do crime organizado no tecido social e a variação das populações de jovens e idosos na composição demográfica, por exemplo, colaboram de forma significativa nessa equação.

Embora as estatísticas de homicídio tenham apresentado queda importante, alguns recortes específicos chamam atenção. Entre 2020 e 2021 houve alta no número de homicídios de mulheres, negros, indígenas e da população LGBTQIA+, por exemplo. Especialistas falam de “recrudescimento” da violência contra grupos tidos como “minoritários”. Em 2021, 79% de todas as vítimas de homicídio no Brasil eram negras.

 

Principais tipos de ocorrências envolvendo armas de fogo

 

Dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm) também são utilizados por especialistas para sugerir que é preciso olhar com desconfiança a associação entre a flexibilização levada a cabo pelo governo Bolsonaro e a redução no número de homicídios. De 2019 a 2023, foram registradas 45 mil ocorrências de furto de arma de fogo. As apreensões foram 16 mil. Extravios ou perdas, 13 mil. Roubos de arma de fogo foram 2,7 mil. Só em 2023, até o dia 5 de dezembro, foram 2.286 furtos, 2.380 apreensões, 890 extravios e 333 roubos.

Em toda a série histórica, o ano que registrou o maior número de ocorrências foi 2022, com 7.024 casos. Em seguida aparece 2023, com 5.889 ocorrências. A organização desses registros em um gráfico ano a ano oferece ao leitor uma visão oscilante: o número de ocorrências cresce rapidamente a partir de 2009 e atinge o ponto máximo das primeiras duas décadas em 2013, com 6.227 casos. Volta a cair lentamente a partir do ano seguinte, até dar outro salto de crescimento em 2021, com 5561 ocorrências.

 

Série histórica de ocorrências envolvendo armas de fogo no Brasil

 

 

“Não é cada um por si, não é a lei do mais forte”

Para Melina Risso, diretora de pesquisa do Instituto Igarapé, é preciso olhar com cautela e desconfiança a sugestão de associação direta entre a maior circulação de armas promovida pelo governo de Jair Bolsonaro e a redução de alguns índices de violência no Brasil. Em questões ligadas ao universo da segurança pública, nada é tão simples.

Risso escreveu, em co-autoria com a cientista política Ilona Szabó, o livro “Segurança pública para virar o jogo”, lançado em 2018 (portanto, antes do governo Bolsonaro) e que apresenta ao leitor não especializado os meandros da estrutura social e política que possibilitam o agravamento da criminalidade e da percepção de insegurança no Brasil.

À frente do internacionalmente reconhecido Instituto Igarapé, entidade sem fins lucrativos, independente e apartidária que se dedica também às questões de segurança climática e digital, Risso e Szabó vêm se dedicando à questão da regulação de armas e munições há tempos. Antes de integrar o Igarapé, Risso foi diretora do Instituto Sou da Paz e participou de pesquisas ligadas aos temas de controle de armas, uso da força por parte das polícias e justiça criminal.

Na entrevista a seguir, Risso reflete sobre as políticas de armas dos governos Bolsonaro e Lula e argumenta a favor da ideia de que o uso da força deve ser, de maneira legítima, exclusividade do Estado.

"Essa desestruturação da política coloca todo mundo em xeque", afirma Melina Risso(Foto: Divulgação / Equipe DiCastro)
Foto: Divulgação / Equipe DiCastro "Essa desestruturação da política coloca todo mundo em xeque", afirma Melina Risso

O POVO+: Vocês defendem a "regulação responsável" como agenda fundamental do Instituto Igarapé. A regulação que temos hoje, reformulada a partir do início de 2023, com a mudança de governo, pode ser considerada "responsável"? Se não pode, o que falta? Quais seriam os próximos passos nesse processo?

Melina Risso: Sem dúvida nenhuma, a partir de 2023 a gente volta a ter uma regulação responsável. E, na prática, o que significa essa regulação responsável? Significa a gente adequar, a parâmetros que sejam razoáveis, o acesso à arma de fogo pela população civil, considerando que a arma de fogo tem um papel muito significativo na insegurança que a gente vive cotidianamente. Diz respeito ao tipo de arma a que se pode ter acesso, à quantidade de armas que as pessoas podem comprar, à quantidade de munição. Tudo isso faz parte do que a gente chama de regulação responsável. Associado a isso estão os mecanismos de controle que o próprio Estado estabelece em relação a esse volume de armas em circulação, seja do ponto de vista de quem tem acesso, seja em relação à quantidade de registro periódico, garantindo a integração entre bancos de dados. Esses são mecanismos que ajudam muito na segurança pública.

A gente tem ainda uma discussão que está sendo colocada sobre o controle de armas que estão na mão de civis, inclusive sobre a categoria dos caçadores, atiradores e colecionadores passar para a Polícia Federal. É uma discussão que ainda está em aberto, e acho que esse caminho é bastante adequado pra gente recuperar essa regulação responsável. Estamos no caminho certo. Agora, não basta só uma legislação, não basta só estar no papel, isso carece de implementação e esse é um processo que a gente tem acompanhado muito de perto.

O POVO+: Em relação a essa agenda, vocês trabalham com a mobilização de diferentes setores (oficiais, de imprensa e do público geral) para barrar o que chamam de "retrocessos". Em que medida as flexibilizações do governo anterior representaram retrocessos em relação ao tema?

Melina Risso: Durante o governo Bolsonaro, sem dúvida, a gente teve um grande retrocesso na política de controle de armas, porque ele desmontou diferentes estruturas, seja em relação aos limites de armas que as pessoas podiam comprar, seja em relação aos critérios que elas precisavam cumprir. Ele tirou poder, inclusive, das instituições do Estado. Tirou poder, por exemplo, da Polícia Federal, na decisão e no olhar discricionário em relação a quem pode ou não comprar armas, e também reduziu o papel e a capacidade de fiscalização do próprio Exército dentro desses arsenais. Mas qual é o problema se a gente não tem esses mecanismos? É que a gente passa a ter muitas armas entrando no mercado, armas com potencial de fogo muito maior. E ao mesmo tempo, há uma redução da capacidade do Estado de fazer a fiscalização e rastreabilidade dessas armas.

A gente viu um derramamento de armas de fogo na sociedade, com grandes implicações e também com porosidade. E a gente viu muitas dessas armas que entraram em circulação caindo na mão do crime organizado. Foram várias as notícias ao longo desse período nas quais se observava as pessoas se utilizando dessa falta de critérios e de controle para efetivamente comprar uma arma diretamente para o crime organizado. É um risco: essa desestruturação da política coloca todo mundo em xeque.

"Lembrando, o acesso à arma de fogo continua sendo permitido, mas agora com critérios coerentes, racionais, como deve ser numa sociedade democrática"

 

O POVO+: O Igarapé também defende que o uso da força seja, de maneira legítima, exclusividade do Estado. Parte considerável dos defensores da flexibilização das políticas de armas justifica sua conduta indicando que o Estado, hoje, não seria capaz de garantir a defesa da sociedade, e que, por isso, caberia aos civis o uso da força em defesa própria. Essa conduta é problemática?

Melina Risso: O Instituto Igarapé acredita no Estado e acredita no fortalecimento do Estado. No campo do controle de armas, é ele [o Estado] que defende o pacto social. E é esse o processo: não é cada um por si, não é a lei do mais forte, é um Estado baseado em regras democráticas, no império da lei, com o sistema de justiça, com o direito ao devido processo, e é tudo isso que forma essa estrutura do que a gente defende e vem buscando fortalecer. Quando o governo anterior diz que é cada um por si, a gente está abrindo mão e está caminhando no sentido da barbárie, onde cada um faz o que quer e cada um faz uma interpretação baseada na sua própria experiência. A gente tem um risco muito grande, inclusive um risco democrático, quando a gente abre mão do Estado fazer o controle do uso da força e o controle da segurança pública.

O POVO+: Um dos argumentos centrais utilizados pelos entusiastas das armas é o de que, a partir de 2018, houve redução considerável no número de homicídios registrados no Brasil (o que é, de fato, confirmado pelo “Atlas da violência”). Essa redução pode ser atribuída à flexibilização do uso de armas de fogo operada no governo Bolsonaro?

Melina Risso: É importante a gente lembrar, para entender a relação entre armas de fogo e homicídios, que o homicídio é um fenômeno multicausal, ele não tem uma causa única. Então, não é necessariamente porque a gente aumenta ou reduz a quantidade de armas de fogo em circulação que a gente vai ter uma relação direta com os homicídios. Porém, temos estudos científicos, com rigor metodológico, que vão mostrar que sim, que há uma participação, mas que esse não é o único fator.

A gente tem, por exemplo, a relação com crime organizado, a participação que ele tem nessa estrutura. A gente tem também outros fenômenos, como a quantidade de pessoas jovens dentro da sociedade: quanto mais a gente envelhece a sociedade, maior a tendência de redução dos homicídios. Então, os fatores que atuam na redução dos homicídios não são aqueles vinculados à liberação de armas de fogo, muito pelo contrário. Se a gente tivesse controle dessas armas, a gente teria uma redução ainda maior do que a que a gente observou ao longo desses anos.

O POVO+: De acordo com dados levantados para esta reportagem, levando em conta a série histórica de 2013 a 2023, em 35 dos 40 meses com maior número de novos registros de arma de fogo o Brasil era governado por Jair Bolsonaro. Por outro lado, 2023 foi, até agora, o ano com menor número de emissão de registros. Como você enxerga esses dados? A população brasileira tem perdido interesse em armas ou as novas exigências e regulamentações têm desestimulado a compra?

Melina Risso: Sobre a flutuação na quantidade de armas em circulação, sem dúvida esse é um mecanismo muito natural em função da própria estrutura e das próprias regras que foram estabelecidas ao longo do tempo. Por exemplo, ao longo do governo Bolsonaro, como eu já citei, foram reduzidas as regras e critérios de quem poderia ter acesso a armas de fogo. Portanto, muita gente que não deveria ter acesso a elas, passou a ter, e isso gera um descontrole.

O que tem acontecido agora, no período desse governo, desde 2023, é uma redução no ritmo de entrada de armas de fogo, o que a gente pode atribuir a alguns fatores. O primeiro é que houve uma suspensão na possibilidade de venda de armas no começo do governo Lula, foi um processo de freio de arrumação para restabelecer novos critérios. Então, por um período, esse processo esteve mais restrito, efetivamente. E depois se volta a estabelecer novos critérios que as pessoas passam a ter que seguir para fazer essa aquisição. É natural que haja um declínio. Lembrando, o acesso à arma de fogo continua sendo permitido, mas agora com critérios coerentes, racionais, como deve ser numa sociedade democrática.

 

Metodologia

Para este material foram utilizados dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), disponibilizados neste link pela Polícia Federal (PF) / Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). Foram coletados, em 07/12/2023, os dados de portes, ocorrências, registros e requerimentos relacionados ao cadastro de armas de fogo em todo o Brasil. A última modificação nos arquivos descrita pelo Sinarm ocorreu em 05/12/2023. Ou seja, os dados representam a realidade no Brasil até esta data.

Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual periodicamente são publicados códigos, metodologias, visualizações e bases de dados desenvolvidas.

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