Um túnel de 80 metros, 3 toneladas e meia em cédulas, 36 acusados e um plano que desafiou a engenharia, a segurança e a Cidade. Duas décadas depois do furto milionário ao Banco Central, o maior da história do Brasil, a lâmpada que iluminou o crime continua acesa — nos corredores da Polícia Federal, nas conversas entre engenheiros, nos roteiros de cinema e na memória popular.
Acima, Fortaleza seguia seu ritmo. Abaixo, durante três meses, um crime com detalhes surpreendentes ganhava forma milímetro a milímetro.
O plano que chocou o Brasil e o mundo começou numa casa de arquitetura antiga na tranquila rua 25 de Março, no Centro da Capital.
O imóvel de número 1071 servia de fachada para uma suposta empresa de grama sintética — um disfarce perfeito para que nenhum vizinho desconfiasse das sacas de areia que vez por outra saíam de lá.
Cartografia do furto ao Banco Central de Fortaleza
Do lado de dentro, homens se revezavam em turnos de 8 e 10 horas para escavar um túnel que cruzasse a avenida Dom Manuel e chegasse até a caixa-forte do Bacen sem despertar atenção e nem deixar vestígios.
Além de retirarem a terra do buraco de quatro metros de profundidade — abaixo das tubulações de água e acima do lençol freático —, eles faziam o revestimento e escoramento da estrutura com madeira e lona plástica para evitar desabamentos.
Apertada, a cavidade subterrânea tinha 70 centímetros de espessura, mas foi equipada com iluminação elétrica e ventilação.
Ao fim do expediente de sexta-feira, 5 de agosto de 2005, 1,10m de concreto armado foi perfurado com britadeiras e discos de diamante adaptados para operar com pouco ruído: era o piso reforçado da caixa-forte.
Dentro do cofre, uma empilhadeira estrategicamente posicionada em frente à câmera de vigilância garantiu que quatro homens se movimentassem sem que fossem percebidos. Os equipamentos não gravavam, apenas mostravam imagens em tempo real.
Durante nove horas eles esvaziaram contêineres de notas de R$ 50 e encheram bacias de dinheiro puxadas pelo túnel até a casa. Às 6 da manhã do dia 6 de agosto, um sábado, encerraram a retirada após levarem mais de R$ 160 milhões.
De volta à residência, espalharam cal pelo chão para dificultar a identificação de impressões digitais e começaram a fuga.
Os criminosos tiveram cerca de 44 horas para escapar: o furto só foi percebido na manhã de segunda-feira, dia 8 de agosto, quando os primeiros funcionários chegaram para trabalhar e acessaram a caixa-forte.
De acordo com depoimentos dos acusados, a entrada no banco estava prevista para o fim de julho, “na época do Fortal” (evento de micaretas e Carnaval fora de época que aconteceu entre os dias 28 e 31 de julho de 2005, na Avenida Beira Mar), possivelmente porque as atenções estariam voltadas para a festa.
No entanto, segundo os réus, a ação final precisou ser adiada para o fim de semana seguinte devido a um problema com a eletrificação do túnel.
A Polícia Federal foi imediatamente acionada, a imprensa começou a semana com um crime cinematográfico para cobrir e a população ficava mais impressionada a cada nova informação. O grande furto ao Banco Central foi, antes de tudo, uma obra muito bem planejada.
Era cedo daquela segunda-feira, 8 de agosto de 2005, quando o então presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Ceará (Crea-CE), Otacílio Borges, atendeu a uma ligação inusitada.
Um repórter queria saber: o Conselho iria se posicionar sobre o túnel que acabara de ser descoberto abaixo do cofre do Banco Central de Fortaleza? A suspeita era direta — tamanho grau de precisão só poderia ter envolvimento de profissionais da engenharia.
O engenheiro civil, hoje com 83 anos, recorda que foi imediatamente ao local e, diante da abertura escavada nos fundos de uma casa simples na rua 25 de Março, não teve dúvidas: o que viu ali era fruto de uma operação planejada com cuidado técnico e impressionante logística.
Na época, o órgão chamava-se Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia e ofereceu sua estrutura para realizar perícia técnica na região das escavações, o que ajudou a identificar os equipamentos usados.
O policial federal Enéas Martins foi a primeira pessoa a entrar no túnel e contou sobre a experiência ao O POVO em 2015: “Estava ministrando um treino (quando foi acionado pela PF para ir até o local)”.
“Em 20 anos de profissão, foi um acontecimento bem diferente na minha vida. Rastejei por 50 minutos dentro de um túnel que, se eu tivesse claustrofobia, teria ficado lá. Dava pra rastejar, de cócoras. Suei muito, muito mesmo”, detalhou.
Enéas desceu pelo buraco com uma metralhadora em uma mão, uma pistola na outra e uma lanterna na boca sem saber aonde o túnel levaria, o que ou quem encontraria nas profundezas.
Dentro da estrutura, que ele considerou “bem arquitetada”, havia sujeira, “muitos copos”, mas não bichos. A comunicação era impossível, pois o rádio não funcionava lá dentro, embora os ventiladores ainda estivessem ligados. A cena era de suspense, com a incerteza de encontrar os criminosos ainda ali.
Após rastejar por quase uma hora, ele chegou à casa na rua 25 de Março que serviu de base para a quadrilha sem fazer a mínima ideia de onde estava. Lá, removeu escombros e um tablado que tapava o buraco, e o que descreveu foi “uma casa muito escura, cheia de sacos de areia”.
Enéas avançou pelos cômodos apontando as armas para o nada e o que encontrou pelo caminho foram pegadas, sobras de comida e cédulas — muitas cédulas — de R$ 50.
A imprensa só teve acesso à casa depois que os peritos do Bacen saíram do local. De lá, agentes federais levaram para a sede da PF materiais como pás, picaretas, enxadas, cavadores, rolos de fios para instalação elétrica, arames, alicates para cortar ferro, serras, serrotes, martelos, chaves de fenda, baldes, bolsas, roldanas, botas e outros itens utilizados em qualquer canteiro de obra de grande porte.
Em alguns dos 12 cômodos existentes na residência, a polícia encontrou paredes falsas feitas com gesso para esconder parte das sacas de areia. As janelas estavam tapadas com colchões e mantinham o ambiente escuro. Uma grande quantidade de pó branco (cal) foi espalhada para apagar digitais.
Reveja: vídeo mostra caixa-forte do Banco Central de Fortaleza e interior da casa na rua 25 de Março utilizada para escavação do túnel
Entre os objetos deixados pelo grupo, além das ferramentas, havia um estoque de alimentos com latas de feijoada, sacos de pães e refrigerantes. Foram encontradas muitas garrafas de bebida isotônica (de fácil absorção pelo corpo) jogadas pelo chão, assim como embalagens do remédio Tongifort 600, um polivitamínico e repositor de sais minerais. Vários calções, calças e camisas foram deixados pelos “tatus” da quadrilha.
“O túnel era todo revestido com madeira, protegido com os materiais certos, bem escorado. Uma obra de uma competência extraordinária”, lembra Otacílio. “Eles saíram exatamente no cofre. Usaram maquitas com silenciadores artesanais para cortar uma laje espessa de concreto armado. Tudo muito preciso.”
O interior da caixa-forte estava iluminado, sem necessidade de lanternas. Eles procuraram dinheiro não seriado, facilmente identificando o dinheiro novo empacotado. Entre 22h de sexta-feira e 6h da manhã de sábado, o dinheiro foi colocado em tambores cortados ao meio e puxado pela extensão do túnel apenas com a força dos braços, sem roldanas.
O espanto inicial não foi só de Otacílio Borges. Para o engenheiro civil Alfran Sampaio Moura, especialista em geotecnia e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), o choque veio antes mesmo da visita ao local.
“Soube pela imprensa e a reação foi de espanto. Era difícil acreditar que uma escavação com 78 metros de extensão e quatro metros de profundidade tivesse sido feita no Centro de Fortaleza sem chamar atenção”, relata.
Dias depois, Alfran esteve no imóvel usado como fachada pela quadrilha — uma loja de grama sintética montada apenas para esconder o trabalho subterrâneo.
Lá encontrou um cenário que misturava fuga e engenhosidade: sacos de areia empilhados, a escavação ainda aberta, marcas de um trabalho minucioso, mas interrompido às pressas.
Em uma área densamente construída e com tráfego intenso, os criminosos conseguiram abrir caminho sob a Avenida Duque de Caxias, atravessar a rua, evitar as redes de esgoto e água e ainda manter o túnel estável — sem provocar desmoronamentos ou qualquer fissura visível à superfície.
A escolha da profundidade de quatro metros não foi aleatória. Segundo os especialistas, essa cota manteve o percurso abaixo das tubulações e acima do lençol freático – o que reduz o risco de infiltrações.
Ainda assim, a escavação atravessou uma região de solo naturalmente úmido, por onde já correu o riacho Pajeú, conhecido por seus alagamentos históricos na Avenida Heráclito Graça/Duque de Caxias.
“A área exigia cuidados adicionais. O solo ali tem umidade elevada. Eles devem ter usado bombas improvisadas e reforçado bem as paredes do túnel para conter infiltrações”, afirma Alfran.
Do ponto de vista geológico, escavar em solo arenoso pode parecer vantajoso: ele é mais fácil de escavar por ser menos coeso. Mas essa mesma característica impõe a necessidade de contenção contínua — caso contrário, o túnel desabaria.
“O fato de não haver colapsos indica que houve uso de algum tipo de escoramento. Madeira, chapas metálicas ou estruturas improvisadas. Um trabalho com disciplina técnica evidente”, analisa o engenheiro geólogo Carlos Craveiro, atual diretor institucional do Crea-CE.
As investigações apontam que a escavação levou cerca de três meses. Durante esse tempo, a retirada do solo — toneladas de areia — foi feita em sacos, armazenados dentro da casa e removidos aos poucos, para não levantar suspeitas.
Vestígios encontrados pela perícia revelaram também o uso de espumas, mantas acústicas, panos úmidos e outras estratégias para abafar o ruído das britadeiras industriais utilizadas no corte da laje de concreto armado que protegia o cofre.
“Segundo os laudos, eles chegaram a usar detectores de metal para localizar e evitar as armaduras da laje, concentrando a perfuração nas áreas mais frágeis”, explica Alfran.
A precisão do trajeto intriga até hoje. O túnel desviou apenas alguns centímetros do ponto de destino. “Para isso, foi preciso conhecimento de topografia. Eles tinham um ponto de partida e um de chegada, e traçaram esse caminho com exatidão”, reforça Otacílio.
Em obras legais, esse tipo de execução exigiria estudos detalhados: sondagens do subsolo, levantamento das fundações do prédio, mapeamento das redes subterrâneas, análise arquitetônica dos espaços internos.
Estimar o custo de uma operação clandestina como essa não é simples. Mas Alfran calcula que, em valores atualizados, ela pode ter demandado algo entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão. Se fosse uma obra legal, com projetos, licenças e normas de segurança, esse custo subiria para até cinco vezes mais.
Desde o início das investigações, a PF trabalhou com a suspeita de participação ou apoio de funcionários no crime.
Eram várias as evidências: uma empilhadeira deixada estrategicamente em frente à câmera de vigilância, criando um ponto cego; o buraco aberto de forma precisa bem próximo aos depósitos; a ausência de monitoramento do circuito interno durante o fim de semana que pudesse ter captado alguma movimentação estranha — já que as câmeras não gravavam, apenas filmavam.
O furto escancarou vulnerabilidades de segurança, mas instituições também passaram a discutir com mais ênfase o uso ético do conhecimento técnico.
“O túnel do Banco Central é tema recorrente em minhas aulas”, diz Alfran. “Uso para discutir mecânica dos solos, resistência ao cisalhamento, e também ética profissional. Está no Código de Ética da Engenharia: é proibido usar conhecimento técnico para fins ilícitos.”
Carlos Craveiro concorda: “O episódio virou um caso clássico, inclusive nas aulas de ética. Mostra que saber técnico tem poder e, por isso, exige responsabilidade.”
Em busca de vestígios do planejamento, foram encontrados dois pregos cravados na parede externa do Bacen que fica ao lado da avenida Dom Manuel — um claro indício, visto que é comum em levantamentos topográficos e medições realizados na construção civil o uso de pregos para definição de eixos e tomadas de distâncias.
O laudo da perícia salienta, porém, que “somente medidas externas às edificações não permitem a escavação do túnel no rumo correto e o posicionamento da saída no interior do banco”.
“São necessárias informações internas como a espessura da parede, a posição dos objetos no interior da caixa-forte e a disposição do sistema de segurança. Assim sendo, torna-se evidente que sem a obtenção das plantas do edifício, em especial da caixa-forte do banco, e de outras informações privilegiadas, a execução do túnel com tamanha precisão seria muito difícil de ser executada”, expõe o documento.
O engenheiro apontado como responsável por projetar e supervisionar o túnel que permitiu o furto em 2005 é Marcos Rogério, preso em dezembro de 2023 por policiais do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) de São Paulo. Ele estava foragido havia 12 anos, desde que foi retirado por homens fortemente armados do presídio de Itaitinga.
O processo de fechamento do túnel gerou um impasse inicial entre a Prefeitura de Fortaleza e o Banco Central sobre quem arcaria com as despesas e a metodologia da obra, com orçamentos de mercado muito acima do previsto pelo projeto municipal.
O custo estimado para o fechamento da obra pela Seinf era de R$ 14,4 mil. No entanto, empresas estavam cobrando até R$ 45 mil para executar o serviço.
Em 15 de agosto, o Banco Central fechou parte da passagem subterrânea com concreto compactado, do buraco dentro do cofre até a Avenida Dom Manuel. O restante do trajeto seria fechado posteriormente pela Secretaria Municipal de Infraestrutura (Seinf).
Quatro empresas executaram o fechamento total do túnel em um sábado, 29 de outubro, a partir de um projeto elaborado pela Seinf e orçamento de R$ 17 mil bancado pelo BC.
O túnel foi fechado com argamassa Coulis, uma mistura de cimento, bentonita e água. A bentonita, um tipo de argila fina da Paraíba, é considerada resistente e garantiu a vedação do túnel. Foram utilizados dois buracos de 20 centímetros de diâmetro cada para a inserção da argamassa: um no quintal da casa na rua 25 de Março e outro na calçada em frente à sede do BC.
Vinte anos depois, o assalto que escandalizou o País continua provocando debates entre engenheiros, geólogos e gestores públicos. É lembrado como uma façanha criminosa — mas também como uma lição sobre as brechas que a ausência de fiscalização e o desvio de saberes podem abrir (literalmente).
Sons de passarinhos, uma luz acesa e um cimento fresco ao redor de uma torneira indicam que há movimento ali, mas as pessoas que vivem mais próximo afirmam desconhecer qualquer morador.
“Se tiver alguém, deve ser um cuidador, um caseiro ou um vigia que vem de vez em quando. Ela hoje é só uma casa de veraneio”, diz uma mulher que prefere não se identificar.
Duas décadas se passaram, mas a atmosfera de medo ainda paira entre os vizinhos da casa de número 1071 da rua 25 de Março. Ou pelo menos entre os mais antigos.
Fora o entra e sai de policiares e agentes durante as investigações, essas pessoas tiveram de prestar depoimentos e lidar com a insistência de jornalistas que trabalhavam na cobertura do fato. Vieram documentários, filme e série sobre o crime, o que novamente mexeu com o cotidiano delas.
Com o passar dos anos, alguns proprietários faleceram ou mudaram-se da rua, o que fez com que pessoas mais jovens assumissem o comando de estabelecimentos que, na época do crime, recebiam vários integrantes da quadrilha como clientes — sem que desconfiassem de nada.
Foi dessa convivência que surgiram evidências importantes sobre o planejamento e a execução da escavação, como os bonés da PS Grama Sintética distribuídos por Paulo Sérgio como souvenirs da loja de fachada recém-inaugurada.
Ou a sauna gay — hoje desativada — que funcionava nos fundos de um estacionamento próximo e recebia esses homens entre seus frequentadores.
Vários desses moradores, ainda hoje, vinte anos depois, temem ser considerados cúmplices ou ajudantes do furto, além do receio de sofrerem perseguições ou represálias.
Com o cigarro preso em um pregador para não sujar as mãos que usa para despachar os clientes, a dona de uma lanchonete comenta: “O Paulo Sérgio era quem vivia aqui bebendo, quando eu tinha um bar na outra esquina. Era normal, tá entendendo? Quer dizer, claro que, na época, ninguém sabia (que ele era mandante do crime). Ele era simpático o suficiente pra não deixar ninguém perceber, então não despertava nossa desconfiança”.
Paulo Sérgio de Souza (nome falso de Jorge Luiz da Silva, conhecido como Mineiro, responsável por registrar a empresa fantasma na Junta Comercial do Ceará), era uma figura popular na vizinhança e não fazia questão de esconder o rosto.
Dizia-se ex-capixaba e ex-engenheiro da Petrobras, fazia refeições nos restaurantes simples da rua e frequentava a sauna masculina.
Descrito como o “bandido mais misterioso da quadrilha”, Paulo Sérgio era o líder do grupo no Ceará. Para abrir a PS Grama Sintética, usou um documento falso em que aparecia de gorro preto.
Curiosamente, a data de nascimento na identidade era 5/8/1968, dia e mês que coincidem com a data em que o bando chegou à caixa-forte do Bacen.
De acordo com as investigações, ele teria sido convidado a participar da megaoperação por ser considerado especialista em cavar túneis, tendo fugido do Complexo Penitenciário do Carandiru usando esse método. Ironicamente, apresentava-se como engenheiro.
A empresa falsa era legalmente registrada, mas usava endereços falsos (um terreno baldio e uma igreja evangélica). Mesmo assim, um anúncio da firma chegou a ser publicado em uma lista telefônica — no início dos anos 2000, ainda era comum divulgar contatos e serviços através dessas publicações.
Essas histórias são totalmente desconhecidas pela jovem Ariele Martins, de 19 anos, que nem era nascida quando tudo aconteceu e diz nunca ter ouvido falar no crime.
Aliás, fica impressionada enquanto vê a gravação da reportagem e descobre detalhes do que houve ali, num imóvel por onde ela passa em frente todos os dias indo para o trabalho.
“E conseguiram prender eles?”, pergunta, curiosa, como quem assiste a um filme. Um rapaz que havia chegado para jogar sinuca e ouvia a conversa conta: “Eu fui preso na mesma época que o Alemão. Só que eu ficava em outra cela, mas a gente sabia que lá no presídio entrava de tudo: droga, remédio… Aí o povo dizia que ele ficava lá na cela se abanando com as notas de 50”.
Se a história do leque de onças é verdade, não se sabe; o que não deixa dúvidas é que esse crime ficou no imaginário popular dos fortalezenses. A poeira do túnel ainda paira no ar.
Após dezenas de prisões, instaurações de processos e julgamentos, o caso seguiu para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu pela condenação, por furto qualificado, formação de quadrilha e uso de documento falso, de vários envolvidos no furto, entre eles os líderes da ação Antônio Jussivan Alves dos Santos, Davi Silvano da Silva, e Moisés Teixeira da Silva.
Cerca de 60 milhões de reais provenientes do furto foram recuperados por meio de apreensão de bens e valores.
Após o episódio de 2005, o Banco Central promoveu uma revisão abrangente de seus protocolos de segurança.
Em nota a esta reportagem, o Bacen informou ao O POVO+ que foi criado um departamento específico para coordenar as ações de segurança institucional, com atuação integrada junto aos órgãos de segurança pública e inteligência.
“As medidas implementadas incluem modernização de sistemas eletrônicos, aprimoramento da gestão de riscos, revisão de processos de seleção de pessoal e capacitação contínua das equipes. O BC mantém processo de melhoria contínua em suas práticas de segurança”, comunicou o Bacen.
3 milhões de onças pintadas: o assalto cinematográfico que chocou o Brasil em 2005 foi planejado com precisão cirúrgica e pelos braços de quatro homens foram retirados exatamente R$ 164.755.150,00 em cédulas de R$ 50 — notas que têm como símbolo o maior felino das Américas.
O número foi divulgado pelo próprio Banco Central do Brasil no dia 12 de agosto, quatro dias após a descoberta do crime, quando o local já havia sido liberado pela Polícia Federal depois de todas as perícias realizadas.
As cédulas estavam em contêineres e haviam sido recolhidas pela rede bancária e para análise do estado de conservação pelo Departamento do Meio Circulante. Após a análise, parte seria encaminhada de volta ao sistema financeiro e parte seria incinerada.
Mas a dimensão do fato impressiona ainda mais quando atualizada: se acontecesse hoje, o valor furtado equivaleria a exatos R$ 577.795.256,62 — mais de meio bilhão de reais, três vezes o valor original.
A conta foi feita com base na Calculadora do Cidadão, ferramenta de correção monetária disponibilizada pelo próprio Banco Central, instituição lesada pelo crime.
O novo cálculo revela não apenas o tamanho do rombo, mas também marca o contraste entre o Brasil de 20 anos atrás e o de hoje — uma época em que o salário mínimo era R$ 300 e o País era governado, como hoje, por Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Por outro lado, corrigido pela inflação, o número atualizado também revela a desvalorização do real ao longo dessas duas décadas: o dinheiro levado perdeu cerca de 71,5% do seu poder de compra nesse período. Em outras palavras: o que se comprava com R$ 1 naquela época, hoje custa mais de R$ 3,50.
Enquanto o País vivia o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Fortaleza vivenciava o início do primeiro mandato da prefeita Luizianne Lins (PT), que sucedia Juraci Magalhães e foi a primeira mulher a comandar o executivo municipal.
"Com menos de um ano no cargo, ela herdava uma cidade em transição: o centro histórico já dava sinais de esvaziamento, com a migração de serviços públicos e o desgaste do comércio tradicional. A movimentação ainda era intensa, mas a vitalidade econômica da região começava a se fragmentar, dando espaço à informalidade e à perda de uso residencial dessa zona."
Quem destaca essas transformações é a arquiteta e urbanista Regina Costa e Silva, da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma).
No Centro, onde o Banco Central repousava entre bulevares pouco vigiados, brechas urbanas refletiam brechas no controle público. O poder municipal ainda buscava reorganizar uma "Fortaleza bela" após uma mudança de governo; a fiscalização urbana era escassa, e a sensação de abandono se misturava à rotina.
Esse cenário de baixa vigilância e desarticulação institucional não passou despercebido por quem sabia explorar o subsolo — literal ou simbólico — das cidades. Aos poucos, a Capital também se tornou terreno fértil para estruturas paralelas de poder.
O furto ao Banco Central, meticulosamente planejado, foi um prenúncio do que viria nos anos seguintes: a consolidação das facções criminosas no Ceará, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), que viu na fragilidade dos centros urbanos e nas falhas do Estado oportunidades para fincar suas raízes.
Esse foi um ponto de investigação importante para a polícia, que logo identificou fortes indícios de envolvimento da organização no financiamento do megafurto. Três indivíduos, os chamados "cabeças", teriam investido cerca de R$ 300 mil nos três meses de escavação.
Àquela altura, Fortaleza já vivia um período de alta criminalidade e violência, com o Ceará ocupando a 16ª posição em número de homicídios entre as capitais brasileiras em 2004.
Vinte anos depois, o Estado é o terceiro com maior presença do PCC e ocupa um papel de destaque na expansão desse e de outros grupos criminosos.
O túnel escavado sob a Dom Manuel pode ser lido não só como uma proeza técnica, mas como um retrato das brechas pelas quais o crime organizado começou a entrar.