Menos de 48 horas após aderir a manifestações antidemocráticas no último 7 de setembro, Jair Bolsonaro (sem partido) baixou o tom do discurso em nota divulgada pelo Planalto. Se dias antes o presidente subia em palanques com ataques e ameaças contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), o que se via na “Declaração à Nação” era um Bolsonaro bem diferente, que destacava nunca ter “tido a intenção” de agredir outros Poderes.
A ameaça de não cumprir decisões do ministro Alexandre de Moraes, feita diante de milhares de pessoas na avenida Paulista, também dava lugar a fala bem distinta, pregando a harmonia entre instituições como “determinação constitucional”. O reajuste de tom, articulado por figuras tão distantes do bolsonarismo “puro” quanto o ex-presidente Michel Temer, foi apenas uma entre várias “guinadas” de opinião do presidente nos últimos dois anos e meio.
Leia o especial Bolsonaro 1.000 dias
Atingindo agora a marca dos mil dias de mandato, Jair Bolsonaro já acumula dezenas de pautas “esquecidas” ou “abandonadas” ao longo do exercício do poder. Por pragmatismo do cargo ou pressão popular, recuos de postura ocorreram entre as mais diversas áreas, desde a conhecida rejeição inicial do presidente a vacinas – que depois virariam peça de propaganda do governo – a posições do governo e seus ministros na esfera internacional. Em metade dos episódios levantados pela reportagem, o Presidente levou 270 dias para retroceder em suas declarações.
A informação tem base em levantamento do O POVO em discursos e declarações públicas de Jair Bolsonaro entre a campanha de 2018 e a marca de mil dias de mandato, atingida em 26 de setembro deste ano. Foi considerado como base o plano de governo do presidente, declarações publicadas em veículos de imprensa e redes sociais, sendo identificados 20 episódios dessa natureza. Esses dados representam apenas uma amostra da infinidade de posicionamentos conflitantes que o presidente tem adotado durante o tempo analisado.
Neste período, até mesmo discursos centrais para o sucesso eleitoral de Bolsonaro, como a pauta anticorrupção ou de rejeição da “velha política”, acabaram minimizados no decorrer do mandato. A mudança fica clara sobretudo na postura do presidente com relação ao bloco do Centrão, que foi de “alta nata de tudo o que não presta no Brasil” durante a campanha de 2018 para o principal pilar de sustentação do governo no Congresso Nacional.
Este episódio faz parte do especial "Bolsonaro 1.000 Dias", que traz reportagens especiais e conteúdos em diversas áreas. Para ler a reportagem de abertura dessa série, é só acessar este link. A programação do projeto, que abordará vários recortes dos dias com Bolsonaro, seguirá até 14 de outubro, antecipadas às terças e sextas no multistreaming O POVO Mais. No impresso, o conteúdo sairá às terças e quintas.
Procurados pelo O POVO, especialistas destacam como recuos de Bolsonaro podem estar relacionados à estratégia do Planalto de manter uma base eleitoral – conservadora e fiel – engajada na defesa do presidente. Como o presidente tem esse segmento mais radicalizado como centro de sua atuação política, explica a cientista Monalisa Soares, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), ele acaba enfrentando desafios na hora de “equilibrar” acenos à base com as imposições da realidade do cargo de presidente.
“Esse é o desafio do presidente, equilibrar esses pratos, ter que fazer um recuo do ponto de vista em que ele acalma os ânimos dos outros Poderes, diminui a temperatura, mas pode também criar insatisfações com a sua própria base”, diz. O cientista político Cleyton Monte, também professor da UFC, reforça a tese. "Faz parte de uma estratégia maior. Ele tem que se equilibrar entre os desafios do governo, conseguir levar o mandato até o fim, mas também manter essa base, embora sejam objetivos completamente diferentes”.
O “dilema” bolsonarista fica claro principalmente nas guinadas de Bolsonaro na área da política internacional. Vencendo a eleição de 2018 sob a promessa de seguir a agenda de Donald Trump nos Estados Unidos, o presidente chegou ao cargo com propostas ousadas para a diplomacia brasileira, como a transferência da embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém e até uma redução de diálogo com o regime socialista da China.
Motivadas por claros acenos ideológicos do presidente à sua base radicalizada, ambas as propostas acabaram, no entanto, soterradas pelo pragmatismo. Parceiros significativos do agronegócio brasileiro, tanto o mundo árabe quanto o governo chinês acabaram impondo recuos ao presidente, que segue até hoje sem cumprir nenhuma das promessas.
“Ele (Bolsonaro) paga um custo muito alto. Ele precisa se impor como ‘mito’, não por atuar de forma eficiente no combate ao coronavírus ou recuperar a economia, garantindo qualidade de vida à população, mas sim ‘combatendo o que está aí’”, avalia o cientista político Felipe Albuquerque, pesquisador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Neste sentido, destaca, o presidente acaba alienando cada vez mais o resto da população.
De acordo com o levantamento, as mudanças de opinião se acumulam principalmente na economia (30%), área especialmente sensível em tempos de crise. Eleito com promessa de um liberalismo radical, sob o comando do “Posto Ipiranga” Paulo Guedes, Bolsonaro acabou voltando diversas vezes às origens de militar intervencionista que manteve ao longo de décadas no Congresso.
A promessa de reduzir a interferência política em estatais, prometida em diversos eixos do plano de governo apresentado por Bolsonaro, deu lugar a episódios como a indicação do general Joaquim Silva e Luna, “amigo pessoal” do presidente, para o comando da Petrobras. Em bancos e outras áreas sensíveis para o mercado, onde o presidente pregava “indicação política zero” na campanha, sobraram indicações do Centrão e outros aliados.
Em 2007, o então presidente Lula (PT) causou polêmica ao defender no Congresso a criação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), pauta que até então sempre tinha sido alvo de protestos da esquerda. Questionado sobre a guinada, o petista disse preferir “ser considerado essa metamorfose ambulante”, em uma das frases mais marcantes de seu governo. Quase dez anos depois e do lado oposto do debate público, Bolsonaro também já reúne sua parcela de “metamorfoses”.
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A seguir dividimos os episódios levantados em três grupos: No primeiro bloco estão as mudanças que levaram maior tempo, no segundo as de médio e no terceiro as de curto prazo. Clique nas imagens para acessar a fonte das informações ou conhecer todos os registros.
Os dados utilizados para o especial "Bolsonaro 1000 dias" são oriundos de bases públicas do Governo Federal , ONGs, institutos de pesquisa, entre outros órgãos ou instituições. Todas as bases de dados utilizadas nesta reportagem e nos demais capítulos a serem publicados podem ser acessadas no perfil do DataDoc no GitHub. Esta é uma forma de garantir a transparência, reprodutibilidade e credibilidade dos métodos utilizados.
Bolsonaro 1.000 Dias é uma série de reportagens, feitas a partir da análise e cruzamento de dados, que descreve os cenários criados pelo bolsonarismo à frente do poder no Brasil.