A Covid-19 chegou ao Brasil oficialmente no 421º dia de mandato do presidente Jair Messias Bolsonaro (sem partido). Era 26 de fevereiro, segundo ano de governo. O vírus encontrou terreno fértil para se alastrar pelo País, que naquele momento acumulava uma série de decisões políticas e econômicas que já vinham fragilizando a assistência aos mais pobres. Como resultado, o governo chegou ao milésimo dia à frente de uma nação com abismo social ainda mais profundo e com quase 600 mil vítimas.
Mas esse número é sabidamente subnotificado. Um dos indícios é o aumento súbito de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) sem causa específica a partir de março de 2020. O quadro de SRAG pode ser causado por influenza e outros vírus respiratórios, incluindo, desde o ano passado, o coronavírus causador da Covid-19. Nos dados do Ministério da Saúde (MS) há uma classificação para quando não há especificação do agente causador da síndrome — campo "CLASSI_FIN" da tabela.
De uma média de 302 mortes por SRAG não especificadas por mês em 2019, o País saltou para uma taxa quase 22 vezes maior após o início da pandemia. A média mensal de óbitos por SRAG não especificados em 2020 ficou em 6.555. Neste ano, entre janeiro e agosto, a média foi de 4.764 mortes por mês.
"E esse movimento acompanha o movimento da vacinação, regredindo o número de casos em 2021. Obviamente não ao estado anterior (a 2020) — e isso confirma mais ainda que realmente são subnotificações", aponta a enfermeira Thereza Maria Magalhães Moreira, pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e professora de Epidemiologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Leia especial Bolsonaro 1.000 dias
Este episódio faz parte do especial "Bolsonaro 1.000 Dias", que traz reportagens especiais e conteúdos em diversas áreas. Para ler a reportagem de abertura dessa série, é só acessar este link. A programação do projeto, que abordará vários recortes dos dias com Bolsonaro, seguirá até 14 de outubro, antecipadas às terças e sextas no multistreaming O POVO Mais. No impresso, o conteúdo sairá às terças e quintas.
Ao contrário do que se chegou a falar no início da pandemia, a Covid-19 não é uma doença "democrática". Ela espalhou-se por todo o mundo e avançou pelo Brasil; mas atingiu com mais força a população já vulnerabilizada.
Ainda nos primeiros meses da pandemia no Ceará, a recepcionista Jéssica Lopes, 28, moradora do bairro São Miguel, na Capital, foi demitida. Com dois filhos — uma menina de 9 anos e um menino de 2 —, logo "veio a questão da necessidade". Ela contou com ajuda, doações de cestas básicas, e é uma das 250 chefes de família assistidas pelo Ser Ponte Fortaleza, projeto que apoia famílias em vulnerabilidade com renda mensal de R$ 180.
Chegou a receber o auxílio emergencial e recebe o Bolsa Família, mas houve dia em que faltou comida em casa. "Muito difícil ficar desempregada", lamenta. Ela relata, ainda, que não teve acesso fácil a máscaras, itens essenciais para a proteção contra a Covid-19, e também precisou de doações.
Em saúde pública, diversos fatores além do agente etiológico — um vírus, uma bactéria ou um protozoário — influenciam o processo saúde-doença. O relatório final da 8ª Conferência Nacional de Saúde define a saúde, no sentido mais abrangente, como "resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde".
A enfermeira e epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), participou de um estudo, no início da pandemia, que constatou a relação entre a desigualdade social e os óbitos por Covid-19 no ES. A pesquisa analisou dados sobre as primeiras 200 vítimas e observou, na época, oito vezes mais óbitos no setor público que no privado.
"Vimos que a desigualdade não é aquele ponto em que a pessoa tem a Covid-19. Ela é fruto de tudo o que a pessoa viveu", aponta a professora, que percebeu que doenças crônicas como diabetes e hipertensão — que podem levar ao agravamento do quadro da Covid-19 — eram mais descompensadas em pacientes atendidos no Sistema Público de Saúde (SUS)."O fato de ela morrer não é porque o sistema público, qualitativamente, é pior na assistência do que o sistema privado."
Especialistas ouvidos pelo O POVO apontam que o Brasil foi atingido pela pandemia em um contexto de desproteção e desmonte de políticas públicas anterior ao atual governo, mas intensificado a partir de 2019. Além disso, criticam medidas adotadas pelo presidente Jair Bolsonaro e a falta de uma coordenação federal para ações de enfrentamento à pandemia.
"É admissível que o País não tenha reagido a tempo ou da forma ideal, porque ninguém estava preparado para essa pandemia. O que é inadmissível é você conseguir fazer pior do que poderia ter feito se tivesse boa vontade", avalia Luís Correia, professor adjunto da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP) e consultor do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).
Para ele, um país que não pensa em diminuir a desigualdade social é "anti-saúde". "As pessoas ficam discutindo se podemos usar medicação A ou B. Isso é irrelevante. O que a gente tem que fazer é uma boa Medicina, que é olhar para o paciente, intubar se ele precisa, dar oxigênio se ele precisa. É isso que tem o grande impacto", afirma.
"... o Brasil nem é igualitário, nem tem um sistema de saúde qualificado. O SUS é um sistema de saúde heroico, mas é um herói trágico, porque é um herói sem condições, destituído das mínimas condições de ser herói, porque é subfinanciado, é subqualificado etc""
Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ligia Bahia aponta que há um debate na literatura científica quando se fala no impacto das desigualdades na Saúde Pública. Não há dúvidas, segundo ela, de que "quanto mais igualdade, mais saúde". Porém, enquanto parte dos autores aponta que apenas a questão da igualdade importa, outros argumentam que o importante é como funciona o sistema de saúde, o acesso a ele e a sua qualidade.
"Digamos que são duas correntes. Seja lá o que for, o Brasil nem é igualitário, nem tem um sistema de saúde qualificado. O SUS é um sistema de saúde heroico, mas é um herói trágico, porque é um herói sem condições, destituído das mínimas condições de ser herói, porque é subfinanciado, é subqualificado etc", afirma a médica.
Luís Correia critica o fato de epidemiologistas e sanitaristas não terem sido convocados pelo Governo Federal para lidar com a pandemia. Ele cita os Estados Unidos, onde o diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, o médico Anthony Fauci, foi chamado ainda no governo de Donald Trump para auxiliar nesse enfrentamento.
"Em política de saúde, nós salvamos milhões de uma vez só, se fazemos uma política certa. Um médico salva um paciente de cada vez, porque ele faz uma prescrição de cada vez. Mas uma atitude política correta salva milhões de uma vez", aponta.
Uma das principais medidas para prevenção da Covid-19, desde o início, foi ficar em casa, sempre que possível, e evitar aglomerações. Assim, as condições de moradia fazem a diferença. A geógrafa cearense Sharon Dias, que pesquisou Covid-19 e habitação, aponta estreita relação entre fatores como a posição do Brasil na geopolítica mundial, o declínio da economia do País, o aumento da inflação, as taxas de desemprego e a fome com a habitação como um determinante para a saúde.
Ela aponta que tem sido observado o declínio nas condições de moradia da população no período pré-pandemia e no atual momento de crise sanitária. Como exemplo, indica a volta dos grandes cortiços nas metrópoles brasileiras e cita o aumento da população em situação de rua. "O que separa muitas famílias entre ter uma habitação adequada e estar em situação de rua é simplesmente a perda da renda por um, dois ou três meses."
Como em outros setores, os problemas não tiveram início com a pandemia. "O que nós vemos é esse aprofundamento de desigualdades sociais, de injustiças urbanas e habitacionais que já existiam no País e, com isso, um grande corte orçamentário. Ao que parece, para nós, pesquisadores, existe uma falta de vontade política de atacar os problemas urbanos e habitacionais da população brasileira", avalia.
O Brasil chegou em 2020 com possível aumento de 59% na quantidade de domicílios localizados em aglomerados subnormais — assentamentos irregulares conhecidos como "favelas", "baixadas", "comunidades" etc — em relação a 2010. No Ceará, segundo projeção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de domicílios nessas condições teria mais do que dobrado entre 2010 e 2019. O crescimento teria sido de 101,2%.
Esses terrenos são caracterizados, entre outros aspectos, por carência de serviços públicos essenciais, segundo o IBGE. “Nessas áreas, residem, em geral, populações com condições socioeconômicas, de saneamento e de moradia mais precárias. Como agravante, muitos Aglomerados Subnormais possuem uma densidade de edificações extremamente elevada, o que pode facilitar a disseminação do Covid-19”, define a instituição.
Os dados de 2010 foram calculados pelo IBGE com base no último Censo. Já os de 2019 foram estimados pelo Instituto de forma preliminar para auxiliar no enfrentamento à pandemia de Covid-19 e podem ser confirmados ou revisados de acordo com o recenseamento, que deveria ter sido realizado em 2020, foi adiado para 2021 e agora está previsto para 2022.
A pandemia também atingiu o Brasil em um contexto em que a fome já vinha aumentando. Essa realidade já era percebida em 2017/2018, com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, mas a situação piorou de lá para cá. Entre 2018 e 2020, quase 9 milhões de pessoas passaram a conviver com ela no País, segundo mostra o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.
A fome, então, passou a atingir 19,1 milhões de brasileiros, o equivalente a 9% da população. Assim, o País voltou ao patamar de 2004, quando a taxa era de 9,5%, segundo o levantamento. Francisco Menezes, analista de Políticas e Programas da ActionAid, elenca cinco pontos que já vinham construindo condições para o aumento da fome no País: desmonte de políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional, crescimento da extrema pobreza, desestruturação institucional, política "anti-ambiental" e aumento do preço dos alimentos.
"O maior mal que esse País vive é a desigualdade. Essa, eu diria, é a crise-mãe. E a única forma de resolver os problemas da insegurança alimentar, da falta de proteção das populações mais vulneráveis, é através de um novo modelo econômico."
"O teto de gastos tinha uma responsabilidade, mas já existia um desmonte também, (com) programas que foram encerrados. E isso se acelerou bastante com o governo atual. Ao lado disso, tivemos a reforma trabalhista e todo esse estímulo para a terceirização. Costumamos afirmar muito que foram feitas escolhas. Poderiam ter sido feitas outras", comenta Menezes, que foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) entre 2004 e 2007.
O economista Nilson de Paula, professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro da coordenação executiva da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, destaca que não foi a pandemia que trouxe essa problemática para o País.
"O maior mal que esse País vive é a desigualdade. Essa, eu diria, é a crise-mãe. E a única forma de resolver os problemas da insegurança alimentar, da falta de proteção das populações mais vulneráveis, é através de um novo modelo econômico”, finaliza.
Uma das críticas comuns à atuação do Governo Federal frente à Covid-19 é em relação à falta de uma coordenação federal das medidas de enfrentamento à pandemia. A questão voltou a ficar latente quando o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, recomendou que a vacinação de adolescentes sem comorbidades fosse suspensa, em 16 de setembro, sem consultar especialistas ou dialogar com os demais entes da federação.
Como resultado, estados e municípios divergiram sobre seguir ou não a diretriz — que foi modificada posteriormente. Mas a falta de sincronia vem desde a chegada da Covid-19. "Começamos a ter 27 formas diferentes de combater a pandemia e propor medidas. É uma coisa que nunca tínhamos vivenciado", pontua Ethel Maciel.
Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Medida Provisória nº 926, que concentrava no Governo Federal as decisões quanto a isolamento, quarentena e restrição de locomoção, decidiu que estados e municípios tinham autonomia para adotar medidas locais de enfrentamento à Covid-19.
Ao contrário do que o próprio presidente já afirmou, a Suprema Corte não retirou a responsabilidade de a União agir. Os ministros destacaram a competência concorrente, em termos de saúde, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
"Os estados tiveram que se protagonizar nesse momento, e acho que o Nordeste se destacou, em termos de se organizar tecnicamente e politicamente, de fazer alguns tipos de enfrentamento. Em um momento em que se precisava de um apoio, de uma sustentação, de unificação, houve muitos conflitos desnecessários", aponta Carmem Leitão Araújo, professora do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A coordenadora do Observatório de Políticas Públicas de Saúde da UFC cita o slogan "menos Brasília, mais Brasil", utilizado desde a campanha eleitoral pelo presidente Jair Bolsonaro. Para ela, essa ideia traria uma desresponsabilização, por parte do Governo Federal, por algumas ações. "E isso fica muito claro na pandemia", afirma.
Professora da UFRJ, Ligia Bahia afirma que o Governo Federal cometeu "erros crassos e letais". A docente refere-se a três "degraus" para se controlar uma pandemia — em todos, segundo ela, o Brasil falhou.
O primeiro seria evitar o contato entre as pessoas para evitar a transmissão. O segundo, criar uma estratégia de testagem acompanhada de auxílio emergencial para quem precisasse fazer auto-isolamento. E o terceiro, ampliar leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) na rede pública e utilizar leitos privados sob regulação do SUS — a denominada "fila única".
"Fomos errando, errando, errando e, atualmente, nas vacinas, continuamos errando, porque são exatamente as populações mais vulneráveis, sob todos os aspectos, que estão mais longe das vacinas. O calendário vacinal é ultra desfavorável", argumenta.
Entre as medidas que poderiam ter sido adotadas, segundo Ethel Maciel, estão a distribuição de máscaras N95 ou PFF2 gratuitamente pelo SUS e a distribuição de oxímetros de dedo em regime de comodato, um tipo de empréstimo já realizado na rede pública.
A epidemiologista aponta que "a única estratégia" de estados foi abrir leitos de UTI, destacando a complexidade e a responsabilidade dessa ação, assim como a limitação da quantidade de profissionais capacitados para atuar nos postos de trabalho.
"As primeiras pesquisas já mostravam que pessoas, por exemplo, com diabetes ou hipertensão descontrolada, com outras doenças inflamatórias, tinham maior gravidade. A Atenção Primária teria que ir atrás dessas pessoas que não estavam indo às unidades, que estavam há algum tempo sem pegar medicamento e sem fazer consulta. Essas pessoas eram aquelas que iam agravar", avalia Ethel.
Por outro lado, Carmem Leitão Araújo afirma que a abertura de leitos no Ceará foi importante para a descentralização desses equipamentos. De acordo com ela, existe historicamente uma concentração dos leitos no setor privado, na região Sudeste e nas capitais dos estados.
Para os próximos meses, a professora da UFC aponta que existe um grande desafio. "Você continua em crise, o cenário é incerto e ainda não há uma composição, uma coalisão política e social que garanta pelo menos alguma perspectiva de retomada de algum tipo de agenda de redução de desigualdades. Então, a situação ainda é muito obscura sobre o que vai acontecer na dimensão da macropolítica."
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Bolsonaro 1.000 Dias é uma série de reportagens, feitas a partir da análise e cruzamento de dados, que descreve os cenários criados pelo bolsonarismo à frente do poder no Brasil.