Era início de 1932. A seca se intensificava nos cerca de 10 meses sem inverno no Sertão Central cearense. As linhas ferroviárias da Rede de Viação Cearense faziam parte do desenvolvimento comercial e industrial da
O local é o único dos campos de concentração cearenses cujas ruínas permanecem de pé, no aguardo de tombamento estadual. A Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) prevê que o processo seja concluído “até o final do primeiro semestre deste ano”. Já professores do campus de Quixadá do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), que participam dos estudos na poligonal, e a Prefeitura de Senador Pompeu afirmam que o prazo acordado é 31 de março.
“Toda a área tem 16 edificações de diferentes portes e em diferentes estados de preservação. Não foram feitas para ser um campo de concentração e, sim, ponto de apoio aos trabalhadores que iriam construir a barragem do Açude do Patu”, aponta o arquiteto e urbanista Rérisson Máximo, professor do IFCE. “Como passaram uma década desocupadas, quando veio a seca, foi um local propício para alocar os retirantes. Inclusive pela proximidade com a linha férrea.” Ele explica que levantamento arquitetônico e topográfico está sendo feito por equipe técnica do IFCE, em cooperação com a Secult.
Valdecy Alves, advogado, pesquisador e ativista social, afirma que a demanda pelo reconhecimento do local como patrimônio da cultura e da história cearenses começou ainda em 1995. “Um grupo de universitários e artistas, que se denominou Equipe Cultural 19-22, fez o primeiro levantamento histórico do Campo do Patu e abriu um processo coletivo pedindo o tombamento”, lembra. “Não é um fim em si mesmo, mas um meio para que todos os campos sejam lembrados; para que a gente aprenda com nossa história. Os campos ainda estão vivos nas periferias, no racismo estrutural… E Fortaleza é filha dos campos, dos retirantes que vieram para cá e construíram a cidade.”
No Patu, segundo matéria publicada pelo O POVO em 30 de junho de 1932, estiveram concentrados 16.221 retirantes. É como se, considerando a população atual do município, seis a cada dez senadorenses tivessem de viver nos prédios não terminados e nos abarracamentos. Ou então, conforme estatísticas da Prefeitura de Fortaleza, como se todos os moradores da Paupina não pudessem sair do bairro e dependessem de pequenas quantidades de alimento (muitas vezes de baixa qualidade ou estragado) distribuídas por uma inspetoria. A família de Joaquim Barbosa, de 101 anos, estava entre os flagelados da seca.
"Os campos de concentração ainda estão vivos nas periferias, no racismo estrutural… E Fortaleza é filha dos campos, dos retirantes que vieram para cá e construíram a cidade."
A professora Maria Jardenia Alves Lima é uma das netas de Seu Joaquim. Ela lembra que, ainda criança, sentava no alpendre ao final da tarde para ouvir as experiências de vida de nossos pais e avós. “Entre os assuntos, as dificuldades já enfrentadas na vida sempre eram passadas como uma lição. Meu avô nos relatava como ele e sua família tinham sobrevivido durante a seca de 1932”, conta. “Naqueles relatos era claro que a dor, o sofrimento e a triste lembrança daquela fase ainda o acompanhavam fortemente. Não pode ser de forma alguma deixado de lado; é sentir viva a história de minha família, minhas raízes; é a memória local de um povo, manter viva a memória desse povo.”
Para Agna Ruth Martins, diretora da Cultura de Senador Pompeu, o tombamento tem ainda outra importância: trará apoio financeiros e meios para garantir a preservação e o uso adequado da área. “Com o tombamento municipal de 2019 conseguimos algum avanço. Mas, precisamos de parcerias. Toda a área da Cultura do município tem cerca de R$ 30 mil (de recursos) por ano. Para ter uma ideia, só para restaurar parte do casarão da Inspetoria, tem a projeção de precisar de R$ 200 mil”, expõe.
Segundo a diretora, a Prefeitura de Senador Pompeu tem realizado ações de conscientização, educação patrimonial e registro de moradores que habitam a poligonal do Campo do Patu. Além disso, duas vezes ao ano os arredores dos casarões são limpos e um plano de intervenção e urbanização está sendo elaborado. Simultaneamente, a Secult afirma estar na fase de instrução processual do tombamento, consolidando os dados levantados e aguardando novas estatísticas dos colaboradores do projeto.
Aos 101 anos, Joaquim Barbosa vivia tranquilo com filhos, netos e bisnetos na localidade de São Mateus, a 30 km de Senador Pompeu. A longevidade e o bom humor guardaram memórias de experiência vividas ainda criança, quando esteve com a família em dois campos de concentração durante a Seca de 1932.
O POVO entrevistou Seu Joaquim no dia 18 de fevereiro de 2022. Onze dias depois, no último 1º de março, o agricultor faleceu vítima de um acidente vascular cerebral (AVC). Foi a última entrevista do provavelmente último sobrevivente de campos de concentração no Ceará.
O POVO - Em 1932, Senador Pompeu foi uma das cidades para onde os retirantes do Sertão Central buscavam apoio. Como a sua família chegou até lá?
Joaquim Barbosa - A situação da seca foi meio trabalhosa… Foi o sofrimento maior do mundo que existiu. Nessa época, a gente morava em Pedra Branca (município vizinho a Senador Pompeu); a pé e em costa de jumento, a gente foi para Senador Pompeu. Meu pai, minha mãe, eu e três irmãos — o mais velho tinha uns 14 anos. Quando chegou a Senador, onde tinha para escapar da seca era a barragem do Patu. O pessoal todo estava indo para lá.
O POVO - Por quê?
Joaquim - Porque lá era onde estava tendo alguma coisa. Tinha de tudo, mas não era favorável.
O POVO - O que o senhor lembra desse tempo no Patu?
Joaquim - Era tanta gente que eu nem sei como escapou alguém. A casa lá era um pé de pau desse assim e o cabra se botava debaixo, não tinha sombra, não tinha nada. O fornecimento era uma migalha pro pessoal comer… Para uma casa de seis pessoas, eles davam a banda de uma cabeça de boi para fazer a refeição do dia. Meu pai cortava bem picadinha e fazia um caldo grosso com farinha.
Um tempo depois, as pessoas começaram a adoecer e a morrer. Eu lembro que quando estavam fazendo enterro eu ia lá ver; eram umas valas grandes e só fechava quando estavam cheias de gente. Então eles pegaram e fizeram uma embarcação de gente para Fortaleza. Deram passagem para a gente e a gente foi. Foi aí que a gente chegou no Urubu.
"Eu lembro que quando estavam fazendo enterro eu ia lá ver; eram umas valas grandes e só fechava quando estavam cheias de gente"
O POVO - O campo de concentração do Urubu?
Joaquim - Isso. Tinha lá umas 20 tarefas de terra cercadas com arame e o pessoal entrava ali praquele curral. Lá o sofrimento foi maior, porque pelo menos em Senador a gente era liberto e no Urubu não. Batia a porteira e pronto; como quem prende um bocado de gado. Tinha liberação uma vez por mês para os mais velhos irem para o hospital de Fortaleza. Ficamos lá uns dois ou três meses.
Foi o tempo que passaram para tirar o pessoal para trabalhar numa estrada de rodagem. Trabalhamos uns dias lá, três a quatro meses; quando foi em janeiro de novo, tornou a voltar para o Urubu. De lá deram passagem para a gente voltar pro Interior. Por sorte, eu escapei desse sofrimento e Deus me deu essa memória boa para poder contar a história.
O POVO - Já se vai mais de um século de vida, né, Seu Joaquim? Como o senhor se sente com isso?
Joaquim - Eu vou dizendo para todo mundo que não sei pagar o milagre que Deus me fez. Ele vai me dando 102 anos de vida, seis filhos todos criados com o trabalho na terra e os netos, que alguns até já pegaram instrução maior que a nossa. Tive muitas alegrias, mas a maior foi quando disseram “completou os 100 anos”. Para mim, eu nasci de novo. Não há nada melhor que a vida da gente; ter vida é a melhor coisa do mundo.
O POVO - E com tanta vida, o que o senhor tem vontade fazer?
Joaquim - O que fiz muito e ainda gosto de fazer é andar. Por mim, a minha convivência era só andando no mundo, passeando, brincando, divertindo. Por mim, era assim até o dia que eu ainda tiver memória; quando não tiver mais, Deus pode levar.
A cada segundo domingo de novembro, quando o dia começa a clarear, uma multidão se forma diante da Paróquia Nossa Senhora das Dores, no Centro de Senador Pompeu. Devotos dos que morreram de fome, de sede e de cólera, senadorenses e turistas percorrem cerca de 4 quilômetros entoando cânticos e orações até o cemitério ao lado do Açude Patu.
O momento aglutina os atos de fé e as promessas que são cumpridas há pelo menos 40 anos. “Hoje tem um muro e uma capela, mas o local é apontado desde o fim do campo pelos sobreviventes como onde os mortos eram enterrados em valas coletivas”, explica o historiador Aterlane Martins. O total de falecidos não é certo; uns cravam 1.637, outros estimam de 4 mil a 10 mil óbitos. “A data foi determinada pela proximidade com o Dia de Finados, mas todos os dias as pessoas vêm até aqui acender velas e deixar suas oferendas; geralmente, água e pão ou biscoito”, completa o professor do IFCE.
Marta Sousa, coordenadora do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antônio Conselheiro, conta que a romaria foi criada em 1982 pelo padre Albino Donatti. “Ao chegar aqui em 1980, já encontrou a devoção. Então, buscou resgatar essa história com alguns sobreviventes e convidou os paroquianos para realizar a caminhada todos os anos”, lembra. “Costumamos dizer que Juazeiro (do Norte) tem o Padre Cícero; Canindé tem São Francisco; e nós temos um santo coletivo: as Santas Almas da Barragem do Patu.”
Marta conta ainda que, a cada ano, a caminhada se adere a algum tema ligado ao momento político, como a luta por direitos e o acesso à terra e à água. Nas últimas edições, a ênfase é dada à convivência com o semiárido e às práticas agroecológicas. Para ela, trata-se de uma forma de lutar para que o semiárido seja visto como um lugar de vida e com potencialidades a partir dos recursos naturais. A preservação da história e da memória é outro papel assumido pela procissão. “São, sem dúvidas, as caminhadas que têm mantido viva a nossa história sobre o campo de concentração”, conclui a pedagoga, que nasceu e cresceu em Senador Pompeu.
Em 2021, após a aprovação de um projeto de lei apresentado pelo deputado Acrísio Sena (PT), a Caminhada da Seca entrou para o roteiro turístico, religioso e cultural do Ceará. A demanda agora é que se torne patrimônio imaterial da cultura cearense. A Coordenação de Patrimônio da Secretaria da Cultura do Estado (Secult) está elaborando o parecer de avaliação de pertinência do processo de registro. Conforme a Pasta, a conclusão está prevista para o segundo semestre deste ano.
Na seca de 1877, os abarracamentos estiveram por toda a Fortaleza, concentrando os retirantes. A existência deles deu origem à ideia dos campos de concentração no Ceará. O primeiro deles foi criado pelo coronel Benjamin Liberato Barroso, interventor federal no Estado, durante a seca de 1915: o Campo do Alagadiço, no atual bairro São Gerardo
O projeto do Açude do Patu foi concluído em 1919 e as escavações foram iniciadas dois anos depois, com os trabalhos da empresa Dwight P. Robinson & Co. Mais dois anos e as obras foram interrompidas. Só vieram a ser retomadas em 1984, com inauguração em 1989, pelo então presidente da República José Sarney e o governador do Ceará Tasso Jereissati
A área que contempla o campo do Patu pertence a União, estando sob a administração do Departamento Nacional de Obras Contra às Secas (Dnocs). Consultado pelo O POVO sobre suas responsabilidades e sobre seu posicionamento em relação ao tombamento da área e de suas edificações, o Dnocs não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Episódio 2 - Na quarta-feira, 23/3, a série sobre os campos de concentração no Ceará vai contar a história pelas páginas do O POVO