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Campos de concentração no Ceará: a história contada nas páginas do O POVO
Reportagem Seriada

Campos de concentração no Ceará: a história contada nas páginas do O POVO

Em mais de oito décadas de cobertura, O POVO noticiou a chegada de retirantes a Fortaleza, esteve nos campos de concentração e conta a saga da demanda por tombamento do patrimônio histórico-cultural cearense
Episódio 2

Campos de concentração no Ceará: a história contada nas páginas do O POVO

Em mais de oito décadas de cobertura, O POVO noticiou a chegada de retirantes a Fortaleza, esteve nos campos de concentração e conta a saga da demanda por tombamento do patrimônio histórico-cultural cearense
Episódio 2
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“Foram-se as últimas reservas de água”, “os pastos desapareceram por completo e o gado está morrendo” e “não há trabalhos à altura das necessidades urgentíssimas das populações flageladas”. Assim O POVO registrava os primeiros dias de 1932 e o início de uma das piores secas vividas pelos cearenses. Em 7 de janeiro daquele ano, o jornal começava a cobrir a realidade que surgia em “dez meses de verão depois das minguadas chuvas de abril de 1931”.

Quatro dias depois, enviado especial não identificado foi de Fortaleza a Senador Pompeu e daquele município até o Sertão dos Inhamuns "Microrregião entre o centro sul e o sudoeste do Ceará, que compreende os municípios de Aiuaba, Arneiroz, Catarina, Parambu, Quiterianópolis, Saboeiro e Tauá" . O cenário era de “fome e miséria na mais alta escala”. “Repetem-se, aterradores. os quadros dolorosos e as cenas cruciantes do flagelo. As caravanas famintas palmilham as estradas. E as árvores descarnadas erguem os galhos para os céus, num protesto mudo e sinistro contra a natureza inclemente…”.

Já em 30 de março, a preocupação se volta à presença dos retirantes em Fortaleza. Em busca de sobrevivência, famílias saíam do Interior para a Capital. É cada vez mais notável o incômodo das elites com aqueles agrupamentos que povoam as ruas da Cidade em pleno desenvolvimento. A capa da edição deste dia traz uma matéria sob o título “Fortaleza invadida pelos retirantes - Um apêlo ao governo”.

 

"Julgaríamos necessário que a Interventoria estudasse um meio de localizar essas famílias e dar-lhes humana assistência, em tão profunda miserabilidade. Ou isto ou passagens para o sul ou norte. O que não é possível é continuarem tantas famílias ao desalento, nas ruas de Fortaleza, sofrendo a humilhação coletiva de pedir com que matem a fome de homens válidos, suas esposas, seus filhos e seus maiores" O POVO, 30 de março de 1932

 

Nas semanas seguintes, notícias sobre invasões de trens e assaltos a cargas são presença garantida nas páginas do O POVO. Foram necessários trens específicos para transportar a multidão que desejava saciar a sede e a fome. Os saques de cargas de alimentos e os desvios dos suprimentos federais são notados em reclamações de comerciantes do Interior.

Em 11 de abril, o governador coloca o Ceará em estado de calamidade pública e, em reunião no Palácio do Governo, “ficou decidido que os flagelados serão localizados nas praias de Pirambu”. “O local escolhido fica na praia não muito próximo do mar, na confrontação mais ou menos dos oficiais da RVC em Urubu”, detalha a matéria. “O barracão cuja construção foi iniciada no sábado último fica nas proximidades de um grande poço de água doce conhecido pela denominação de Lagoa do Mel.” Estava posto um dos campos de concentração da Capital; outro foi instalado próximo à estação ferroviária Otávio Bonfim.

Ainda neste mês, repórteres vão pelo menos duas vezes aos campos de concentração de Fortaleza. O relato feito na reportagem de 26 de abril faz notar as condições de disponibilidade de água e banheiros, a situação de saúde e de alimentação, indica o registro de quatro óbitos e aponta serviços de assistência social e de assistência religiosa.

Ao fim, aponta a situação de uma mulher que não recebeu sua quantia de arroz porque o guarda responsável pela distribuição alegou que ela estava lá pela segunda vez. Expõe ainda a situação de três homens com febre que foram impedidos de armar redes e dormiram no chão. “Eis porque não podemos calar a má impressão que nos deram os casos concretos de má vontade e crueza de sentimentos que verificamos em Pirambu e para os quais pedimos providências ao sr. Tenente Júlio Veras ou a quem de direito”, termina.

Já é 30 de junho quando O POVO faz notar o tamanho dos campos dispostos em seis municípios do Ceará:

 

"Com pouco mais de um mês de funcionamento, os Campos de Concentração apresentavam uma inesperada quantidade de sertanejos. Conforme as estatísticas oficiais, os dados eram os seguintes: 6.507 em Ipu, 1.800 em Fortaleza, 4.542 em Quixeramobim, 16.221 em Senador Pompeu, 28.648 em Cariús e 16.200 em Buriti, perfazendo um total de 73.918 flagelados" O POVO, 30 de junho de 1932

 

 

Reportagem especial traz à tona o Campo do Patu

Pesquisa do O POVO DataDoc, a unidade de geração de conteúdo e preservação da informação do O POVO, não encontrou registros sobre a desativação dos “currais do governo” em 1933. Nova menção a este triste capítulo da história cearense reaparece mais de 60 anos depois.

Em 3 de junho de 1996, O POVO traz reportagem especial da jornalista Ariadne Araújo com quatro páginas contando a história do Campo do Patu. Aborda também a demanda popular pela preservação do local e os pontos de vista de pessoas que moravam nas casas da Vila dos Ingleses.

Entre eles estava a aposentada Alaíde Bezerra da Silva, 60, que morava sozinha em um dos casarões. “ Ela guarda, junto ao retrato dos antepassados que trabalharam para a construção do conjunto arquitetônico, os recibos de pagamento de mais de 20 anos de taxa de ocupação. Para Alaíde, morar no velho casarão é ocupar o que é seu de direito. Todos os anos ela renova no escritório do Dnocs o contrato de moradia e paga uma taxa mensal de R$ 2,51”, conta a repórter.

Outro entrevistado, o agricultor Mauro Antonio de Moraes, aos 83 anos, contava que sua família foi uma das primeiras a se concentrar para receber o socorro do Governo Federal. “Quando a cólera rebentou, ele foi recrutado para cavar as valas e enterrar os mortos que se multiplicavam de manhã”, relata.

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Após reportagem do dia anterior, O POVO noticia que nem o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs), dono da área, nem o Departamento de Patrimônio da Secretaria de Cultura do Estado (Secult) sabiam da “importância da barragem Patu e da Vila construída pelos ingleses para a história da região Sertão Central e até do Ceará”. “Agora, o Patrimônio Histórico do Estado vai iniciar o processo de tombamento da barragem e do conjunto arquitetônico”, completa o texto.

A jornalista Ariadne Araújo volta a Senador Pompeu em 11 de novembro de 1996, desta vez para acompanhar a Caminhada da Seca. Entre os romeiros estava o sobrevivente Zacarias Benevides, que “chegou à Vila dos Ingleses em 1932 com apenas 12 anos de idade. Junto com ele, mais cinco irmãos, pai e mãe”.

A reportagem conta ainda sobre os outros campos de concentração cearenses: “O Passeio Público abrigou mais de três mil pessoas na primeira experiência de campo de concentração em Fortaleza, em 1915. Dezessete anos depois, em 1932, pelo menos sete campos haviam sido criados em todo o Ceará”.

Ariadne Araujo(Foto: opovo)
Foto: opovo Ariadne Araujo

Na época, a repórter estava iniciando na redação do O POVO e a cobertura sobre o Campo do Patu foi sua primeira grande reportagem. Atualmente, Ariadne é colunista do OP+ e conta como foi a experiência:

O POVO - Como você chegou, em 1996, à história do campo de concentração do Patu?

Ariadne Araújo - A história da barragem do Patu e dos casarões da Vila dos Ingleses chegou-me através de uma conversa com um dos, na época, estudantes de história do grupo cultural 19-22. Eles lutavam pelo tombamento do conjunto arquitetônico. Em passagem pela cidade, em uma reportagem pelo O POVO, fui abordada por Adriano Bezerra, que me resumiu brevemente a história dos casarões. Ficamos de nos falar depois por telefone.

Dias depois, um outro integrante do grupo 19-22, o advogado Valdecy Alves telefonou-me e começamos a saber com mais detalhes a história. Impactada pela importância do fato e pelo silêncio sobre o assunto, mesmo desconhecimento geral, organizei com a direção da redação minha viagem para Senador Pompeu.

O POVO - Durante sua apuração, você viajou a Senador Pompeu. Qual cenário encontrou por lá? Em que situação estavam os casarões e como a população recebeu a equipe de reportagem?

Ariadne - No local, visitando os casarões, na companhia dos estudantes do grupo 19-22, a surpresa foi ainda maior ao descobrir que pessoas ainda viviam nestas casas abandonadas pelo tempo e pelo poder publico. Um cenário digno de filme, eu diria. Uma cidade-fantasma e seus poucos habitantes que, não tendo mais para onde ir, acabaram ficando. Todos testemunhas de partes desta história.

O mato tomava conta do lugar. Alguns muros e paredes ameaçavam cair e ruínas de casarões impressionavam pelo estilo e tamanho. E, em alguns destes prédios, em meio a alpendres e colunas, estas vidas sertanejas, também elas abandonadas, que resistiam ao tempo e à decadência do lugar.

Não eram muitos os moradores da Vila dos Ingleses. Mas, dentro daquelas paredes, os poucos que encontramos resistiam a duras penas, mantendo viva a memória do lugar. Conversas emocionantes se desenrolaram ali, em meio ao abandono das casas, dos galpões, de uma velha estação de trem, das antigas ruazinhas.

Acredito que, para eles, foi importante contarem suas histórias nas páginas do jornal, maneira de não as deixar perderem-se na memória dos mais idosos, de uma permanência e de um resgate de parte da história e do patrimônio cultural de Senador Pompeu.

O POVO - Além do campo em si, naquele mesmo ano você contou a história da Caminhada da Seca. O que lembra desse momento?

Ariadne - A partir desta primeira reportagem, mantive contato amiúde com o grupo cultural 19-22. E, desta forma, voltei a Senador Pompeu meses depois para acompanhar a romaria anual para lembrar e honrar os mortos no local, durante a seca de 1932. Um percurso de 3 quilômetros, que saía da Igreja Matriz de Senador Pompeu até um pequeno cemitério, na barragem do Patu. Muitos dos participantes da procissão tinham ali enterrados parentes vítimas de cólera, de fome ou assassinados na seca de 32.

Na missa, no cemitério, o padre da Matriz, o italiano João Paulo Giovanazzi, trouxe depoimentos de quem não pôde participar da procissão e outros presentes contaram as histórias de suas famílias e parentes. Foi muito emocionante.

Depois destas reportagens, o cenário que liga a história da barragem do Patu, da Vila dos Ingleses e da seca de 32 ganhou cara e voz. Houve muita repercussão na época e interesse de outras mídias.

O POVO - Por fim, o que mais te chamou atenção nessa cobertura?

Ariadne - O que mais me marcou é que, nos anos 1990, uma história dessa importância ainda estivesse longe do conhecimento público. Mesmo o Dnocs, a quem pertencia legalmente o sítio, não tinha conhecimento do uso da Vila dos Ingleses como “campo de concentração” de retirantes, na seca de 32. Não fosse a persistência de um grupo de jovens estudantes, o assunto teria permanecido por mais tempo no esquecimento.

 

 

Repercussões nos anos seguintes

Com o trabalho de pesquisa histórica feito pelo Grupo 19-22 e uma Super VHS nas mãos, Flávio Alves colocou em prática o projeto Cerca Seca. A ideia inicial da Companhia de Arte e Cultura de Senador Pompeu era produzir um documentário sobre os horrores vividos às margens do Açude do Patu em 1932.

Acabou se tornando um longa metragem feito com uma câmera, um tripé, um rebatedor de luz improvisado, suportes de cortina reconstituindo os trilhos do trem, 230 figurante amadores pagos com uma cesta básica e uns "filtros para a lente da câmera — presente de um repórter da Globo que esteve em Senador Pompeu ano passado para conhecer a dita história do campo de concentração que foi ao ar no Fantástico". A história do filme foi contada pela repórter Janaina de Paula em 20 de dezembro de 1997 nas páginas do caderno Vida & Arte.

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Dois anos mais tarde, a repórter Ariadne Araújo volta a Senador Pompeu. Desta vez, o fato é a visita de Carlos Moura, advogado da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, do Ministério da Justiça. Ele tinha a missão de levantar dados sobre a Seca de 32 e o Campo da Patu. Novamente O POVO conta a história dos campos de concentração cearenses e traz relatos de mais moradores da região. Dividem com os leitores o que viram e ouviram sobre "os ossos dos mortos estalando com o peso e a pancada das predas" nas valas comuns, "uma febre que matava bem ligeirinho" e "um feijão que passava o dia no fogo e não amolecia", como contou Mauro Antônio de Moraes, com 86 anos na virada do milênio.

Até agora, a última vez em que as histórias do Patu chegaram às páginas do O POVO foi em 26 de abril de 2011. A Justiça Federal no Ceará havia condenado a Prefeitura de Senador Pompeu a adotar medidas de “proteção, promoção e preservação do patrimônio histórico-cultural” da barragem. Havia o prazo de 60 dias para que a Prefeitura iniciasse ações de vigilância e tombamento do acervo, sob pena de pagamento de multa. E, agora, retomamos a pauta nesta série que você acompanha.

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