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Campos de concentração em Fortaleza: marcas da segregação na Seca de 1932
Reportagem Seriada

Campos de concentração em Fortaleza: marcas da segregação na Seca de 1932

No terceiro episódio desta reportagem especial, O POVO percorreu os locais onde os retirantes foram mantidos naquele ano. Modernização, higienismo social e apagamento da história marcam esse momento da Capital
Episódio 3

Campos de concentração em Fortaleza: marcas da segregação na Seca de 1932

No terceiro episódio desta reportagem especial, O POVO percorreu os locais onde os retirantes foram mantidos naquele ano. Modernização, higienismo social e apagamento da história marcam esse momento da Capital
Episódio 3
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É início de 2022. Fortaleza fecha o mês de março mais chuvoso desde 1973. O céu nublado, “bonito para chover”’, começa a perturbar quem deseja secar as roupas lavadas, sair sem preocupar com vias alagadas ou mesmo dormir com a tranquilidade de que a casa está protegida. O cenário é muito diferente daquele que se desenhou na mesma Capital há 90 anos.

Na Seca de 1932, uma das mais marcantes da história, milhares de retirantes chegavam a Fortaleza em busca das condições para uma existência minimamente digna — teto, água, comida. Encontraram, no lugar, a lógica excludente da modernização e do higienismo social. Alguns conseguiram estadia com familiares ou em pensões, mas grande parte foi destinada aos campos de concentração do Otávio Bonfim e do Urubu. Segundo registros da época, com pouco mais de um mês de funcionamento, 1.800 “flagelados” estavam nos campos de Fortaleza, além de outros milhares nos outros cinco "currais do governo" em Cariús, Crato, Ipu, Quixeramobim e Senador Pompeu — este, o do Patu, único cujas ruínas permanecem de pé, à espera de tomamento estadual.

“A ideia de concentração, de afastamento, de classificação, de controle é uma ideia que não é nossa; é uma ideia inerente ao processo capitalista. O campo de concentração vai ter esses aspectos e também uma relação com uma estrutura mental de segregação”, aponta o historiador Antônio de Pádua Santiago, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece). “É uma lógica mundial e que está relacionada ao processo de desigualdade.”

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Pádua enfatiza que esses locais de segregação e disciplinamento vêm de antes da Segunda Guerra Mundial — a percepção do tempo "campo de concentração está ligada ao nazismo, onde judeus e outros povos eram encarcerados e executados em tais espaços — e coexistiam com “relações não muito morais ou éticas”. Na capital alencarina, o projeto dos campos foi efetivado de modo conflitivo. A violência física, torturas e humilhações, era constante. Suborno e sedução entre policiais e flagelados também; fosse em troca de dinheiro, fosse pela permissão de sair para as ruas da Capital.

Pouco antes da morte em 1º de março, aos 101 anos, seu Joaquim Barbosa, que sobreviveu aos campos do Patu e do Urubu, ilustrou o cenário na Capital. "Tinha lá umas 20 tarefas de terra cercadas com arame e o pessoal entrava ali praquele curral. Lá o sofrimento foi maior, porque pelo menos em Senador (Pompeu) a gente era liberto e no Urubu não. Batia a porteira e pronto; como quem prende um bocado de gado".

 


 

 

Em meio a avenidas, a história de Fortaleza

Em Fortaleza, como na maioria das cidades do Interior, os campos não tiveram estruturas de alvenaria e pouco depois foram substituídos por ruas, casas e estabelecimentos comerciais. Daí o Patu ser o único de pé. A ausência de vestígios físicos joga no esquecimento os meses em que, por iniciativa do governo, retirantes eram concentrados em terrenos cercados.

Demarcado pela estação de trem Otávio Bonfim, o campo de mesmo nome também ficou conhecido como Campo do Matadouro devido à proximidade com o abatedouro de gado. A escritora Rachel de Queiroz (1910–2003), no romance "O Quinze", descreve o espaço como um curral com uma infinidade de gente:

 

"No mesmo atordoamento chegaram à Estação do Matadouro. E, sem saber como, acharam-se empolgados pela onda que descia, e se viram levados através da praça de areia, e andaram por um calçamento pedregoso, e foram jogados a um curral de arame onde uma infinidade de gente se mexia, falando, gritando, acendendo fogo. Só aos poucos se repuseram e se foram orientando" Rachel de Queiroz, em O Quinze. Trecho relata a chegada de retirantes ao campo de concentração

 

“Até recentemente aqui tinha a estação. Derrubaram e fizeram a avenida José Jatahy”, aponta Valdecy Alves, advogado, pesquisador e ativista social. Em 2015, Alves pediu ao Ministério Público do Ceará que a estação, já em ruínas, fosse tombada e reconstruída. “Houve uma negociação com a Prefeitura (de Fortaleza) e acordamos deixar esse espaço para uma praça e um futuro memorial”, explica.

A praça foi construída e ganhou o nome de Bosque dos Ferroviários, no atual bairro Acarapé (do lado do Parque Araxá), entregue pela gestão municipal em novembro de 2018 e cuja manutenção é responsabilidade da Secretaria Regional 3. Em uma de suas extremidades — no cruzamento da José Jatahy com a avenida Bezerra de Menezes —, um vagão e um pedaço de linha férrea seriam a estrutura do memorial, mas estão abandonados. Michel Lins, titular da Regional 3 e adotante do Bosque, explica que o Instituto Viva Bairros é o responsável pelo vagão.

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Lins foi criador e diretor do Instituto, que hoje tem seu apoio. Segundo ele, uma reestruturação do vagão deve acontecer ainda neste semestre. A intenção é que seja feita pintura e instalação de ar-condicionado para início de atividades formativas e culturais. Ainda de acordo com o secretário, a concessão do vagão para o Instituto Viva Bairros tem validade até 2024/2025.

Ao O POVO, a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) informou que o Campo do Patu, em Senador Pompeu, é o único que atualmente tem algum processo correndo na Pasta. Conforme a Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor), não há na pasta municipal qualquer projeto envolvendo a memória dos campos de concentração que existiram na Capital.

 

 

 

Uma cidade cercada de campos de concentração

Na zona Oeste de Fortaleza, esteve o Campo do Urubu. Por meio de relatórios oficiais e registros da imprensa, pode-se entender que o local foi estruturado nas proximidades da atual Transnordestina Logística, na avenida Francisco Sá, atual bairro Álvaro Weyne. Na área, havia um lixão, as oficinas da rede ferroviária, fábricas de couro; o mau cheiro era uma marca, segundo registros da época. Por ali, também estavam algumas lagoas, em torno das quais surgiam alojamentos precários, e uma das estações da linha férrea.

Historiador Antônio de Pádua Santiago, professor da Uece, explica que a ideia da concentração, do controle está ligada à lógica capitalista(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Historiador Antônio de Pádua Santiago, professor da Uece, explica que a ideia da concentração, do controle está ligada à lógica capitalista

"A história de estigmatização da área vai sendo construída pouco a pouco, desde a década de 1920. O campo é como a ‘cereja do bolo’ desse processo. Você só pode compreender a complexidade da formação da favela do Pirambu se começar a fazer a conexão com esses elementos”, afirma Pádua Santiago. Segundo o historiador, em março de 1933, quando o campo começou a ser desativado, cerca de 2.600 pessoas ainda estavam ali.

Parte delas volta para suas cidades de origem, parte migra para o Norte ou para o Sudeste e parte fica na Cidade. Afinal, “Fortaleza é fascinante e representa um modelo de bem-estar, uma possibilidade de trabalho e de ascensão social”, como coloca Pádua. Ao ficar no Pirambu, era possível manter alimentação a partir da pesca no mar e estar relativamente perto do Centro para conseguir algum sustento.

 Vista aérea do Grande Pirambu. Um dos locais onde funcionou um dos campos de concentração para os retirantes da seca de 1932(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Vista aérea do Grande Pirambu. Um dos locais onde funcionou um dos campos de concentração para os retirantes da seca de 1932

"Fortaleza é uma cidade cercada de favelas por todos os lados. É, em certa medida, uma cidade cercada de campos de concentração. E a classe dominante tenta constantemente afastar esse corpo" Antônio de Pádua Santiago, historiador da Uece

 

Na visão do professor, a lógica de afastamento e as tentativas de permanência seguem construindo Fortaleza. “É por isso que surgem os conjuntos habitacionais nas décadas de 1950 e 1960. Não para resolver de fato um problema de moradia, porque não se resolveu até hoje, mas para tentar afastar essa população de onde a classe dominante mora. O campo de concentração é isso: um planejamento para salvar os retirantes e, ao mesmo tempo, colocá-los nesse universo das polarizações do capitalismo.”

 

 
 


- Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração na seca de 1932, de Kênia Sousa Rios. Imprensa Universitária, 2014.

- Campos de concentração no Ceará, de Fabrício Paiva. Gênio Editorial, 2020.

- Campos de concentração da Seca de 1932 no Ceará: Múltiplas visões e reverberações contemporâneas, organizado por Valdecy Alves. Expressão Gráfica e Editora, 2022.

- Currais, de David Aguiar, Sabina Colares. Lançado em 2019. Disponível para comprar ou alugar no YouTube, no Google Play Filmes e TV e na Apple TV (Documentário)

 

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