A partir da malha municipal mais recente, de 2022, os municípios que cruzam a área em disputa entre os dois estados são, no Ceará: Granja, Viçosa do Ceará, Tianguá, Ubajara, Ibiapina, São Benedito, Carnaubal, Guaraciaba do Norte, Croatá, Ipueiras, Poranga, Ipaporanga e Crateús; e, no Piauí: Luís Correia, Cocal, Cocal dos Alves, São João da Fronteira, Pedro II, Buriti dos Montes, Piracuruca e São Miguel do Tapuio.
A partir da união dos dois grupos de regiões foi possível obter uma geometria que representasse a totalidade do conflito. O cruzamento dessa cartografia com outras bases de dados colaborou para o levantamento do conjunto de comunidades e recursos efetivamente afetados pela disputa, o que ajuda a dar a dimensão econômica de um litígio que em muito extrapola a definição de linhas em um mapa.
Dados retirados do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (Cnefe) mapeados durante o último Censo do IBGE, de 2022, cruzados com o georreferenciamento de endereços recenseados no Brasil, indicam quantos e quais estabelecimentos estão no território em disputa. Entram no levantamento os domicílios particulares e coletivos, agropecuários, de ensino, de saúde, religiosos, em construção e com outras finalidades.
Como é possível observar nas visualizações elaboradas a partir dos dados no Cnefe, dos 4.775 domicílios particulares localizados na área de litígio, 2.649 estão no Ceará e 2.126 no Piauí. Em relação aos estabelecimentos agropecuários, porém, essa prevalência se inverte: das 1.585 unidades do tipo, apenas 586 estão no Ceará, enquanto 999 ficam no Piauí.
As unidades escolares e de saúde também estão, em sua maioria, no lado cearense. Em relação às primeiras, das 53 instituições de ensino localizadas no território em disputa, 35 estão no Ceará e 18 no Piauí. Das 15 unidades de saúde, 10 são nossas e cinco do estado vizinho. Os estabelecimentos religiosos seguem a tendência: são 33 no Ceará e 18 no Piauí.
Essa "vantagem" cearense pode ser observada a partir de outros indicativos. Como o estado acabou ficando com a maior parte do território que é objeto do conflito — conforme indicado pelos mapas do IBGE a partir das pesquisas de 2010 —, a população dos municípios cearenses envolvidos na disputa cresceu, entre os dois últimos censos, mais de 6%. No Piauí, esse crescimento foi de apenas 3%.
Tianguá, por exemplo, que tem mais de 20% de sua área na zona de conflito, viu sua população crescer de 68 mil para 81 mil em pouco mais de uma década. Apenas um dos municípios registrou encolhimento populacional entre os dois censos: Ipueiras, com 19% de seu território em disputa, teve sua população levemente reduzida de 37 mil para 36 mil habitantes.
No lado Piauiense, três dos oito municípios na zona de litígio apresentaram redução nos indicativos populacionais na última década. São Miguel do Tapuio foi de 18 mil para 17 mil habitantes, Buriti dos Montes de 7,9 mil para 7,4 mil, e São João da Fronteira de 5,6 mil para 5,5 mil. O município com maior variação positiva (+14%) foi Cocal dos Alves, próximo ao litoral do estado, cuja população foi de 5,5 mil para 6,3 mil.
É quando o litígio extrapola o universo conceitual das escalas e mapas que o que está em jogo nessa disputa de estados se torna mais visível. E, em termos econômicos, o que está em jogo é, segundo avaliação de Silvio Carlos Ribeiro, titular da Secretaria Executiva do Agronegócio, da Secretaria do Desenvolvimento Econômico do Ceará (SDE), uma fatia de pelo menos 30% do Produto Interno Bruto (PIB) agrícola do Ceará.
"O polo da Ibiapaba é fundamental e estratégico pelo valor que representa na produção agrícola no Estado. É lá que está a maior parcela do VBP (Valor Bruto da Produção Agropecuária) do Ceará. É muito maior do que o do Baixo Jaguaribe, por exemplo. Perder aquela área equivale a uma perda grande na nossa produção, na geração de empregos e no potencial pra crescer com diversos projetos que estão chegando lá", afirma.
A comparação de Ribeiro é relevante. Enquanto o pólo da Ibiapaba representa 30% do VBP do Estado, aparecendo no topo da lista dos pólos de produção agropecuária, o Baixo Jaguaribe, que ocupa o segundo lugar, tem valor bruto da produção correspondente a 11% do total. Em termos monetários, a diferença chama ainda mais atenção: os 30% da Ibiapaba se traduziram, segundo dados de 2022, em mais de R$ 1.858 bilhão, enquanto os 11% do Baixo Jaguaribe geraram R$ 667 milhões em VBP.
"A gente se preocupa muito com esse litígio também porque é uma área que tem recebido muitos investimentos, tem muita gente buscando a região. E os acordos dos investidores são feitos com o Ceará. Se aquilo muda para o Piauí, ele vai precisar ter outra conversa com o Piauí, ter outra interlocução com as secretarias. É um atraso grande pra projetos que já estão em continuidade, tanto na agricultura quanto na energia eólica", acrescenta.
De acordo com levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), enquanto a participação da Grande Fortaleza no PIB cearense caiu ao longo da última década, a Ibiapaba apresentou um salto considerável, sendo a segunda região do Estado com maior ganho de participação entre os anos 2002 e 2020. O crescimento de 0,92 ponto percentual só foi inferior ao registrado pelo Cariri, de 0,96. No mesmo período, o PIB per capita da região cresceu mais de 600%.
Segundo o Censo Agropecuário 2017, do IBGE, há 1.006 estabelecimentos agropecuários localizados no território cearense envolvido no litígio. O número diverge dos dados levantados pelo Cnefe, que apontam a existência de 586 estabelecimentos do tipo. A Serra da Ibiapaba, com sua produção de flores, frutas e hortaliças de alto valor agregado, é considerada a “joia” do agronegócio cearense. Sozinho, esse polo representa 44,3% do resultado de produção do Estado.
Também está em jogo o açude Jaburu, construído em 1983 sobre os leitos dos riachos Jaburu e Pitanga, com reservatório dividido entre os municípios de Ubajara e Tianguá. Com capacidade de 174 milhões de metros cúbicos, é considerado o maior do mundo entre os açudes localizados em cima de uma serra ou montanha.
"Aquela região de serras é o grande pomar do Ceará, para frutas, legumes e hortaliças. Estive na região em audiência pública, falando com os produtores, agricultores, e eles não querem deixar de ser do Ceará. Qualquer coisa que não seja a demarcação de hoje é insanidade, loucura", afirma Amilcar Silveira, presidente da da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Ceará (Faec).
>>Entrevista
Segundo a pesquisadora Vládia Souza, doutora em Geografia pela Universidade Federal do Ceará e professora do campus Baturité do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFCE), o litígio entre Ceará e Piauí teria se iniciado muito antes do Decreto Imperial de 1880, remontado pelo menos a meados do século XVII.
Autora da tese de doutorado "As divisas interestaduais brasileiras: uma análise sobre a permanência do litígio territorial entre o Ceará e o Piauí", publicada em 2020, Vládia conversou com OP+ sobre as origens históricas dessa disputa e teceu reflexões sobre as razões para sua permanência nos dias de hoje.
O POVO+: Sua pesquisa indica que o litígio entre os estados antecede em pelo menos dois séculos o decreto imperial de 1880. Qual seria, então, a origem dessa disputa?
Vládia Souza: A gente precisa corrigir e desvendar alguns mitos. O primeiro mito é de que esse conflito se origina na segunda metade do século XIX, com o Tratado Imperial que vai oficializar a troca das localidades de Amarração e Príncipe Imperial. Na verdade, as disputas pelas terras da Ibiapaba começam já no período colonial. O Ceará era uma capitania anexada à capitania do Maranhão, junto com o Piauí. Então, houve um desmembramento no século XVII: o Ceará se desmembra do Maranhão e é anexado à jurisdição da capitania de Pernambuco.
Aí começa a disputa pelas terras da Ibiapaba, que eram, naquele momento, um um reduto indígena que, orientado pelas missões jesuíticas, servia para a defesa da capitania, não permitindo que outras nações adentrassem aqui no território pra efetivar colonização. Começa aí a discórdia pela posse, porque antes, tanto o Ceará quanto o Piauí faziam parte da mesma capitania. Quando o Ceará sai do Maranhão e passa para o Pernambuco, ele leva pra si as terras da Ibiapaba, e o Piauí a requisitar o território.
OP+: De que forma o Decreto Imperial altera os rumos dessa história?
Vládia Souza: Em 1880 percebeu-se que havia muito mais cearenses na localidade de Amarração do que piauienses. Então o Imperador entendeu que ela pertencia ao Ceará, e o Ceará já tinha decretado a localidade como uma vila. O Decreto Imperial não é a origem do litígio, mas sim a formalização dessa disputa. Ele oficializa a troca — da localidade de Amarração, no Ceará, em troca da comarca de Príncipe Imperial, no Piauí — mas acaba gerando uma interpretação dúbia. O Piauí diz que todas as terras da Ibiapaba são suas, e o Ceará interpreta que o decreto só discorre sobre a troca entre as duas localidades. Essa dubiedade entre as interpretações é que formaliza o litígio.
OP+: E por que, mesmo antes do decreto, havia tantos cearenses nessa localidade?
Vládia Souza: Houve uma intensa migração de cearenses para as terras do Piauí, incluindo a localidade de Amarração. Isso começa já com a vinda da família real pra cá. Colaborou com esse fluxo migracional a ação de três agentes. Primeiro, a Igreja: vários padres cearenses que se deslocavam para o Piauí para realizar casamentos e batizados, acabaram ficando lá, instalando suas igrejas e moradias.
Segundo, a ação militar, quando muitos militares cearenses migraram para o Piauí por conta do movimento contra a independência em relação à Portugal. O terceiro agente são as secas, que intensificaram esse fluxo. De um lado você tinha o Ceará, onde havia muitos flagelados da seca, e do outro havia o Piauí, com terrenos que acumulavam mais água e cujas condições climáticas eram mais favoráveis para aqueles que queriam aguentar a seca. Por isso havia em Amarração mais cearenses que piauienses, e por isso o Ceará, antes mesmo do Decreto Imperial, elevou a localidade à condição de vila, o que acirrou ainda mais o conflito.
OP+: Por que é tão difícil estabelecer esses limites?
Vládia Souza: O limite que foi estabelecido pelo Decreto Imperial oferece essa interpretação dúbia. De lá pra cá, foram feitas várias tentativas de estabelecimento desses limites, como o Convênio Arbitral, pensado na Conferência de Limites Estaduais de 1920, onde foi tecido um conjunto de observações pra estabelecer os limites daquela área, tendo sido determinado que além dos divisores físicos e cartográficos deveriam ser considerados o sentimento de pertencimento e o direito de quem já vinha historicamente administrando aquela área.
O litígio não se resolve por conta da falta de interesse de ambas as partes. Se for pelo Convênio Arbitral, quem fica com as terras é o Ceará, porque a maior parte dos investimentos na Ibiapaba (escolas, hospitais, estradas, estruturas de energia e água) é cearense. O Piauí não aceita porque precisaria abrir mão de uma área economicamente próspera e judicializa, em 2011, uma ação solicitando que o Exército faça esse levantamento cartográfico. O Ceará não aceita a perícia do Exército, porque se for analisar o litígio com base nos critérios meramente cartográficos e observando os divisores de água na região, quem vai ficar com as terras é o Piauí.
"O conflito se fundamenta hoje muito mais numa disputa pelas riquezas econômicas. Paralelamente, há disputa políticas, de elites locais que querem ascender ao poder, e das populações que representam poder de voto"
OP+: Qual é a conjuntura atual dessa área de conflito?
Vládia Souza: Toda a Ibiapaba é uma área de grande potencial econômico. A gente tem a utilização dos terrenos da serra para a geração de energia eólica, usinas de energia solar, áreas destinadas à plantação de grãos (que acontece inclusive em parceria com o Piauí), uma indústria de floricultura com peso nacional, equipamentos técnicos como os Institutos Federais (em Ubajara e Tianguá), além de toda uma estrutura de capacitação profissional.
Também é uma área com grande potencial para o turismo de aventura e ecológico, que inclusive recebe investimentos pra isso. E hoje quem arrecada toda essa riqueza é o Ceará. O conflito se fundamenta hoje muito mais numa disputa pelas riquezas econômicas. Paralelamente, há disputa políticas, de elites locais que querem ascender ao poder, e das populações que representam poder de voto, e os motivos de recolhimento fiscal, porque hoje toda a arrecadação é feita pelo Ceará.
OP+: Como a senhora analisa os argumentos dos dois Estados no processo judicial?
Vládia Souza: Durante muito tempo o Piauí vem baseando sua defesa na perícia cartográfica, no conjunto de mapas que apresentam evidências de que a localidade de Amarração sempre foi do estado. Só que veio uma novidade. A defesa do Ceará encontrou evidências que provam que Amarração nunca foi do Piauí e que sempre esteve em território cearense. Eu ainda não estou de posse dessa documentação para fazer uma análise minuciosa e detalhada, então não posso defender esse fato, mas o que me comunicaram é que encontraram provas e evidências de que a localidade sempre foi do Ceará. Se essas evidências forem comprovadas, a gente dá uma nova guinada na resolução desse conflito.
OP+: A senhora consegue vislumbrar um caminho para a resolução do conflito?
Vládia Souza: É preciso levar em conta que se está mexendo com a vida das pessoas. Há pessoas que residem na área de litígio e que são afetadas diretamente, inclusive porque são desassistidas pelos estados: quando recorrem a um são jogadas para o outro, e vice-versa. Essa população fica numa zona de ninguém, sem atendimento.
Paralelamente a isso, existe o sentimento de pertencimento da população, que em sua grande maioria quer ser cearense, porque é o Ceará que oferece os melhores serviços públicos, tendo a maior quantidade de escolas e hospitais. Toda essa infraestrutura básica quem oferece é o Ceará. Os pais, os avós, nasceram do Ceará, são do Ceará. Pra resolver o litígio, o caminho mais justo é escutar essa população que está dentro da disputa, pra ver o que ela quer. Antes de qualquer decisão, deve haver um plebiscito, convocando e ouvindo essa população, já que ela está diretamente envolvida na causa.
Para este material foram utilizados dados relacionados às malhas geográficas históricas de cidades, estados e antigas províncias brasileiras, de 1872 aos registros atuais, publicados e disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em diferentes canais e publicações, como: Evolução da divisão territorial do Brasil 1872-2010, Repositório de arquivos da divisão territorial do Brasil e API de Malhas Geográficas. Em seguida, foram coletados dados do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (Cnefe).
Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual periodicamente são publicados códigos, metodologias, visualizações e bases de dados desenvolvidas.
Especial mostra a disputa iniciada no século XVIII, que chega ao século XXI e está em vias de ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O POVO percorreu a região, mostra o que está em jogo na disputa e a opinião dos principais envolvidos na peleja