Ao sul do bairro Jangurussu, em Fortaleza, o conjunto habitacional José Euclides surge imponente. O concreto em tons creme e bege sem vida dos grandes blocos contrasta com a vida que acontece energizante entre as ruas, becos e vielas.
Moradores conversam nas calçadas. Pequenos bares e mercados funcionam tão atentos quanto os olhares, ligeiros para perceber movimentações diferentes e pessoas desconhecidas. Crianças brincam, pulam, esbanjam o fôlego da infância.
Ao perceber a equipe do OPOVO+, uma senhora de idade avançada se aproxima curiosa. Sérgio Farias, morador, militante do MTST e companhia durante a visita, se adianta: “É um pessoal do jornal. Estão fazendo matéria”.
Nenhuma outra explicação se faz necessária. A senhora aponta para uma poça de esgoto estourado e, em tom de pura indignação, denuncia: “Tudo aqui é assim. Um abandono só. É bom que mostrem mesmo”.
Abandonados. Esse é um sentimento compartilhado por aproximadamente 100 mil pessoas que moram nos sete maiores conjuntos habitacionais na periferia de Fortaleza, entregues entre 2011 e 2021, conforme dados da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Habitacional (Habitafor).
Sem coleta de lixo semanal, sem agentes de saúde e sem correios, os moradores precisam conviver também com o preconceito. O abandono e a violência coexistem em um círculo que se retroalimenta e nega dignidade a quem um dia sonhou com uma vida melhor a partir da casa própria.
Doreen Massey, cientista social e geógrafa britânica, defende que o desenvolvimento do conceito de casa, assim como o da sua diferenciação do simples conceito de abrigo, ocorre paralelo à definição, por parte do homem, de conceitos como território, lugar e paisagem.
A casa, como propriedade, estabelece relações entre indivíduos e entre grupos sociais, passando eventualmente a ser identificada com a ideia de poder. Como poder, se distancia do direito fundamental social e vira mercadoria.
Sem a regulamentação do Estado, essa mercadoria se torna valiosa e inacessível. A variação de preço fica a cargo da esfera privada e a habitação passa a ser empregada como estoque de capital, deixando de estar à disposição de quem dela precisa.
Como consequência, o déficit habitacional cresce. De 2019 a 2022, o Brasil totalizou um aumento de 4,2% no total de déficit, totalizando seis milhões de domicílios, segundo pesquisa da Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades.
Déficit habitacional por região
A pesquisa, divulgada em 2024, revelou que a predominância do déficit habitacional no país é em famílias com até dois salários mínimos de renda domiciliar (74,4%), chefiada por mulheres (62,6%) e pessoas pretas e pardas (66,3%).
Em Fortaleza, se considerado o número de famílias no Cadastro Único (CadÚnico) e beneficiárias do Bolsa Família em abril e maio de 2023, o déficit habitacional total era de 146.490 domicílios, segundo dados do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece).
Problema histórico, a necessidade de enfrentamento à escassez de moradia digna perpassa importantes fases sociopolíticas do País. O sonho da casa própria deixa de ser uma vontade individual, se liga à vontade coletiva e passa a moldar políticas e cidades.
Criados para suprir a demanda habitacional urbana, os grandes conjuntos habitacionais surgem na história de Fortaleza por meio do Banco Nacional de Habitação (BNH), criado em 1964.
Renato Pequeno, professor do Instituto de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFC, coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab/UFC) e pesquisador do Observatório das Metrópoles, explica que o BNH, apesar de viabilizar a construção de grandes conjuntos, era destinado à população com condição de pagar pelas prestações dos imóveis vendidos.
“Poucos foram feitos para atender a população realmente de baixa renda, mas esses que foram construídos para população de baixa renda, acabaram atendendo as famílias que eram desterritorializadas”, completa.
Os conjuntos atendiam aos projetos de desterritorialização da população e, antes de tudo, visavam à remoção de favelas. Um exemplo apontado por Renato é a população que vivia no Arraial Moura Brasil, onde hoje é o Hotel Marina Park, deslocada para o Conjunto Palmeiras.
Apesar de representar uma política de habitação significativa, o BNH, além de não atender a parcelas mais pobres da população, gerou outros graves problemas sociais com a concentração de milhares de famílias em bairros periféricos sem infraestrutura e equipamentos sociais.
A crise financeira e econômica que assolou o Brasil durante a Ditadura Militar levou os milhares de beneficiados pelo BNH à inadimplência, e sem dinheiro para manter as atividades, o banco faliu em 1986.
BNH: da criação à extinção
“Após a extinção do BNH, o Brasil fica órfão de políticas habitacionais significativas durante quase 20 anos. Os recursos para habitação só retornam a partir do governo Lula, através do Ministério das Cidades e, mais especificamente, com a criação do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e do programa Minha Casa Minha Vida”, diz Renato.
Memória: BNH no OPOVODOC
Quando o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) surge, em 2009, uma das preocupações era evitar grandes concentrações populacionais, a fim de não cometer o mesmo erro do programa anterior.
Os contratos iniciais do PMCMV previam projetos de, no máximo, 500 famílias. “Era uma maneira de fazer com que os vazios urbanos bem localizados, em áreas com infraestrutura, pudessem ser destinados para habitação de interesse social, mas esqueceram de combinar com o mercado imobiliário e com o setor da construção civil”, completa Renato.
O professor Renato Pequeno explica que esses dois agentes não viabilizaram o avanço do programa nos primeiros anos, pois só aceitavam colaborar se pudessem construir em grandes quantidades e de forma rápida. Ação possível apenas em grandes vazios urbanos na periferia.
Quando foi liberada a segunda fase do PMCMV, uma mudança passou a permitir conjuntos de até 5.000 unidades. Foi quando passaram a surgir os primeiros grandes conjuntos periféricos de Fortaleza.
Produção Habitacional em Fortaleza (2011-2021)
Primeiro o Cidade Jardim 1, depois o Cidade Jardim 2 e, em seguida, o José Euclides, o Alameda das Palmeiras e o Luís Gonzaga. Todos eles construídos em um setor da cidade desprovido de infraestrutura e equipamentos sociais. E aonde não tem infraestrutura e equipamento social, não tem Estado.
Diferente do BNH, as construções do PMCMV atendiam principalmente as populações de baixa renda e moradores das áreas de risco. Renato pequeno sintetiza: “Como costumamos dizer, o Minha Casa Minha Vida é só o minha casa, porque a minha vida na cidade não existe.”
“Quando isso aqui (o conjunto) foi entregue, não tinha escola. Um ônibus escolar vinha pegar as crianças às cinco da manhã e, às vezes, dava duas da tarde e eles ainda não haviam voltado”, conta Sérgio Fárias, morador do conjunto José Euclides.
O grande conjunto, concluído em duas etapas nos anos 2017 e 2018, tem 2.992 unidades divididas em blocos com 16 apartamentos cada. Entregue inicialmente sem escolas, creches ou linhas de ônibus, os moradores se uniram para lutar por seus direitos.
Sérgio explica que, somente após muita luta dos moradores, um galpão nas proximidades do conjunto foi adaptado para servir como escola provisória. A previsão era de que as crianças estudassem no local durante um ano, mas a situação se estendeu durante três.
Somente em 2022, duas escolas foram entregues, uma no José Euclides, onde Sérgio reside com a família, e outra no Residencial Luiz Gonzaga, outro conjunto habitacional próximo. As unidades foram nomeadas de Escola Municipal Professor Asthon Guilherme da Silva e Escola Municipal Rosa da Fonseca.
Com o dobro do tamanho do José Euclides, o conjunto habitacional Alameda das Palmeiras é uma cidade dentro da cidade. São 4.992 unidades entregues em duas etapas entre 2016 e 2018.
Localizado no bairro Pedras, para ter acesso a outros bairros mais centrais e retornar, os moradores precisam passar pela BR-020, com um retorno quase em Maracanaú.
“Quando os moradores precisam resolver algo no Centro, eles costumam falar ‘vou ali na cidade’ ou ‘vou ali em Fortaleza’. É tão longe que alguns nem associam que ainda somos de lá”, comenta Cyra Nara, moradora e Agente de Cidadania e Controle Social.
Ela relata que, seguindo o padrão dos conjuntos anteriores, o Alameda das Palmeiras foi entregue distante de tudo e sem equipamentos sociais. Nos anos iniciais, não existiam escolas, creches ou postos de saúde.
“Com muita luta, a gente conseguiu um posto de saúde, creches, escola e horta social que atendem exclusivamente os moradores do Alameda. Com muita luta também conseguimos uma linha de ônibus de ida e volta”, diz Nara.
Apesar das melhorias, moradores ainda enfrentam problemas como a falta de correios, iluminação pública nas ruas internas, coleta de lixo, manutenção nas residências e a dificuldade em acessar outros serviços básicos distantes.
Para pagar contas em lotéricas, receber salário e fazer compras de mercado e itens essenciais, os moradores precisavam escolher entre se deslocar até o bairro Messejana ou usar os comércios locais com preços mais elevados.
Além da exclusão e do abandono do poder público em serviços de saúde e educação, os moradores precisam lidar com o preconceito e o estigma criado sobre a violência na comunidade.
“Antes do posto de saúde, quando ainda estávamos na luta e íamos em busca por nossos direitos, algumas pessoas costumavam falar ‘nunca vão colocar um posto no Alamedas para tratar bandido’, mas aqui não tem só bandido, tem muita criança e muito idoso”, relata Nara.
Luiz Fábio Paiva, professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), analisa que um dos primeiros indícios de preconceito pode ser encontrado na forma como os projetos habitacionais foram concebidos.
“Desde a concepção dos projetos como o PMCMV, tanto no campo da segurança pública quanto pesquisadores da área do urbanismo já apontavam que essa estrutura com grande aglomerado de pessoas em áreas que não eram providas de bons serviços públicos poderia ocasionar uma série de problemas em função da vulnerabilidade da população alocada nesses locais”, comenta o professor.
A falta de reconhecimento das necessidades e das dinâmicas sociais existentes possivelmente alimentou o estigma em relação às populações de baixa renda. Os projetos foram concluídos e entregues com base em uma visão simplista e desatenta às complexidades da população a ser realocada.
Estigma territorial que se perpetuou com a chegada de grupos armados, historicamente presentes em Fortaleza. Grupos que passaram a exercer controle por meio de mecanismos de poder que possibilitam a eles explorar não apenas o mercado ilegal, mas também o legal e de serviços nos conjuntos.
Nara e Sérgio, ao longo dos anos, foram tornando-se agentes essenciais para a ocupação dos espaços vazios da comunidade por projetos sociais. São eles quem incessantemente buscam melhorias e manutenção dos equipamentos ao entorno.
No José Euclides, que compartilha parte do território com um bosque, duas quadras poliesportivas ficavam totalmente ocultas por matos e plantas, durante a primeira vista da equipe do OPOVO+.
Durante a segunda visita, equipes já realizavam a limpeza do local. Segundo Sérgio, a Prefeitura é responsável por fazer a limpeza, mas só retorna ao local a cada três meses.
Com o apoio de moradores, beneficiados do equipamento Zona Viva também conseguiram fundos para a construção de cozinhas solidárias, responsáveis por distribuir quentinhas entre os moradores, e uma biblioteca, ainda em construção.
A criação de atividades que visam a recrear, socializar e educar as crianças acontece frequentemente no Zona Viva, que surgiu do processo de criação e implementação de uma iniciativa social dentro dos conjuntos habitacionais, impulsionada pela própria comunidade em resposta à ausência ou insuficiência do Estado.
Ele faz parte de um conceito mais amplo chamado "território vivo", que busca integrar diversas iniciativas (como cozinhas comunitárias e bibliotecas) para fortalecer o tecido social local.
“O Zona Viva é um conceito que vai além de um equipamento físico, não é só um contêiner. É uma tecnologia social e um componente de um ecossistema maior chamado território vivo”, completa Sérgio.
Ainda sem um Zona Viva, Nara se desdobra na comunidade para ficar atenta e tentar atender às várias demandas que surgem entre a população. Criado em conjunto com moradores, ela fala com muito orgulho do Projeto Esporte é Vida e das Cozinhas Solidárias.
Apesar de sua função primordial de fornecer alimentação, principalmente para idosos do residencial, as Cozinhas funcionam como ponto de apoio para doações de cadeiras de rodas, muletas e medidores de pressão.
“O pessoal acha que a gente só mata a fome, mas não é só isso. A política chega dentro da Cozinha Solidária e depois alcança aqueles que mais precisam, isso é incrível”, comenta.
Jonas Dezidoro, secretário municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor), comunicou ao OPOVO+ que o órgão está trabalhando em um levantamento sobre a situação dos conjuntos em Fortaleza, incluídos os construídos antes da criação da secretaria de habitação.
Sobre o Alameda das Palmeiras, o secretário diz que “nós vamos montar um comitê da Habitafor e vamos convidar o Governo do Estado para discutir uma série de ações para atuarmos lá”.
Ainda sem previsão de quando chegarão os serviços de correios e coleta de lixo em ambos os conjuntos e a iluminação pública nas ruas internas do Alameda, os moradores alimentam a indignação do abandono com luta em busca de qualidade de vida digna com moradia e direitos garantidos.
"Oii! ;) Aqui é Bianca Nogueira, estagiária do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre a leitura nos comentários abaixo. Até a próxima!"
Série de reportagens exploram as vulnerabilidades que os moradores de Fortaleza enfrentam a nível urbanístico