Até a última bala, resistir. Nunca ceder ao inimigo imperialista, nunca se entregar, nunca capitular. Perdida a Confederação do Equador, mas não a vontade ferrenha de se opor ao controle de Dom Pedro I, de Portugal, do Rio de Janeiro. A coragem inquebrável — herança. Tristão Gonçalves de Alencar, uma das vozes mais marcantes do documentário Nordeste Insurgente, do OP+, é o filho mais impetuoso e temperamental de Bárbara de Alencar, irmão do pragmático José Martiniano de Alencar, sobrinho do patriarca e todo-poderoso capitão Leonel Pereira de Alencar.
E antes deles, de outros Alencares, ricos donos de terras, desde o povoamento dos sertões. Um Ceará feito com eles de pelejas, alianças, reviravoltas, traições e mortes.
Naquele derradeiro dia de outubro de 1824, Tristão Gonçalves de Alencar conduzia molemente o seu cavalo pela margem direita do Jaguaribe, ao encontro de sua morte. Tem completos trinta e cinco anos e sabe que, naquele momento crucial, está por sua conta. De um minuto a outro, encontrará o seu destino, já selado.
Ele sabe que a cabeça dele, presidente da província confederada do Ceará, está a prêmio. E, no seu encalço, vêm a galope as tropas de Manoel Antônio Amorim, comandante-geral das fronteiras, e de um velho amigo-inimigo, José Leão da Cunha Pereira. O cerco fecha-se. É preciso resistir, até o último fôlego. Se cair, cairá por morte.
A tropa em pânico, desertou. A cada quilômetro, soldados a menos. Bando de homens mal-armados, famintos, acuados. “Povos flutuantes” — brancos e mestiços recrutados nas roças, indígenas tirados nos aldeamentos de Arronches (hoje, Parangaba), de Soure (hoje, Caucaia), de Messejana. Subordinar, por alianças ou à força, e em um curto espaço de tempo, essa “massa informe” para a causa revolucionária.
A mão-de-ferro dele e de José Pereira Filgueiras juntaram, sob a forma de algo parecido a um exército, mais de seis mil homens. De vila em vila, ora liberando partidários ora expulsando imperialistas, venciam e perdiam, em escaramuças mortais, borrando de sangue as fronteiras do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco.
Nas águas do Jaguaribe, Tritão Gonçalves vê derramar-se para longe o projeto de soberania das províncias do Norte (hoje, o Nordeste). Desfazer-se no barro molhado o sonho de moldar um sólido pacto constitucional, a partir do qual as províncias desta região pudessem escolher livremente o melhor sistema para elas: um possível governo republicano ou uma possível monarquia constitucional. De uma forma ou de outra, livres, com administrações autônomas, em pé de igualdade, umas às outras — nunca mais a hegemonia colonialista sobre a região.
Só com a sua espada, não vai fugir ao destino, numa das muitas veredas do sertão. O cansaço pesa. Não da guerra, mas da luta perdida. Talvez, uma ponta de desânimo. Em desvantagem numérica e de fogo, há dias tinha, como única opção, a tática indígena do ataque rápido e fuga, para evitar o cerco total. Sem dar-se conta, tornou-se um guerrilheiro dos sertões.
Dias atrás, em Aracati, sentiu o início do fim, com a chegada de duas notícias funestas: a restauração imperialista em Pernambuco e a capitulação em Fortaleza. Não havia mais esperanças. Nem para ele nem para a Confederação do Equador. A possibilidade da república não seria para já. Nem ele estaria nesse mundo para vê-la.
A caatinga, com seu solo pedregoso, se estendia larga pelo horizonte, através dos olhos de Tristão. Reconheceu no terreno um sítio chamado Santa Rosa que, num futuro longe se chamará Jaguaribara — e um dia será inundada pelas águas da Barragem do Castanhão. Escolheu aquele chão para apear e descansar, mesmo se o inimigo acampava ali por perto. O destino chegou na forma de um primeiro tiro de bacamarte, que lhe atravessou o corpo, abrindo um buraco de lado a lado, e fazendo o sangue abundante espirrar na areia quente. Depois do primeiro, foram muitos tiros.
Cortaram-lhe também a orelha e deceparam-lhe a mão. Esmurraram-lhe, mesmo já morto, em meio às alegrias antecipadas da recompensa dos 200 mil réis. Depois, amarram o corpo a uma jurema e deixaram-no lá, como exemplo, para secar e minguar, na igual esperança de acontecer o mesmo ao movimento revolucionário. Um mês depois o major Luís Rodrigues Chaves, antigo partidário e depois vira-casaca, mandou levarem o corpo e darem sepultura, na igreja de Santa Rosa. Assim morreu Tristão, na sua jornada.
O homem que, nas palavras do historiador e pesquisador João Alfredo de S. Montenegro (1930-2013), “uniu a vida e a morte em um mesmo holocausto de bravura”. E, acrescentamos, entrou na história e na memória do Ceará, em definitivo, como um grande herói romântico — aquele que vai às últimas consequências pelo que acredita. A palavra holocausto é empregada por Montenegro não no sentido histórico de Shoah, quando o nazismo colocou em marcha o projeto de exterminação dos judeus, e o termo adquiriu assim, significado específico, que todos conhecemos hoje.
Mas, holocausto no sentido mais original do termo — na visão religiosa, com a conotação de sacrifício, em submissão à vontade divina. Dessa forma, viveu Tristão seu holocausto (a sua ruína): ao colocar sua vida e sua morte à serviço de suas crenças, aceitando, assim, o seu destino — no sentido bíblico da palavra. Até a última gota de sangue, jurou o herói. E dessa crença e dessa jura, desse no que desse, nunca arredou o pé.
*Revista do Instituto do Ceará, 1995, pg 140
Trailer do documentário Nordeste Insurgente, em cartaz no OP+
Em 1817, um outro levante perdido para o império — a Revolução Pernambucana, que lançou a semente revolucionária pelas províncias do Norte, chegou com força ao Ceará e colocou o Crato na linha de frente. Naquela, bastaram a Tristão Gonçalves duas gotas de sangue. Não para ganhar a guerra, mas uma simples batalha contra o cárcere, da Bahia: por melhores condições de prisão.
Em uma das celas escuras, cortou o braço e escreveu com o próprio sangue, em um papel de cigarros. Na cela ao lado, a mãe, Bárbara de Alencar, prisioneira como ele, assustou-se com o bilhete: “Hoje ou amanhã, na ocasião da comida, fugiremos, dê no que der”.
Já nessa época, os arroubos de Tristão preocupavam dona Bárbara. Aproveitou o bilhete desesperado do filho para negociar celas mais arejadas, roupas limpas, asseios e uma comida melhor. O rapaz se acalmou, paciente na mesma sorte da família Alencar. Mas, sete anos depois, o ardor revolucionário do rapaz estava intacto, quando as aspirações de 1817 reascenderam-se nas de 1824.Tristão Gonçalves estava pronto. Inclusive, para fazer novas alianças, liderar o levante e jurar morrer pela causa.
Foram muitas as expedições militares. Proteger a costa e as fronteiras, articular a adesão de indecisos, ataques e contra-ataques, apaziguar desordens no interior, parar os saques e crimes nas vilas agora despovoadas de homens — arregimentados para o exército dos confederados. Havia também o projeto de um grande encontro, em Recife: deputados eleitos no Ceará deveriam, em meio a riscos de ataques, viajar à capital pernambucana para decidirem com seus pares as bases constitucionais da Confederação do Equador.
Os dois líderes cearenses, Tristão Gonçalves e José Pereira Filgueiras, tinham de acertar estratégias táticas, dividirem-se, revezarem-se e apoiarem-se mutuamente. Até o último dia de vida, Tristão tentou reencontrar as forças de Filgueiras — que, entretanto, acossado por inimigos, fizera marcha-a-ré para Icó, depois Crato. Filgueiras fugiu, mas acabou entregando-se, morreu a caminho do Rio de Janeiro.
Após a terrível morte de Tristão, a viúva juntou mais dois nomes ao sobrenome de família. Passou a chamar-se: Ana Triste Alencar Araripe, e entrou no rol de heroínas de sua época, ao lado de Bárbara de Alencar.
"O artista visual Carlos Campus, do O POVO, assina as ilustrações que contam a jornada de Tristão Gonçalves nesta reportagem. Ante a falta de imagens do revolucionário cearense, os traços de Carlos Campus foram inspiradas na narrativa da jornalista Ariadne Araújo"
A partir do documentário Nordeste Insurgente, do OP+, série de reportagens aborda a guerra das províncias do Ceará, Pernambuco, Maranhão e Paraíba pela proclamação da República no Brasil e contra o absolutismo de D. Pedro I