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Tristão Gonçalves: "um holocausto de bravura" *
Reportagem Seriada

Tristão Gonçalves: "um holocausto de bravura" *

Em defesa da separação política do Brasil em relação à Portugal, Tristão Gonçalves Pereira de Alencar acrescentou um novo nome ao de família: Araripe — processo conhecido como "indianização" ou "tupinização" dos sobrenomes. Na mesma vontade de realçar o sentimento brasileiro, surgiram também sobrenomes como Jaguaribe, Ibiapina, Sucupira
Episódio 3

Tristão Gonçalves: "um holocausto de bravura" *

Em defesa da separação política do Brasil em relação à Portugal, Tristão Gonçalves Pereira de Alencar acrescentou um novo nome ao de família: Araripe — processo conhecido como "indianização" ou "tupinização" dos sobrenomes. Na mesma vontade de realçar o sentimento brasileiro, surgiram também sobrenomes como Jaguaribe, Ibiapina, Sucupira
Episódio 3
Tipo Notícia Por

 

 

Até a última bala, resistir. Nunca ceder ao inimigo imperialista, nunca se entregar, nunca capitular. Perdida a Confederação do Equador, mas não a vontade ferrenha de se opor ao controle de Dom Pedro I, de Portugal, do Rio de Janeiro. A coragem inquebrável — herança. Tristão Gonçalves de Alencar, uma das vozes mais marcantes do documentário Nordeste Insurgente, do OP+,  é o filho mais impetuoso e temperamental de Bárbara de Alencar, irmão do pragmático José Martiniano de Alencar, sobrinho do patriarca e todo-poderoso capitão Leonel Pereira de Alencar.

E antes deles, de outros Alencares, ricos donos de terras, desde o povoamento dos sertões. Um Ceará feito com eles de pelejas, alianças, reviravoltas, traições e mortes.

Naquele derradeiro dia de outubro de 1824, Tristão Gonçalves de Alencar conduzia molemente o seu cavalo pela margem direita do Jaguaribe, ao encontro de sua morte. Tem completos trinta e cinco anos e sabe que, naquele momento crucial, está por sua conta. De um minuto a outro, encontrará o seu destino, já selado.

Tristão Gonçalves Pereira de Alencar, mártir da Confederação do Equador, tem uma vida repleta de lutas e digna de ser narrada a partir da jornada do herói(Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Tristão Gonçalves Pereira de Alencar, mártir da Confederação do Equador, tem uma vida repleta de lutas e digna de ser narrada a partir da jornada do herói

Ele sabe que a cabeça dele, presidente da província confederada do Ceará, está a prêmio. E, no seu encalço, vêm a galope as tropas de Manoel Antônio Amorim, comandante-geral das fronteiras, e de um velho amigo-inimigo, José Leão da Cunha Pereira. O cerco fecha-se. É preciso resistir, até o último fôlego. Se cair, cairá por morte.

A tropa em pânico, desertou. A cada quilômetro, soldados a menos. Bando de homens mal-armados, famintos, acuados. “Povos flutuantes” — brancos e mestiços recrutados nas roças, indígenas tirados nos aldeamentos de Arronches (hoje, Parangaba), de Soure (hoje, Caucaia), de Messejana. Subordinar, por alianças ou à força, e em um curto espaço de tempo, essa “massa informe” para a causa revolucionária.

A mão-de-ferro dele e de José Pereira Filgueiras juntaram, sob a forma de algo parecido a um exército, mais de seis mil homens. De vila em vila, ora liberando partidários ora expulsando imperialistas, venciam e perdiam, em escaramuças mortais, borrando de sangue as fronteiras do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco.

Tristão Gonçalves de Alencar pertence a uma linhagem de luta. É filho de Bárbara de Alencar e sobrinho do patriarca e todo-poderoso capitão Leonel Pereira de Alencar(Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Tristão Gonçalves de Alencar pertence a uma linhagem de luta. É filho de Bárbara de Alencar e sobrinho do patriarca e todo-poderoso capitão Leonel Pereira de Alencar

Nas águas do Jaguaribe, Tritão Gonçalves vê derramar-se para longe o projeto de soberania das províncias do Norte (hoje, o Nordeste). Desfazer-se no barro molhado o sonho de moldar um sólido pacto constitucional, a partir do qual as províncias desta região pudessem escolher livremente o melhor sistema para elas: um possível governo republicano ou uma possível monarquia constitucional. De uma forma ou de outra, livres, com administrações autônomas, em pé de igualdade, umas às outras — nunca mais a hegemonia colonialista sobre a região.

Só com a sua espada, não vai fugir ao destino, numa das muitas veredas do sertão. O cansaço pesa. Não da guerra, mas da luta perdida. Talvez, uma ponta de desânimo. Em desvantagem numérica e de fogo, há dias tinha, como única opção, a tática indígena do ataque rápido e fuga, para evitar o cerco total. Sem dar-se conta, tornou-se um guerrilheiro dos sertões.

Dias atrás, em Aracati, sentiu o início do fim, com a chegada de duas notícias funestas: a restauração imperialista em Pernambuco e a capitulação em Fortaleza. Não havia mais esperanças. Nem para ele nem para a Confederação do Equador. A possibilidade da república não seria para já. Nem ele estaria nesse mundo para vê-la.

Tristão Gonçalves é uma das vozes marcantes no documentário "Nordeste Insurgente", original do O POVO+ que destaca a luta republicana no Nordeste contra Dom Pedro I(Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Tristão Gonçalves é uma das vozes marcantes no documentário "Nordeste Insurgente", original do O POVO+ que destaca a luta republicana no Nordeste contra Dom Pedro I

A caatinga, com seu solo pedregoso, se estendia larga pelo horizonte, através dos olhos de Tristão. Reconheceu no terreno um sítio chamado Santa Rosa que, num futuro longe se chamará Jaguaribara — e um dia será inundada pelas águas da Barragem do Castanhão. Escolheu aquele chão para apear e descansar, mesmo se o inimigo acampava ali por perto. O destino chegou na forma de um primeiro tiro de bacamarte, que lhe atravessou o corpo, abrindo um buraco de lado a lado, e fazendo o sangue abundante espirrar na areia quente. Depois do primeiro, foram muitos tiros.

Cortaram-lhe também a orelha e deceparam-lhe a mão. Esmurraram-lhe, mesmo já morto, em meio às alegrias antecipadas da recompensa dos 200 mil réis. Depois, amarram o corpo a uma jurema e deixaram-no lá, como exemplo, para secar e minguar, na igual esperança de acontecer o mesmo ao movimento revolucionário. Um mês depois o major Luís Rodrigues Chaves, antigo partidário e depois vira-casaca, mandou levarem o corpo e darem sepultura, na igreja de Santa Rosa. Assim morreu Tristão, na sua jornada.

Tristão Gonçalves de Alencar morreu em outubro de 1824 aos 35 anos (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Tristão Gonçalves de Alencar morreu em outubro de 1824 aos 35 anos

O homem que, nas palavras do historiador e pesquisador João Alfredo de S. Montenegro (1930-2013), “uniu a vida e a morte em um mesmo holocausto de bravura”. E, acrescentamos, entrou na história e na memória do Ceará, em definitivo, como um grande herói romântico — aquele que vai às últimas consequências pelo que acredita. A palavra holocausto é empregada por Montenegro não no sentido histórico de Shoah, quando o nazismo colocou em marcha o projeto de exterminação dos judeus, e o termo adquiriu assim, significado específico, que todos conhecemos hoje.

Mas, holocausto no sentido mais original do termo — na visão religiosa, com a conotação de sacrifício, em submissão à vontade divina. Dessa forma, viveu Tristão seu holocausto (a sua ruína): ao colocar sua vida e sua morte à serviço de suas crenças, aceitando, assim, o seu destino — no sentido bíblico da palavra. Até a última gota de sangue, jurou o herói. E dessa crença e dessa jura, desse no que desse, nunca arredou o pé.

*Revista do Instituto do Ceará, 1995, pg 140

 

 Trailer do documentário Nordeste Insurgente, em cartaz no OP+

 

 

Duas revoluções solidárias no tempo

Em 1817, um outro levante perdido para o império — a Revolução Pernambucana, que lançou a semente revolucionária pelas províncias do Norte, chegou com força ao Ceará e colocou o Crato na linha de frente. Naquela, bastaram a Tristão Gonçalves duas gotas de sangue. Não para ganhar a guerra, mas uma simples batalha contra o cárcere, da Bahia: por melhores condições de prisão.

Em uma das celas escuras, cortou o braço e escreveu com o próprio sangue, em um papel de cigarros. Na cela ao lado, a mãe, Bárbara de Alencar, prisioneira como ele, assustou-se com o bilhete: “Hoje ou amanhã, na ocasião da comida, fugiremos, dê no que der”.


 

Já nessa época, os arroubos de Tristão preocupavam dona Bárbara. Aproveitou o bilhete desesperado do filho para negociar celas mais arejadas, roupas limpas, asseios e uma comida melhor. O rapaz se acalmou, paciente na mesma sorte da família Alencar. Mas, sete anos depois, o ardor revolucionário do rapaz estava intacto, quando as aspirações de 1817 reascenderam-se nas de 1824.Tristão Gonçalves estava pronto. Inclusive, para fazer novas alianças, liderar o levante e jurar morrer pela causa.

Foram muitas as expedições militares. Proteger a costa e as fronteiras, articular a adesão de indecisos, ataques e contra-ataques, apaziguar desordens no interior, parar os saques e crimes nas vilas agora despovoadas de homens — arregimentados para o exército dos confederados. Havia também o projeto de um grande encontro, em Recife: deputados eleitos no Ceará deveriam, em meio a riscos de ataques, viajar à capital pernambucana para decidirem com seus pares as bases constitucionais da Confederação do Equador.

Tristão Gonçalves  acrescentou Araripe ao nome de família, num processo conhecido como "indianização" ou "tupinização" dos sobrenomes(Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Tristão Gonçalves acrescentou Araripe ao nome de família, num processo conhecido como "indianização" ou "tupinização" dos sobrenomes

Os dois líderes cearenses, Tristão Gonçalves e José Pereira Filgueiras, tinham de acertar estratégias táticas, dividirem-se, revezarem-se e apoiarem-se mutuamente. Até o último dia de vida, Tristão tentou reencontrar as forças de Filgueiras — que, entretanto, acossado por inimigos, fizera marcha-a-ré para Icó, depois Crato. Filgueiras fugiu, mas acabou entregando-se, morreu a caminho do Rio de Janeiro.

Após a terrível morte de Tristão, a viúva juntou mais dois nomes ao sobrenome de família. Passou a chamar-se: Ana Triste Alencar Araripe, e entrou no rol de heroínas de sua época, ao lado de Bárbara de Alencar. 

 

"O artista visual Carlos Campus, do O POVO, assina as ilustrações que contam a jornada de Tristão Gonçalves nesta reportagem. Ante a falta de imagens do revolucionário cearense, os traços de Carlos Campus foram inspiradas na narrativa da jornalista Ariadne Araújo"

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Sertão confederado

A partir do documentário Nordeste Insurgente, do OP+, série de reportagens aborda a guerra das províncias do Ceará, Pernambuco, Maranhão e Paraíba pela proclamação da República no Brasil e contra o absolutismo de D. Pedro I