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Qual o futuro do "movimento trumpista" nos EUA?
Reportagem Seriada

Qual o futuro do "movimento trumpista" nos EUA?

Donald Trump se despede do poder nos Estados Unidos, deixando o país imerso numa crise sanitária, econômica e social, além de ter, de forma inédita, ameaçando a sucessão presidencial, levando o mundo a especular as fragilidades que rondam a democracia estadunidense
Episódio 6

Qual o futuro do "movimento trumpista" nos EUA?

Donald Trump se despede do poder nos Estados Unidos, deixando o país imerso numa crise sanitária, econômica e social, além de ter, de forma inédita, ameaçando a sucessão presidencial, levando o mundo a especular as fragilidades que rondam a democracia estadunidense
Episódio 6
Tipo Análise Por

A posse do presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, neste janeiro de 2021 parece encerrar vitoriosa a batalha pela sucessão naquele país. No entanto, Biden terá pela frente o monumental trabalho de unir os pedaços de uma nação com a saúde em frangalhos, dividida, pressionada pelas questões raciais e com uma democracia que, por alguns momentos, pareceu cambaleante. O momento mais crucial foi a invasão do Congresso americano, no início de janeiro de 2021, durante a sessão dos congressistas que confirmou a vitória do democrata Joe Biden, estimulada pelo presidente Donald Trump.

O novo presidente herda o legado de Trump (2016-2020), presidente que encerra seu mandato sem admitir a derrota política. Deixa a Casa Branca como o primeiro mandatário da nação americana que não aceitou o resultado das urnas, e se insurgiu contra os ritos tradicionais das eleições no país e, mesmo sem apresentar provas, mantém um discurso que coloca em xeque a vitória do democrata, seu adversário político.  

Para refletir sobre o futuro dos Estados Unidos e de sua democracia capaz de espelhar outros países no mundo, O POVO convidou cientistas sociais e políticos (UFC e Unilab) e uma doutora em Física (ITA). Eles aceitaram o convite. Boa leitura a todos. 

  

 

Democracia?

Por Sônia Guimarães*

Sônia Guimarães, professora do Instituto Tecnológico da Aeronáutica(Foto: Acervo Pessoal )
Foto: Acervo Pessoal Sônia Guimarães, professora do Instituto Tecnológico da Aeronáutica

Democracia é um regime político em que todos os cidadãos elegíveis participam igualmente, será? No Brasil mais de 50% da população é negra, quantos políticos negros temos?? Mais de 50% do eleitorado é mulher, quantas mulheres são políticas?

Democracia nunca representou a sociedade.

Democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo, sendo povo a maioria da população em um país. Jair Bolsonaro, foi eleito com 55,13% dos votos válidos, que representaram 39,3% do eleitorado total. Isto é democracia???

Democracia americana - nos Estados Unidos a contagem é diferente, Trump foi eleito com menor número de votos da população, mas maior número de votos dos colégios eleitorais estaduais. Biden foi eleito com maior número de votos em todos os casos.

Democracia - governo em que o povo, a maioria da população, exerce a soberania. No entanto, quando um presidente não aceita ter perdido, e incita seus apoiadores a impedir que o vencedor seja validado, isto deixa de ser democracia.

"Democracia – na ausência do presidente, nos Estados Unidos, uma mulher negra assumirá o posto de presidente de umas das maiores potências mundiais..."

Estes americanos que tentaram impedir a validação do presidente eleito, vão aceitar esta democracia???

Democracia sendo enganada - campanhas eleitorais desleais, cheias de fake news, espalhando inverdades de seus adversários, e nada sendo feito para impedir estas ações ilegais. As grandes companhias de televisão e jornais definindo quem vai ganhar, apelando para a ignorância da maioria da população. Logo o povo não tem oportunidade de escolher com sabedoria. Isto também não é democracia.

"Democracia em crise – um presidente, em sua mais alta posição política, representante de um país, se recusando a usar máscara, e desacreditando a ciência"

Democracia diversa - além da “vice-presidenta”, e gostaria que esta palavra permanecesse no feminino, pois a posição é muito importante, e é uma mulher nela. Biden está escurecendo e tornando o seu mandato mais feminino, realmente diversificando suas nomeações para o alto escalão da Casa Branca e de seu governo. Afinal o seu maior eleitorado foi formado por negros, mulheres e latinos. Isto é democracia.
Democracia em crise – um presidente, em sua mais alta posição política, representante de um país, dizendo que a pandemia é só uma gripezinha, se recusando a usar máscara, e desacreditando a ciência, causando centenas de milhares de mortes. Dizendo à população que tudo bem ser racista, machista ou homo fóbico, causando aumento nos ataques racistas, machistas e homo fóbicos. Uma vez infectado declarou que se curou com um remédio que os cientistas já tinham comprovado que não era eficaz para este fim...

Todas as comparações não são meras coincidências... Isto é usar uma posição obtida democraticamente para matar muita gente.

(*) Sônia Guimarães é doutora em Física e a primeira professora negra do Instituto Tecnológico da Aeronáutica 


 

 

Trump, o “golpe fascista” e Biden, o “pacificador

Por Fabio Gentile* 

 

Fabio Gentile professor associado do Departamento de Ciências Sociais da UFC(Foto: Acervo pessoal )
Foto: Acervo pessoal Fabio Gentile professor associado do Departamento de Ciências Sociais da UFC

Quando os “trumpistas” invadiram o Capitólio, muitos cientistas e analistas se perguntaram se isso era um “golpe fascista”.

Como todas as categorias da teoria política, fascismo foi pensado para dar conta de um determinado fenômeno ideológico-político entre as duas guerras mundiais, se tornando logo depois uma categoria “cientifica” na classificação de fenômenos que podem ser colocados no “idealtipo” fascista.

Se queremos utilizar hoje fascismo, precisamos então ressignifica-lho. A ciência leva das analogias para destacar sobretudo as diferencias entre os fenômenos. Nesta perspectiva, fascismo nos ajuda a entender fenômenos da nossa conjuntura, à medida que ele, bem como a democracia liberal-representativa e o populismo, é um produto da sociedade de massa, e portanto pode ser sempre uma sedução para as massas, uma vez que elas estão em busca de novos lideres diante a crise da democracia contemporânea.

"O “trumpista” pertence a uma nova direita ultra individualista e antistatalista, enquanto o fascismo clássico tem um projeto de estado social, totalitário, que pretende organizar a vida das massas."

Assim, o que aconteceu nos EUA no início de janeiro pode ser aproximado ao fascismo. Por outro lado, porém, é preciso ressaltar que a composição social dos “trumpistas” é bem diferente do fascista clássico. O “trumpista” pertence a uma nova direita ultra individualista e antistatalista, enquanto o fascismo clássico tem um projeto de estado social, totalitário, que pretende organizar a vida das massas. 

Seria então mais interessante utilizar a categoria de populismo, visto que fenômenos quais o “trumpismo” e o “bolsonarismo” são produtos da crise da democracia contemporânea, porém não querem golpeá-la de fora. Eles querem destruir a democracia por dentro (pelas eleições por ex.). Isso nos ajuda a entender melhor as motivações dos “trumpistas” invadindo o Capitólio. Tirando algumas minorias nazifascistas, a maioria deles extariam então questionando a “farsa” do processo eleitoral da maior democracia ocidental. O populismo, que no caso de Trump e Bolsonaro incorpora alguns traços nazifascistas, é isso mesmo: uma resposta à sociedade de massa em busca de novas representações na crise da democracia.

"Se o Maquiavel pudesse ser o consultor do “Principe” Biden na hora da posse, sugeriria em primeiro lugar ao novo presidente dos EUA de pacificar o conflito."

O que então precisa fazer Biden na hora de tomar posse? Muitos analistas confiam na ideia schumpeteriana que a democracia tem os anticorpos para derrotar a patologia populista, ou seja o populismo é eficaz na hora de questionar o processo democrático, mas na hora de governar não sempre consegue fazer a mediação entre os interesses em conflito.

Se o Maquiavel pudesse ser o consultor do “Principe” Biden na hora da posse, sugeriria em primeiro lugar ao novo presidente dos EUA de pacificar o conflito, dado que ele vai ser o presidente de todos os cidadãos estadunidenses. Além de ser o primeiro cidadão “virtuoso”.

No fundo, a democracia é também a arte do “bom governo”.

(*) Fabio Gentile, professor associado do Departamento de Ciências Sociais da UFC  e criador da canal you tube "Pílulas de teoria politica". https://www.youtube.com/watch?v=HQcU6hv23xI

 

 

 

A incursão ao capitólio, a branquitude acrítica e o movimento trumpista

Por Lourenço Cardoso*

Lourenço Cardoso, professor do Instituto de Humanidades da Unilab(Foto: Acervo Pessoal )
Foto: Acervo Pessoal Lourenço Cardoso, professor do Instituto de Humanidades da Unilab

A incursão ao Congresso estadunidense realizada pelos trumpistas pode causar um efeito colateral ao presidente Donald Trump. É provável que os políticos democratas e, em menor número, republicanos consigam inviabilizá-lo para disputa de cargos políticos eletivos. Trump provocou isto. Ele incitou seus seguidores dogmáticos. O método que será utilizado para que ele seja responsabilizado pode ser distinto. No entanto, é evidente que Donald Trump errou em seus cálculos. É possível que também não lhe aconteça nada. Todavia, a sua maior falha foi perder a reeleição. Esse foi o retumbante fracasso do seu mandato. Diante disso tornou-se um ser envergonhado.

"Antes de mais nada, Donald Trump é um problema caseiro. Um enigma na disputa de poder no Partido Republicano."

A desonra é tamanha que jamais admitirá em público a derrota. Sua narrativa é contada para que seja aplaudido pelos seus apoiadores. A verdade somente importa quando convém. Um presidente perder a reeleição nos Estados Unidos é incomum. O último que perdeu foi George H. W. Bush em 1992. Donald Trump perdeu para Joe Biden, todavia, ele era o franco favorito. Suas ações inábeis e irresponsáveis também lhe afetaram, entre elas: (a) a sua atuação desastrosa na pandemia da covid-19, (b) as suas práticas racistas diante das manifestações do “movimento vidas negras importam” e (c) a sua constante autorização e incentivo a branquitude acrítica, isto é, “os supremacistas brancos”.

Antes de mais nada, Donald Trump é um problema caseiro. Um enigma na disputa de poder no Partido Republicano. Trump nos últimos vídeos tem se colocado como líder de um movimento. Realmente, possui inúmeros fiéis para seguir nessa linha. Diante disso o seu primeiro passo será tentar manter o controle do Partido Republicano, tarefa difícil. Perderá automaticamente muito poder quando se tornar ex-presidente. Como não foi reeleito já perdeu algum, já é um cadáver esperando ser enterrado. O poder que possuirá será o de um “ex”. Donald Trump por mais que consiga se colocar em cena, não deixará de passar.

"Portanto, neste exato momento, os interesses dos democratas e de alguns republicanos são coincidentes. Tratam-se de objetivos “anti-Trump”."

Por fim, o seu segundo passo será tentar retornar ao seu passado de ouro, lançar-se novamente candidato de forma independente, se não conseguir a legenda no Partido Republicano. Portanto, neste exato momento, os interesses dos democratas e de alguns republicanos são coincidentes. Tratam-se de objetivos “anti-Trump”. Especialmente aqueles políticos que objetivam a presidência. Enquanto isso, o futuro ex-presidente Donald Trump tenderá a se apoiar cada vez mais nos seus fiéis seguidores para permanecer relevante ante o inexorável passar do tempo, um dia após o outro.

(*) Lourenço Cardoso é professor do Instituto de Humanidades na Unilab. Doutor em Ciências Sociais pela Unesp campus de Araraquara. Autor do livro O branco ante a rebeldia do desejo: Um estudo sobre o pesquisador branco que possui o negro como objeto científico tradicional. A branquitude acadêmica. (Appris, 2020). 

 

 

 

A democracia ameaçada

Por Clayton M. Cunha Filho* 

Professor de Ciências Sociais da UFC, doutor em Ciência Política(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Professor de Ciências Sociais da UFC, doutor em Ciência Política

A invasão do Congresso dos EUA em 6 de janeiro último por uma turba de militantes de extrema-direita, supremacistas brancos, fanáticos armamentistas e conspiradores do Q-ANON incitada pelo presidente não reeleito e em fim de mandato Donald Trump forneceu uma eloquente ilustração gráfica para o tão comentado fenômeno da retração democrática atualmente em curso ao redor do globo. E, ao mesmo tempo, forneceu a evidência que talvez ainda faltasse para quem ainda se negava a admitir que os Estados Unidos poderiam já estar vivenciando em algum grau os mesmos processos de erosão democrática e escalada autoritária já experimentados em tantas outras latitudes.

" ... a democracia precisa também de regras informais de convivência mútua entre os oponentes que evite convertê-la em uma disputa de vida ou morte que fatalmente terminará por destruí-la."

A eleição de Trump à presidência em 2016 já havia soado algumas trombetas de alarme, embora em grande medida minimizadas pela confiança depositada por muitos no papel moderador que a atribuída solidez das instituições e tradições democráticas estadunidenses exerceria sobre sua personalidade errática e de fortes tendências autoritárias. Ainda assim, rendeu a publicação do livro “Como as democracias morrem” (2018), no qual Steven Levitsky e Daniel Ziblatt analisam a deterioração democrática estadunidense das últimas décadas tomando por pano de fundo imediato os diversos atos autoritários e violações democráticas cometidas pelo governo Trump, e que se converteu em um best-seller praticamente imediato.

O argumento central do livro, que apresenta a eleição de Trump como a culminação de um processo de desgaste de regras de contenção que tinham salvaguardado a democracia estadunidense e agora a colocavam em risco, é que além de leis e instituições formais para funcionar a democracia precisa também de regras informais de convivência mútua entre os oponentes que evite convertê-la em uma disputa de vida ou morte que fatalmente terminará por destruí-la.

Na história dos EUA, tais regras informais não existiram sempre e uma das consequências foi a Guerra Civil do século XIX, após a qual gradualmente os partidos Republicano e Democrata teriam erigido um modus vivendi capaz de acomodar institucionalmente suas diferenças pelo menos até a década de 1960 do século XX, quando tais regras começaram a esgarçar-se gradualmente novamente até chegarmos aos tempos atuais, segundo os autores.

"...a democracia estadunidense somente funcionou de modo suave quando era um clube seleto de iguais."

No que pese os muitos méritos do livro, o problema é que apesar de eles admitirem que o que permitiu a construção das regras de tolerância mútua democrática entre as elites políticas pós-guerra civil foi a exclusão política das minorias não brancas e que o início da erosão dessas regras se deu com as políticas de inclusão dessas minorias, sua parte propositiva excessivamente enfocada no papel normativo de contenção das elites democráticas contra líderes autoritários como Trump (ou Bolsonaro?) acaba deixando ao leitor atento a lição de que a democracia estadunidense somente funcionou de modo suave quando era um clube seleto de iguais. Talvez a lição dos clássicos de que a democracia em contextos de desigualdade social extrema seria em última instância inviável tenha mesmo sido muito precocemente descartada, o que seria um péssimo presságio nestes tempos em que ela vem se acelerando em todo o mundo – inclusive nos Estados Unidos.

(*) Clayton M. Cunha Filho é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFC. Doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ

 

 

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