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Cultura sob a égide do autoritarismo
Reportagem Seriada

Cultura sob a égide do autoritarismo

De apologia ao nazismo à censura em editais culturais, o Governo Bolsonaro cria uma guerra cultural para minimizar o segmento a valores conservadores já conhecidos pelo Brasil
Episódio 3

Cultura sob a égide do autoritarismo

De apologia ao nazismo à censura em editais culturais, o Governo Bolsonaro cria uma guerra cultural para minimizar o segmento a valores conservadores já conhecidos pelo Brasil
Episódio 3
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Alemanha, 1933. Hitler é chanceler do Reich e Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda da Alemanha nazista. A Segunda Guerra Mundial ainda era um plano desconhecido pelo mundo, mas a propaganda nazista já estava se preparando para o futuro. Em carta enviada a diretores teatrais, Goebbels define: “A arte alemã da próxima década será heroica, será ferreamente romântica, será objetiva e livre de sentimentalismo, será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada.”

Corta para o Brasil, no dia 16 de janeiro de 2020. então secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, protagoniza um pronunciamento oficial com trilha sonora do compositor alemão Richard Wagner. Encarando o telespectador pela tela das televisões e computadores, o dramaturgo brasileiro parafraseia: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo, ou então não será nada”.

Dia 17 de janeiro de 2020. Alvim é demitido em decorrência da revolta causada pelo vídeo.

À direita, Goebbels, e foto de Hitler ao fundo. À esquerda, Alvim, e foto de Bolsonaro ao fundo.
À direita, Goebbels, e foto de Hitler ao fundo. À esquerda, Alvim, e foto de Bolsonaro ao fundo.

Mas por que relembrar esse episódio? Alvim não é mais secretário, passou menos de três meses na gestão. No entanto, a cena retrata bem a posição da Cultura para o Governo Bolsonaro. “Ser contra as expressões das artes é a melhor forma de manter um estado na perspectiva obscurantista”, explica Cláudia Leitão, ex-secretária de Cultura do Ceará (2003-2006), consultora em Economia Criativa e professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

 


Desvirtuando a cultura


Em 2003, o então ministro da Cultura Gilberto Gil ampliou a atuação das políticas culturais, de acordo com um conceito mais amplo da Cultura. O conceito, antes entendido como apenas a produção artística, virou tudo aquilo que os humanos produzem. Arte, gastronomia, comunicação, tecnologia, educação, esporte… Tudo entra no escopo da Cultura. Igualmente, entram as próprias questões humanas relacionadas à raça e ao gênero, por exemplo. 

“Existe uma dimensão antropológica na cultura: culturas são as nossas formas de ser, de viver e de estar no mundo. Desde o momento que a gente acorda de manhã até a hora de dormir”, exemplifica Cláudia Leitão. No entanto, ao tentar definir quais culturas e quais aspectos delas são aceitáveis, o Governo impede a manifestação da identidade brasileira.

 Pronunciamento do Presidente da República, Jair Bolsonaro.
Pronunciamento do Presidente da República, Jair Bolsonaro.

De acordo com o professor Antônio Albino Rubim, pós-doutor em Políticas Culturais, os artistas e intelectuais brasileiros sempre foram perseguidos pelos governos autoritários com o passar dos anos. Inversamente, o autoritarismo também tem a “tradição de intervir no campo da Cultura”.

É tanto que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), foi criado no Estado Novo. Mais tarde, a Fundação Nacional de Artes (Funarte) é criada na Ditadura Militar. Se para bem ou para mal, reflete Rubim, apenas os usos dos órgãos podem dizer.

Com Bolsonaro, a influência destacou-se especialmente no fechamento da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC). Até 2020, a CNIC era composta por técnicos de todas as áreas culturais responsáveis pela avaliação dos projetos concorrentes aos recursos da Lei Rouanet (nº 8.313/1991). Após discussão pública, eram sugeridos ao ministro ou secretário da Cultura quais projetos estavam mais aptos a serem aprovados.

 

 

No entanto, em 2021 a CNIC foi descontinuada. De todas as revisões técnicas que os projetos eram submetidos, a decisão do que valia receber capital ou não ficou toda nas mãos do secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura - o capitão da Polícia Militar da Bahia André Porciuncula Alay Esteves.

Pela Portaria nº 24, de 24 de dezembro de 2020, a secretaria definiu um limite mensal de 120 projetos culturais aprovados. Dessa forma, seriam 1.440 aprovados em 2021, contra os 4.492 projetos beneficiados pela Lei Rouanet em 2020. A queda é de 32%. Além disso, ela estabeleceu prioridade aos projetos relacionados ao Patrimônio Cultural para a captação dos recursos.

No dia 7 maio de 2021, o secretário Especial da Cultura Mário Frias participou de uma live sobre cultura e arte cristã, na qual afirmou que “o governo federal não tem obrigação de bancar marmanjo."

As restrições definidas pela portaria motivaram a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a apresentar uma ação civil pública contra “o desmonte da cena cultural no País”. No documento, a entidade argumenta que “o não funcionamento” e a “paralisação” da Lei Rouanet lesionam a “dignidade do povo brasileiro, por conta do enfraquecimento de vínculos com os ideais, estéticas e símbolos que traduzem o real sentimento de pertencimento a um país e sua cultura, imprescindíveis ao bem comum”.

O POVO entrou em contato com a Secretaria Especial de Cultura três vezes para entrevistar o secretário especial Mario Frias, mas não obteve retorno.

 


Guerra cultural


Termo cunhado pelo sociólogo James Davison Hunter, em 1991, a guerra cultural é uma briga de narrativas. No livro Guerras culturais: a luta para definir a América, o autor explica que a economia deixou de ser protagonista no debate político estadunidense, quase substituída pelo interesse em dominar as instituições sociais e culturais.

“Houve uma apropriação política do livro de James D. Hunter pela direita neoconservadora [...]. Para eles, cada demanda progressista precisava ser combatida em nome das tradições que definiam a sociedade estadunidense. Preservar a família tradicional, o casamento heterossexual, a hierarquia patriarcal, a desigualdade racial, dentre outras posições de retaguarda, seriam as tarefas políticas primordiais desses grupos”, descreve Márcio Tavares, historiador e Secretário Nacional de Cultura do Partido dos Trabalhadores (PT), no livro Cultura e Política no Brasil atual.

Presidente Jair Bolsonaro em Culto Interdenominacional das Igrejas de Anápolis.
Presidente Jair Bolsonaro em Culto Interdenominacional das Igrejas de Anápolis.

Os grupos bolsonaristas adotaram a mesma lógica. Seja com os “clássicos de delinquência” expulsos da Fundação Cultural Palmares (FCP), seja na censura a conteúdos LGBTQI+ em editais culturais - tudo é uma tática para apequenar as contribuições culturais para a construção da cidadania brasileira.

Para o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a batalha contra tudo o que pode ser “de esquerda” é projeto: “O Governo Bolsonaro não tem incoerências. Ele prometeu tudo isso e realizou o que prometeu na campanha”, destaca Cláudia Leitão.

"Não admitiremos que a Ancine faça peças ditas culturais que vão contra os interesses e nossa tradição judaico-cristã." Presidente Jair Bolsonaro.


Uma das identidades almejadas a emoldurar a identidade brasileira é a cristã. Na época da renúncia do primeiro secretário especial de Cultura do Governo Bolsonaro, Henrique Pires, um edital com linha LGBT tinha sido suspenso. "Para mim, isso tem nome. É censura", afirmou o então secretário em entrevista ao jornal O Globo.

Presidente Jair Bolsonaro no Fórum de Investimentos Brasil 2021 (videoconferência).
Presidente Jair Bolsonaro no Fórum de Investimentos Brasil 2021 (videoconferência).

“Nós não queremos, nem censuraremos ninguém, mas não admitiremos que a Ancine faça peças ditas culturais que vão contra os interesses e nossa tradição judaico-cristã”, afirmou Jair Bolsonaro, no dia 12 de agosto de 2019, duas semanas antes da demissão de Pires.

Já em novembro de 2019, em videoconferência ao 3º Simpósio Nacional Conservador, o presidente voltou a mencionar a “guerra da informação”. “Nós não podemos perder a guerra da informação, deixamos tudo isso muito à vontade no passado. Estamos preparando mudanças aí na questão da cultura, da Funarte, da Ancine. Muita gente empregada lá em cargos de comissão desde o primeiro ano do governo Lula.”

“O que vem do governo federal são políticas anti-culturais. É um retrocesso civilizatório”, critica o professor Antonio Rubim. Segundo ele, “o estrago é gigantesco” e será difícil reerguer a Cultura brasileira. Por outro lado, os estados e municípios - principalmente os nordestinos - viram resistência ao desmonte cultural.

Secretário Especial da Cultura, Mário Frias durante cerimônia na Biblioteca Demonstrativa de Brasília.
Secretário Especial da Cultura, Mário Frias durante cerimônia na Biblioteca Demonstrativa de Brasília.

 

 

 

“Nordeste é a vanguarda do Brasil”


Em vários sentidos, a gestão do presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) colocou os estados e municípios como protagonistas. Na Cultura, os secretários estaduais e municipais que precisam suprir a lacuna do Governo Federal. Nesse contexto, o Nordeste se mostrou melhor organizado - com a criação do Consórcio Nordeste, em 2019, a região tem unido forças para o desenvolvimento nordestino.

“O Nordeste é a vanguarda do País”, define Antônio Rubim, também ex-secretário de Cultura da Bahia. Na análise do pesquisador, a experiência do consórcio demonstra como a autonomia dos estados é vantajosa para o País.

Afinal, enquanto o Brasil enfrenta um “retrocesso civilizatório” na Cultura - assim definido por Rubim -, os efeitos do desmonte podem ser reduzidos com o reforço do federalismo. Nesse sentido, o Ceará é modelo em políticas públicas culturais, pontua.

“A postura do Estado, por exemplo, em relação à Lei Aldir Blanc. Alguns estados, tendo a lei aprovada, simplesmente tiveram uma dificuldade imensa de lidar com os recursos e não foram atrás de iniciativas. Já o Ceará teve protagonismo na execução da lei”, elogia o pesquisador.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 18-08-2017: Fabiano Piuba, secretário de Cultura do Estado. Programa de TV do Anuário do Ceará - TV O POVO. (Foto: Fábio Lima/O POVO)
FORTALEZA, CE, BRASIL, 18-08-2017: Fabiano Piuba, secretário de Cultura do Estado. Programa de TV do Anuário do Ceará - TV O POVO. (Foto: Fábio Lima/O POVO)

Em entrevista ao O POVO, o secretário de Cultura do Estado do Ceará, Fabiano Piúba, informou que os secretários de Cultura do Nordeste sugeriram a criação da Câmara Temática de Cultura, dentro do Consórcio Nordeste. Por meio dela, o setor ganharia força em desenvolvimento e execução de políticas públicas. E o governador Camilo Santana (PT) terá papel essencial na aprovação da Câmara, afirma Piúba, considerando a imagem positiva que o Ceará tem na gestão cultural.

Uma das estratégias bem vistas da Secult-CE é o Mapa Cultural do Ceará, ferramenta que mapeia os trabalhadores e os equipamentos de cultura no Estado. Segundo o Mapa, 88.166 pessoas e coletivos trabalham com Cultura no Ceará - entre artistas, pesquisadores e gestores culturais. Os dados foram extraídos no dia 25 de maio.

De acordo com Ari Areia, ator e membro do Fórum Cearense de Teatro e do Fórum Cearense de Artistas Negros, a Secult-CE consegue manter um bom diálogo com os artistas - especialmente na pandemia, em que houve uma “sensibilidade” por parte da secretaria estadual. Já quando o assunto é a pasta de Cultura de Fortaleza (Secultfor), o ator vê a gestão com certa preocupação. “Já estamos há mais de seis meses e não temos ideia de qual é o plano. A Secultfor precisa reagir”, justifica.

"A cultura precisa ser compreendida como um direito. Todo mundo precisa ter acesso a uma biblioteca perto de casa. Assim como, a cada tantos mil habitantes, tem que ter um hospital, tem que ter uma delegacia, tem que ter uma escola." Ari Areia, ator cearense.


Segundo o secretário de Cultura de Fortaleza, Elpídio Nogueira, as prioridades da Secultfor estarão voltadas para o patrimônio histórico cultural da Capital, a partir da análise de 55 equipamentos tombados. “A classe artística quer condições de exercer sua arte, em ambientes adequados”, afirma o secretário. Para isso, comenta, a gestão se tranquiliza por ter um fundo municipal para a cultura, tornando-a independente das verbas federais.

Ari Areia, ator e militante da causa LGBT. Foto de arquivo tirada antes da pandemia.
Ari Areia, ator e militante da causa LGBT. Foto de arquivo tirada antes da pandemia.

“A cultura é trabalho. Cultura não é um passatempo, não é um hobby”, complementa Ari. Desde antes da pandemia, a classe artística do Ceará tem enfrentado a crise econômica; por isso, era possível ver centenas de artistas financeiramente afetados já nos primeiros meses da Covid-19 no Estado.

Mesmo na articulação de artistas, afirma o ator , é o Ceará que mais se destaca, com representantes ocupando cadeiras no Conselho Estadual e Municipal de Cultura.

“A nossa luta, de forma muito objetiva, não é sobre o secretário de cultura gostar de mim ou não; é para que a política pública seja executada. Quando o movimento de cultura defende essas partes, o artista tá defendendo o acesso à cultura como um direito da população brasileira”, reforça.

 

 

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Vivemos tempos que serão lembrados

por Rachel Gadelha*

 

Rachel Gomes é diretora presidenta do Instituto Dragão do Mar, Gestora e Produtora Cultural.
Rachel Gomes é diretora presidenta do Instituto Dragão do Mar, Gestora e Produtora Cultural.

O governo do presidente Lula mudou o paradigma da política cultural do País. Vivenciamos um período em que a cultura foi considerada estratégica, com apoio político e social, e uma percepção transversal de sua relevância, compreendida em sua dimensão antropológica, cidadã e econômica. Governo em que foram executados importantes programas e políticas públicas, respaldadas por marcos legais e ampla participação popular.

As crises políticas que atravessam o País e culminaram na eleição de Jair Bolsonaro trouxeram imensos desafios a todo o sistema cultural brasileiro. Assistimos incrédulos ao desmonte de políticas culturais que julgávamos importantíssimas e irreversíveis. Em um curto espaço de tempo, presenciamos a extinção do Ministério da Cultura; a alternância e desqualificação dos gestores da cultura no âmbito federal; o desmonte gradual, crescente e planejado de diversas políticas e instituições culturais relevantes; a percepção pública do artista e da arte como inimigos a serem combatidos e a demonização da Lei Rouanet - para citar só alguns exemplos.

Mas, felizmente, também observamos reações em todo o País na defesa da manutenção das conquistas como debates, mobilizações sociais, formação de fóruns e associações, dentre outras. A atuação da sociedade civil assume um caráter de extrema relevância.

"A vida não está fácil para quem trabalha com arte e na cultura no Brasil hoje."


Os agentes culturais se reúnem e se reinventam, em diversos lugares desse Brasil profundo, tentando permanecer vivos, ativos e criativos, realizando projetos e buscando alternativas de sustentabilidade e ativação de um mercado possível. Toda essa potência e vitalidade vem associada a muita dor, desalento e desesperança. A vida não está fácil para quem trabalha com arte e na cultura no Brasil hoje.

Presidente Jair Bolsonaro em encontro com alunos do Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais da PMDF.
Presidente Jair Bolsonaro em encontro com alunos do Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais da PMDF.

O Ceará tem se destacado nesse contexto tão sombrio. Temos um governo sensível à cultura que atua com políticas culturais consistentes e ações concretas. Camilo Santana tem dado à pasta a atenção que esta merece e essa gestão já é uma referência nacional.

Podemos contabilizar - a despeito de tantos problemas sociais, sanitários e políticos do Brasil e do estado - muitas vitórias no campo da cultura: uma Secretaria da Cultura respeitada por sua atuação; incremento nos investimentos públicos; reforma e construção de novos equipamentos culturais; concurso público para o setor; estruturação de programas, políticas e marcos legais; ampliação de políticas inclusivas, dentre outros.

Tudo construído com intensa participação social. Fabiano Piúba, secretário de cultura do Ceará, radicaliza na sua crença de que não se faz gestão cultural na primeira pessoa do singular.

Fabiano Piúba, secretário de Cultura do Estado. (Foto: Mauri Melo/O POVO)
Fabiano Piúba, secretário de Cultura do Estado. (Foto: Mauri Melo/O POVO)

Realizações que fizeram com que o Ceará assumisse um lugar de destaque na atual política pública de cultura nacional. Protagonismo, liderança e atuação política perceptíveis na implantação da Lei Aldir Blanc, compartilhada com outros estados, municípios, agentes políticos e sociais.

Para além de evidenciar a força e a autonomia dos estados, mostrou que os agentes culturais do país estão ativos e que os novos tempos pedem união, compartilhamento, força, esperança e afetos.

Os desafios são muitos, o futuro é incerto. Precisamos estar alertas, sem esquecer das pequenas delicadezas e ideais que nos movem. No Ceará, podemos afirmar que, apesar de tudo, vivemos tempos que serão lembrados....

* Rachel Gadelha é diretora presidenta do Instituto Dragão do Mar, Gestora e Produtora Cultural e mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Autora do livro “Produção Cultural: conformações, configurações e paradoxos” (2015)

 

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