Enquanto eu chorava sem conseguir dormir com medo de pegar meningite no início dos anos de 1970, minha mãe se aproximou da rede, olhou para o meu sofrimento de criança e disse algumas palavras de conforto. Eu entendi que ela me dava a certeza que ninguém de minha casa iria pegar a doença. O gesto simples me acalmou e eu acreditei na confiança daquela mulher de fé. A partir dali, foi mais fácil não se preocupar muito com a epidemia, que em época de ditadura, não tinha muita informação.
Hoje, no meio da pandemia de Covid-19, passados 50 anos daqueles dias, queria ter o poder da minha mãe para passar aquela confiança, sentir e aliviar o coração jovem de meu filho. Ele não reclama de ter que ficar em casa a maior parte do ano passado, enquanto se preparava para fazer o Enem, nem de deixar de ir ao cinema, um lazer que ama. Ele também não esboça lamento pela falta de passar horas nas livrarias catando um ou outro livro para levar para casa. Mas eu sinto que ele, que ama não sair de casa, também está inquieto.
Por isso, como mãe, gostaria de ter ficado calma para deixá-lo confiante, quando soube, em janeiro deste ano, que havia contraído Covid-19, na mesma semana em que ele ia fazer a primeira prova do Enem. O medo era que ele também se contaminasse e não tivesse como fazer o exame. Ou ainda que eu e meu marido, também doente, fôssemos parar no hospital (coisa que não aconteceu) e não encontrássemos uma pessoa mais próxima para cuidá-lo.
Por aqueles dias, não fiquei calma como minha mãe me pareceu ser quando precisei e me vi imperfeita como mãe naquele momento importante para meu filho. Pensei em ter o poder de minha mãe, mas me vi suscetível e instável. Besteira minha. Estamos numa pandemia. É compreensível mulheres/mães se sentirem impotentes, com um aperto na alma, com vontade de correr porta à fora e por vezes dormir. É normal se sentir esgotada em alguns dias, mas mesmo assim ter coragem para recomeçar no dia seguinte em nome do amor.
" Ninguém tem a costura de como será o amanhã ou as próximas horas, mas é inegável e imprescindível parar e sentir as pequenas coisas."
Pensando nessa minha história banal vi como ela se aproxima da vida de outras mães que mostramos a seguir três narrativas diferentes de mulheres e de como elas enxergam a maternidade em meio à Covid-19. Elas mostram que ser mãe em 2020 e 2021 tem muitas faces com dias bons e dias ruins, pois assim é a vida. Só que agora estamos mais cansadas.
Contrair Covid, por mais leve que seja, ou enfrentar a pandemia, deixa a gente insegura. Aprendi, porém, neste ano em que o aconchego faz falta, que o viver é mesmo inconstante. Ninguém tem a costura de como será o amanhã ou as próximas horas, mas é inegável e imprescindível parar e sentir as pequenas coisas. Olhar pela janela para enxergar vida, sentir o prazer da água caindo no corpo na hora do banho (imaginar ali uma cachoeira), ver as paisagens de cidades postadas em contas de redes sociais, prestar atenção nas flores enviadas por amigas nos grupos de confraria, ver um bom filme com a família, deitar no colo do marido, cheirar a cabeça do filho e ouvir a música preferida, são momentos bons que quero expressar por aqui. É preciso também entender: não é somente você que está se sentindo instável. Somos todos nós.
PS: Ao esboçar esse texto, me veio à memória que Artur nasceu poucos meses antes da derrubada das Torres Gêmeas; descobriu que é autista aos 5 anos e conseguiu passar em duas faculdades públicas em meio a uma pandemia que levou muitas vidas. Sim, ele não se contaminou e foi fazer as provas. Eu fiquei em casa trancada com o coração na mão. Ele terá muitas histórias para contar. Foi muito bem acolhido pela rede de proteção da Uece. Iniciou o semestre na faculdade com aulas online, sentado em frente ao computador e sem o importante contato físico dos primeiros dias com a turma. Ele se mostra feliz com as conquistas. Pensei também que pode ser que, no futuro, ele não me veja como a mãe estressada que se desesperou em meio à aflição de ter contraído Covid-19, mas como a pessoa imperfeita que também soube mostrar caminhos em tempos difíceis.
Tânia Alves. Jornalista e mãe e filho único. Isso significa alguma coisa? Não sei.
Um desabafo: Quando a vida da filha foi atravessada pela Covid-19
Quantos “e se…?” cabem no coração de uma mãe aflita quando a vida do seu filho está em risco? No caso da secretária administrativa Eurisdênia Soares, de 39 anos, foram muitos: “E se eu não trabalhasse em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em plena pandemia?”, “E se eu não tivesse pego Covid?”, “E se eu não tivesse deixado ela cuidar de mim, ainda que com todos os cuidados, quando eu mais precisei?”, “E se eu tivesse feito alguma coisa diferente?”... Embora ela não pudesse ter 100% de controle sobre nenhuma destas variáveis e tampouco seja justo atribuir a si o que ocorreu, perguntas como essas e o sentimento de culpa fizeram parte da rotina dela ao longo dos doze dias em que a única filha, Samyra, de 17 anos, ficou na UTI por causa da Covid-19, em maio do ano passado.
“Foi muito difícil, como eu estava trabalhando em uma UPA, que é linha de frente, sabia que corria o risco de acontecer o que aconteceu, mas era tudo o que eu menos queria. E tomava todos os cuidados para evitar. Mas, quem pegou a Covid aqui em casa primeiro fui eu e fiquei com aquele sentimento terrível de culpa depois que a minha única filha ficou doente.”
"Foi como ganhar na loteria, ver o rostinho dela, mexendo as mãos. Foi a maior vitória da minha vida, nunca tínhamos passado tanto tempo longe uma da outra."
Além da filha, Eurisdênia mora com a mãe, de 70 anos, no bairro do Mondubim, em Fortaleza. No início de maio, assim que começou a apresentar os primeiros sintomas, de febre, tosse, dor no corpo e problemas nos rins, a primeira providência adotada foi se isolar no quarto. “Eu fiquei isolada por 14 dias no quarto e neste período, a gente restringiu ao máximo o contato justamente pelo medo de contaminá-las. Mas, era a Samyra quem ia levar as coisas para mim no quarto. E muitas vezes sentia que ela não entendia quando eu brigava que ela não podia ficar muito perto. Ao mesmo tempo, também via que ela estava preocupada comigo, achando que eu podia estar com falta de ar e escondendo alguma coisa.”
No fim daquele mês, a menina começou a apresentar os sintomas, mas a evolução da doença foi muito mais rápida e grave. “Foi tudo muito rápido, no quinto dia do antibiótico, ela começou a ter falta de ar, levei na UPA do Pajuçara, onde eu trabalho, e no dia 30 internou. No dia 1º, a Samyra teve que ser transferida às pressas para o Hospital Infantil Albert Sabin porque a saturação tinha caído a 40 e tiveram que intubá-la. Ela estava também com derrame pleural e hemorragia interna.”
Neste período, Eurisdênia relata que foi como se a vida dela também estivesse ficado em suspenso. E, mesmo sabendo que não poderia fazer visitas, ia diariamente para frente do hospital, em busca de informações. Também não conseguia se alimentar direito. E sequer as dores que ainda sentia como sequelas da doença ficaram em segundo plano. “Foi o pior momento da minha vida, de desespero mesmo. Como uma mãe vive desse jeito? Porque a gente não podia estar perto, recebia o boletim uma vez por dia, e teve momentos em que a própria equipe que estava cuidando dela já estava desanimada porque o quadro dela só piorava e eu, no meu coração, só suplicava a Deus para que recuperasse a saúde dela.”
A boa notícia veio no 12º dia de UTI, quando soube por meio de uma ligação da equipe médica que a própria jovem tinha tirado o tubo e já conseguia respirar sozinha. No dia seguinte, seria autorizada uma chamada de vídeo. “Foi como ganhar na loteria, ver o rostinho dela, mexendo as mãos. Foi a maior vitória da minha vida, nunca tínhamos passado tanto tempo longe uma da outra.”
"Eu me sinto muito grata de poder comemorar neste ano mais um dia das mães junto com ela, quando muitos não tiveram a mesma chance. Por isso, sempre que tenho oportunidade, digo para as pessoas o quanto é importante se cuidar."
Os dias que se seguiram não foram exatamente fáceis. Foram 28 dias ainda internada, sessões de fisioterapia para recuperar a fala e os movimentos; muitos remédios, mas a esperança e a alegria de poder ajudar a filha nesta retomada deram às duas um outro sentido para vida. Hoje, aos 18, Samira não apresenta mais nenhuma sequela e está estudando para conclusão do ensino médio.
“Eu me sinto muito grata de poder comemorar neste ano mais um dia das mães junto com ela, quando muitos não tiveram a mesma chance. Por isso, sempre que tenho oportunidade, digo para as pessoas o quanto é importante se cuidar, que essa pandemia não é brincadeira, porque a gente não sabe como esse vírus vai afetar o nosso organismo e de quem a gente ama.”
>> Conheça a repórter
Irna Cavalcante - Sou jornalista e mãe de quatro filhos. E desde que me tornei mãe, não lembro de um único dia sequer, em que a vida deles não pautou minhas escolhas, das menores às maiores. Com a pandemia, assim como a Eurisdênia e tantas outras mães, o cuidado redobrado, o medo, a eterna sensação de culpa (ainda que indevida) e o desgaste emocional pelo contexto atual também passaram a fazer parte da minha rotina com maior frequência.
A experiência de mulheres que foram mães durante a pandemia