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Napoleão: quem foi o outro dragão da liberdade no Ceará, antes do Dragão do Mar
Reportagem Seriada

Napoleão: quem foi o outro dragão da liberdade no Ceará, antes do Dragão do Mar

HISTÓRIA | José Luís Napoleão, um personagem quase "apagado" da "Greve do Jangadeiros", teria liderado na praia a revolta que, há 140 anos, acabou com o comércio de escravizados no Porto de Fortaleza
Episódio 1

Napoleão: quem foi o outro dragão da liberdade no Ceará, antes do Dragão do Mar

HISTÓRIA | José Luís Napoleão, um personagem quase "apagado" da "Greve do Jangadeiros", teria liderado na praia a revolta que, há 140 anos, acabou com o comércio de escravizados no Porto de Fortaleza
Episódio 1
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Conta a história que o negro Francisco José do Nascimento (1839-1914), o Dragão do Mar, foi o líder do fechamento do Porto de Fortaleza. Uma greve de jangadeiros que, há 140 anos — nos dias 27, 29 e 30 de janeiro de 1881, desencadeou o fim da escravidão no Brasil a partir do Ceará.

Dragão do Mar, identidade heroica que transportou Francisco José do Nascimento desde o tempo do Império pela memória e pela história até aqui, teria liderado o movimento radical puxado abolicionistas brancos da Sociedade Cearense Libertadora (SCL) e por jangadeiros. Era um basta no comércio de escravizados pelo porto de Fortaleza, no Ceará. A primeira província do País a se rebelar.

Dragão ou Chico da Matilde, no entanto, não foi o único protagonista na ação que trancou o porto.  O ato mais ousado que se tem notícia no Ceará contra o sistema escravocrata. José Luís Napoleão, chefe da capatazia da importadora/exportadora Boris-Frères, teria liderado os jangadeiros que interromperam o leva e traz negros nas embarcações.

 

Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, na imagem retratada que chega aos dias atuais, o herói jangadeiro que a história imortalizou, uma das lideranças do movimento abolicionista para acabar com o comércio pelo mar de escravizados para o Ceará(Foto: REPRODUÇÃO)
Foto: REPRODUÇÃO Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar, na imagem retratada que chega aos dias atuais, o herói jangadeiro que a história imortalizou, uma das lideranças do movimento abolicionista para acabar com o comércio pelo mar de escravizados para o Ceará

Em 28 de janeiro de 1881, um dia depois do início da revolta dos jangadeiros, o jornal Gazeta do Norte, de Fortaleza, destacou a liderança do cearense José Napoleão. Um ex-escravizado nascido em Icó.

"A frente da greve dos lancheiros contra o embarque de escravos achava-se o liberto José Napoleão, que, há poucos annos, tendo conquistado sua liberdade, consagrou-se com incansável dedicação ao sublime dever de libertar suas quatro irmãs, o que conseguiu a custas de esforçadas lides (grafia da época)", informou o periódico.

O registro da matéria está na dissertação de mestrado de Saulo Moreno Rocha, "Esboço de uma biografia de musealização — o caso da jangada libertadora". O museólogo e educador do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (UFC) não teve como objeto (específico) de estudo a vida e a participação de  Napoleão e Tia Simôa, sua companheira,  na greve.   

Saulo Moreno pontua que, "até o momento, uma das lacunas da historiografia sobre a abolição no Ceará diz respeito às atuações de Napoleão e sua esposa nas agitações políticas promovidas pelos jangadeiros" em janeiro de 1881.

A Sociedade Cearense Libertadora (SCL) fundou o jornal "Libertador". Veículo de difusão dos ideais abolicionistas e das ações pela abolição da escravidão(Foto: REPRODUÇÃO)
Foto: REPRODUÇÃO A Sociedade Cearense Libertadora (SCL) fundou o jornal "Libertador". Veículo de difusão dos ideais abolicionistas e das ações pela abolição da escravidão

Mestre em em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins, Saulo Moreno não desconsidera o papel desempenhado por Dragão do Mar. E observa que "explicar apagamentos, silenciamentos e ocultações na História não é tarefa simples. Ainda mais quando estamos falando de sujeitos excluídos das balizas da cidadania. De como foram sendo construídas no Brasil, especialmente no pós-independência. E, principalmente, no pós-abolição".

Segundo o pesquisador, "José Luís Napoleão e Maria Simôa da Conceição viveram, como indicam as fontes históricas disponíveis, a experiência da escravidão. Diferente de Francisco José do Nascimento, o famoso Dragão do Mar, que era um homem livre", anota Saulo.

Em 30 de agosto de 1881, sete meses depois da primeira greve,  houve uma nova tentativa de embarque de escravizados na capital do Ceará. Chico da Matilde é apontado, aqui, como líder do desdobramento do episódio que mais foi incorporado à história da abolição em Fortaleza. Não haveria registro do papel desempenhado por José Luís Napoleão e outros jangadeiros.

Greve dos Jangadeiros - Abolição 7(Foto: Ilustração Carlus Campos)
Foto: Ilustração Carlus Campos Greve dos Jangadeiros - Abolição 7

Para se compreender como uns entram para as escritas da história e outros não, explica o museólogo, "é preciso aceitar, também, que tais escritas e exercícios de memória não são neutros ou isentos de ideologias. São permeados por marcadores sociais de exclusão e produção de desigualdades. E ainda por experiências, lugares simbólicos e concretos que ocupam os indivíduos que lembram e consagram certos agentes".

As interrogações deixadas pela Greve do Jangadeiros estão entre as motivações para a criação do Instituto de Formação sobre a história e a cultura negra no Ceará. Instituição que levará o nome de José Napoleão. José Hilário Sobrinho, sociólogo e também mestre em História pela UFC, escreve sobre o assunto a seguir.

 

>> Artigo

140 anos do movimento dos jangadeiros

José Hilário Ferreira Sobrinho *

Em 27, 29 e 30 de janeiro de 1881, há 140 anos atrás, aconteceu na capital do Estado do Ceará um movimento de importância capital: um grupo de jangadeiros negros recusaram a embarcar os cativos que estavam sendo negociados no tráfico interprovincial em suas jangadas. Temos aqui um grupo de negros e negras libertos que encontraram o momento certo para enfrentar os grandes negociantes e negreiros da Província do Ceará ao recusarem o embarque de seus irmãos e irmãs.

 Hilario Ferreira, professor, escritor e sociologo(Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Hilario Ferreira, professor, escritor e sociologo

Essa é uma nova abordagem sobre esse episódio. E não se encontra presente nos livros oficiais que tratam desse assunto. Por quê? Porque durante décadas a produção histórica sobre esse evento procurou abordar esse tema a partir de uma perspectiva que ignorasse a participação do povo negro escravizado. Portanto, a lógica narrativa era a da abolição sendo resultado da luta de um grupo de jovens brancos, comerciantes de classe média. Nessa abordagem, os negros, os mais interessados pela liberdade, aparecem como coadjuvantes. Ao compreendermos isso, entenderemos a razão de personagens negros e negras, que tiveram participação importantíssima nesse movimento, como o liberto José Napoleão e sua esposa Preta Tia Simóa e tantos outros, terem suas histórias apagadas da história do Ceará.

Foi intensa a luta dos escravizados pela liberdade, e mesmo havendo uma ação intencional de apagar suas histórias, ela conseguiu romper essa barreira e aparece materializada num personagem como o Dragão do mar, indicado pelo liberto José Napoleão quando este recusou assumir o movimento abolicionista logo após o episódio da praia.

José Napoleão é quem foi o líder do movimento. Ele era jangadeiro. Penso que nestes 140 anos desse evento é mais que urgente resgatar a história desse líder negro. Ele lutou e se recusou a compactuar com a venda de seus irmãos e irmãs que eram negociados no tráfico entre províncias. Falar da vida do velho José Napoleão é romper uma abordagem histórica preconceituosa. É falar de luta, solidariedade e resistência dos negros e negras contra uma ordem que os oprimiam.

Nessa perspectiva é que está nascendo o Instituto de Formação José Napoleão. Um instituto que nasce com o compromisso de retirar da invisibilidade a história, a cultura, os saberes e fazeres e as vivências dos negros e negras cearenses.

* José Hilário Ferreira Sobrinho é sociólogo e mestre em História Social pela UFC. Autor do livro Catarina, minha nêga, tão querendo te vendê

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