Parque urbano, área de preservação ambiental ou polo de lazer? Afinal, o que é a Lagoa da Maraponga? Um dos mais conhecidos espelhos d’água de Fortaleza é, pelo menos desde o fim da década de 1980, objeto de disputas para usos considerados mais adequados a cada interesse.
Aqueles que decidem descobrir a natureza do lugar, podem se surpreender. Árvores centenárias que resistiram à urbanização do bairro, pássaros que as fazem de morada, aves que se alimentam dos peixes na lagoa, borboletas e outros pequenos insetos. Importante parte do sistema hídrico da Capital, a área é relevante pelas espécies que abriga e pelo equilíbrio climático e ambiental que promove.
No entanto, as riquezas presentes nos 95 mil m² de espelho d’água e os mais de 310 mil m² de área verde da Área de Preservação Ambiental (APA) se tornaram opacas ao longo dos anos. Quem passa pela movimentada avenida Godofredo Maciel enxerga uma grande extensão de calçamento quebrado, uma diversidade de espécies arbóreas, gramíneas e arbustos sem poda. Sacos de lixo e embalagens descartadas incorretamente são frequentes no local. À noite, a iluminação é escassa.
A Lagoa da Maraponga está localizada no sudoeste de Fortaleza e faz parte da bacia fluvial do Rio Cocó, estando interligada às outras microbacias da Cidade. Sua profundidade máxima pode chegar a quatro metros. Com a ação humana, parte da vegetação e dos animais nativos da área foi destruída ou substituída.
Ainda assim, a biodiversidade é evidente para aqueles que param e se atentam ao local. Entre a flora se destacam palmeiras como a carnaúba (Copernicia prunifera), o babaçu (Attalea speciosa) e a macaúba (Acrocomia intumescens), de elevado potencial econômico, sendo utilizadas como alimentícia e medicinal. Árvores frutíferas nativas como o cajueiro (Anacardium occidentale) e o juazeiro (Ziziphus joazeiro) também podem ser observadas. "Além de espécies herbáceas de potencial ornamental, que são observadas nas margens da lagoa, como o amoroso (Hydrolea spinosa) e a corda-de-viola (Pavonia cancellata)”, enumera Valéria Sampaio, professora de Ciências Biológicas na Universidade Estadual do Ceará.
“É uma das poucas áreas verdes dentro da cidade que permanece com a sua flora nativa. São áreas importantes para o bem-estar da população e para o meio ambiente”, enfatiza Valéria. Em 2018, a professora, seu colega Eliseu de Lucena e o estudante de Geografia Gabriel Mendes realizaram um levantamento da flora da APA. Na época, foram catalogadas de 89 espécies de plantas distribuídas em 33 famílias botânicas, sendo a maioria delas endêmicas do Brasil. “Mas o número é com certeza maior. Éramos poucas pessoas e, devido à falta de segurança, precisamos ser rápidos na coleta e identificação no local”, explica. “Até hoje, todas as vezes que vamos na lagoa, encontramos novas espécies.”
A unidade não tem um catálogo oficial de sua fauna. Um relatório de impacto ambiental realizado em 1991 aponta que peixes, crustáceos e moluscos eram facilmente encontrados na lagoa. Nas suas margens, aves como jaçanã, anu-preto, sibite, beija-flor e lavadeira, além de mamíferos como soim e preá eram comuns.
Em outubro de 1990, a construtora OAS deu início ao desmatamento necessário para a construção de 1.558 apartamentos do empreendimento imobiliário Parque Maraponga. O loteamento previa "o reencontro do homem com a natureza", uma "ocupação racional" e o lançamento dos efluentes na lagoa, após passarem por uma estação de tratamento de esgotos. Enquanto tramitava, o projeto foi denunciado por ecologistas.
A construção foi embargada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama); e movimento ambientalista organizou protestos no local e em frente à Prefeitura, além de articulações entre diversos grupos da sociedade civil. Dessa mobilização resultou um abaixo-assinado pela preservação da Lagoa e sua área verde, firmado por mais de 14 mil fortalezenses.
Em abril daquele ano, a Lei Municipal nº 6.833 instituiu a região como Área de Proteção Ambiental (APA). Cinco meses depois, o Conselho Estadual do Meio Ambiente aprovou o Relatório de Impacto no Meio Ambiente e autorizou a construção de 416 apartamentos. Após a construção do condomínio iniciaram outras denúncias, como de despejo de esgoto na lagoa. Toda essa história está documentada nas páginas do O POVO.
A lagoa foi regulamentada somente prestes a completar sua “maioridade”, em 24 de março de 2019 pelo decreto nº 14.389. Passadas duas décadas, o local não tem um plano de manejo e sequer um levantamento oficial de sua biodiversidade. De acordo com a Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), um Conselho Gestor está em fase de planejamento para posterior implantação.
As transformações repercutem na forma de utilização do ambiente. Como partes interdependentes, as mudanças no funcionamento socioeconômico e cultural refletem em alterações na dinâmica ambiental. “A gente fazia piquenique aqui junto com a família. O que existia eram os moradores que tinham seus sítios e não tinha perigo de nada. Hoje em dia é impossível”, comenta a professora Isorlanda Caracristi, que vive no bairro desde 1977.
“Dia de domingo, as pessoas vêm, montam barracas e aproveitam a lagoa, mesmo sendo imprópria para banho. Eu acho legal, a população tem que estar aqui mesmo. O problema é a falta de estrutura para ter um uso sustentável”, afirma sobre as dinâmicas que atualmente predominam no entorno. “Era para ter atividades de educação ambiental, segurança, banheiro público, da mesma forma que foi feito no Cocó”, opina.
A falta de segurança e infraestrutura adequada também é apontada por Alessandro Furtado, morador do Residencial Parque Maraponga, condomínio construído nas margens da lagoa, há 11 anos. “Desde que moro aqui, nunca vi a Lagoa ser urbanizada. O pessoal ao redor evita andar lá porque não tem segurança, é mal iluminado, é limpo uma vez ao ano…”, conta. Alessandro é comerciante e é um dos membros da coordenação do condomínio composto pelos 614 apartamentos construídos antes do embargo e suspensão do empreendimento em 1990.
O abandono do local é evidente e, em publicação feita em 2010, a Secretaria do Meio Ambiente do Ceará (Sema) indica que a Lagoa da Maraponga, “assim como vários outros parques e polos de lazer de Fortaleza, não dispõe de equipamentos atrativos de recreação e de esportes”. “Trata-se de um dos espelhos d’água mais belos de Fortaleza, cujo sistema lacustre sofre com ocupações e poluição por águas servidas”, continua.
De acordo com a Sema, a área apresenta diferentes problemas ambientais e sociais que vêm afetando a qualidade do sistema lacustre, refletindo diretamente nos aspectos socioambientais das comunidades de baixa renda já inseridas em áreas de risco. A pasta aponta cinco medidas necessárias para a recuperação do ecossistema:
– Saneamento básico das áreas de influência direta e indireta
– Banir práticas que favorecem os processos erosivos
– Conscientizar os moradores sobre a importância da preservação da vegetação ciliar e propor reflorestamento
– Retirada da população das áreas de risco de inundações
– Promoção de eventos culturais que atraiam não só a população local, mas também de outros locais da cidade
Responsável pela APA, a Seuma afirma que a limpeza urbana é realizada a partir de ações conjuntas entre a Secretaria Regional V e a Secretaria Municipal de Conservação e Serviços Públicos. O órgão afirma ainda que atividades de controle da poluição e de ligações clandestinas são desenvolvidas para solucionar a má qualidade da água da lagoa. “Além disso, são feitas ações conjuntas com a Cagece para regularizar imóveis não interligados à rede coletora de esgoto, assim como para a ampliação dessa rede”, completa em nota.
Em julho de 2019, foram assinadas diversas ordens de serviço para investimentos em áreas ambientais. Entre elas estava a reforma da APA da Lagoa da Maraponga, com valor de R$ 4.316.247,97. No projeto estão previstos estacionamento, playgrounds infantis, campo de futebol e quadra poliesportiva, academia ao ar livre, banheiros com acessibilidade, deck de pesca, anfiteatro, quiosques de alimentação e quiosque policial. Conforme a Secretaria do Meio Ambiente (Sema), o processo está em licitação com a Superintendência de Obras Públicas. Apesar de ser uma APA municipal, os equipamentos de esporte e lazer serão construídos pelo Estado e financiados com recursos da Sema. O processo de licitação está na Procuradoria-Geral do Estado do Ceará.
“O olhar de cada uma das pessoas que estão ali nesse intuito de proteger deve ser um olhar que vai se somando para uma construção coletiva e múltipla para resultados comprometidos com a conservação ambiental”, defende a geógrafa e analista ambiental Karina Teixeira. Em conversa com O POVO, ela explica as diferentes categorias de Unidades de Conservação e enfatiza sua importância para o bem-estar e equilíbrio sociais e ambientais.
O POVO - Quando se fala em áreas de protegidas do meio ambiente, ouvimos muito sobre parques e Áreas de Preservação Ambiental (APAs). O que são essas classificações ou, em outras palavras, quais os tipos de Unidades de Conservação no Brasil?
Karina Teixeira - No Brasil existe o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), pela lei 9985/2000, que divide essas áreas em dois grandes grupos: um de uso sustentável e um outro de proteção integral. Além disso, cada uma das categorias dentro dessas divisões têm seus objetivos específicos e indicativos de possibilidades de uso.
Nas de uso sustentável, como as APAs, há uma conciliação ambiental que possibilita planejar o ordenamento territorial e ter atividades de desenvolvimento econômico, desde que garanta a conservação e a qualidade de vida de todo o meio ambiente. Já aquelas de proteção integral, como os parques, têm uso indireto e mais restrito; não é possível, por exemplo, fixar residência e o uso comercial ou para eventos precisa autorizações especiais. As unidades de proteção integral são principalmente de conservação, de pesquisa e de educação ambiental.
OP - Vivemos um momento de frequente destruição ambiental, que impacta diretamente na vida humana. Diante disso, qual o papel das Unidades de Conservação?
Karina - A criação das unidades e toda a gestão especial disciplinada para essas áreas estão entre as principais estratégias e ferramentas para monitorar as espécies, bem como para chegar a um melhor uso e ocupação do solo e do território. Isso vai desde as autorizações ambientais até o desenvolvimento e educação para técnicas ecologicamente mais corretas, como a coleta seletiva e a permacultura.
OP - Quem tem a responsabilidade de garantir que esses locais sejam bem cuidados?
Karina - Essa responsabilidade é do poder público que criou a unidade (municipal, estadual ou federal) junto da sociedade, principalmente pelo funcionamento dos seus Conselhos Gestores. Toda unidade deve ter seu conselho e eles têm que ter um representação do poder público, quanto da sociedade organizada, do setor empresarial e do setor de pesquisa ou acadêmico. Nessa junção da discussão das diversas temáticas afetas às unidades de conservação é o conselho é capaz de formular os regulamentos necessários de cada uma.
OP - Qual papel a sociedade civil pode desempenhar para conservar e preservar as UCs?
Karina - A sociedade tem o direito de ser envolvida nos processos de gestão das unidades. É importante que os gestores ambientais tenham a clareza de que o trabalho que eles prestam é de entrega e de serviço prestado para a sociedade e para o nosso planeta. Esse trabalho só vai ser de melhor qualidade e efetivo se houver o envolvimento social.
OP - Na visão da senhora, quais os principais desafios para uma boa gestão das unidades?
Karina - É a conciliação dos diversos interesses com relação ao território. A gestão de uma unidade de conservação também pode ser vista como uma gestão de conflitos. Além disso, a infraestrutura é fundamental para um bom trabalho. Isso tanto sobre a disponibilidade de um espaço físico onde possa haver reuniões e encontros quanto, por exemplo, a disponibilidade de um veículo para que o gestor possa verificar as condições dos elementos naturais e também fazer o trabalho de um elemento fundamental: o ser humano.
OP - A senhora foi por muito tempo gestora de APAs no Ceará. Qual avaliação faz das UCs presentes no Estado?
Karina - Sem o estabelecimento e a implementação das unidades no Estado, a gente não teria mais os ambientes conservados como ainda existem. Acredito que a gente deve fortalecer o cuidado e a atenção para a gestão dessas unidades, em especial que estão situadas em Fortaleza ou próximas. Minha primeira gestão de UC foi na APA do Estuário do Rio Ceará e percebo que é necessário fazer um resgate histórico com a intenção de envolver a sociedade para conservar o que ainda existe. Tudo muito no sentido de se criar uma sinergia e uma construção coletiva, porque a partir disso as pessoas vão se sentir pertencentes a esses territórios e responsáveis em fazer as coisas acontecerem.
Diversos ecossistemas compõem a capital cearense, onde unidades de conservação guardam riquezas naturais e parte de nossa história. Aqui você conhecerá algumas delas