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Os caminhos do riacho Pajeú
Reportagem Seriada

Os caminhos do riacho Pajeú

Neste último episódio da série especial Ecossistemas de Fortaleza, O POVO conta a história de um dos cursos d'água formadores da Capital, o riacho Pajeú, que vai sumindo ao mesmo tempo em que Fortaleza cresce economicamente e em população
Episódio 3

Os caminhos do riacho Pajeú

Neste último episódio da série especial Ecossistemas de Fortaleza, O POVO conta a história de um dos cursos d'água formadores da Capital, o riacho Pajeú, que vai sumindo ao mesmo tempo em que Fortaleza cresce economicamente e em população
Episódio 3
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Era um riacho vivo. Com pouca inclinação, corria suave da rua Bárbara de Alencar até as imediações da avenida Dom Manuel, onde hoje se encontra o Parque das Esculturas. A partir daí mostrava mais vigor com um leito bem encaixado que impedia a travessia e limitava o crescimento da cidade. Na altura dos jardins do Paço Municipal, recebe um de seus afluentes que aumenta sensivelmente seu volume d’água. Seguindo em declive, atravessa a rua por trás do Mercado Central e segue até a sua foz, totalmente anulado da paisagem.

Assim o geógrafo José Borzacchiello descreve a convivência entre o riacho de tantos nomes - Marajaik, rio Ipojuca e Rio da Telha - e a capital cearense. Quando Fortaleza ainda era um povoado que crescia à sua margem esquerda, o Pajeú foi essencial para o abastecimento hídrico e de víveres. Entretanto, bastaram alguns anos para que passasse a “sempre visto como entrave e nunca recurso”.

 

Hoje o riacho corre escondido por entre pontos turísticos, sob grandes edificações e asfaltado(Foto: Fco Fontenele/O POVO)
Foto: Fco Fontenele/O POVO Hoje o riacho corre escondido por entre pontos turísticos, sob grandes edificações e asfaltado

Hoje o riacho corre escondido por entre pontos turísticos, sob grandes edificações e asfaltado pelas ruas movimentadas de bairros de alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Invisibilizado ou então visto como um esgoto fétido. Foi esse o destino dado ao nosso “rio curandeiro” - a tradução de seu nome tupi.


Histórias de um apagamento

A nova configuração do Pajeú foi sendo dada pelos modelos de desenvolvimento da Capital. Agressões ao seu leito e ao seu ecossistema se repetem desde as primeiras intervenções. Entre 1834 e 1837, o açude Pajeú é construído, como uma pequena barragem destinada a abastecer a cidade que se formava.

Ainda no fim do século XIX , o corpo d’água passa ser apontado como solução técnica para escoamento dos esgotos, na forma de uma “cloaca máxima”. Durante o século XX, a urbanização avança com velocidade e as ações sobre o riacho também. “Na década de 1960, foi loteado com os terrenos e cada proprietário, após acobertar tal problema, se viu na condição de fazer o que bem entendesse com ele, contanto que se permitisse acesso às galerias para limpeza”, conta Ana Cecília de Andrade Teixeira, professora de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia.

Na década de 1980, foi implantada a primeira etapa do Parque Pajeú, entre a rua Pinto Madeira e a avenida Dom Manuel. Nesse momento, foram canalizados 3.360 metros do riacho. Em 1995, outra grande construção viria a impactar o Pajeú: o Mercado Central. A edificação se anunciava com quatro pavimentos, 596 lojas, estacionamento para 1.500 carros, 50 ônibus e 80 táxis. O poder público prometia um Parque Ecológico com 15 mil metros quadrados de área. Nada foi feito além do Mercado.

 

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Com existência estimada em mais de 7 mil anos, o Pajeú foi sendo apagado pela Cidade. Hoje, no lugar de um riacho límpido, existe água salobra e suja - canalizada por 3.106 metros e correndo a céu aberto por outros 2.760, conforme dados da Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma). Atualmente a pasta é responsável pela manutenção do Parque Linear do Riacho Pajeú, criado em 2014.

Com área de 41.623 m², o parque “busca estabelecer uma gestão administrativa e ambiental diferenciada, além de preservar a área, possibilitando a implantação de infraestruturas de lazer e a preservação da flora e da fauna”. O equipamento está dividido em três trechos. No primeiro, o riacho encontra-se canalizado. O segundo trecho é dividido em duas porções e foi adotado pela Câmara de Dirigentes Lojistas de Fortaleza. Já o trecho 3 compreende o Bosque Dom Delgado, no Paço Municipal, e uma área atrás do Mercado Central, onde está arborizado.

 Atualmente no lugar de um riacho límpido, existe água salobra e suja onde corre o Riacho Pajeú(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Atualmente no lugar de um riacho límpido, existe água salobra e suja onde corre o Riacho Pajeú


Biodiversidade ignorada

Parte da Bacia Vertente Marítima, que abrange norte e leste fortalezenses, o Riacho Pajeú acabou preso em um cenário de “elevado grau de urbanização”. “Esta é a situação notadamente mais agredida, onde a vegetação é escassa e a ocupação se mostra de forma desordenada sob várias formas (comércio, residência unifamiliar e multifamiliar, zona portuária, áreas de risco, regiões de alta densidade demográfica e rarefeita)”, diagnostica o Inventário Ambiental de Fortaleza.


O Inventário foi um estudo sobre os recursos naturais da Cidade, encomendado pela então Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Controle Urbano (Semam), em 2003. A conclusão sobre o riacho é um retrato que parece não mudar com passar dos anos: “Em todos os locais analisados, constatou-se o desinteresse da cidade frente ao recurso”. Ainda segundo o documento, há 17 anos, a Vertente Marítima só contava com 0,52% (ou 19,76 hectares) de área de vegetação nativa contínua.

Assim, ao longos dos séculos, não é somente o curso d’água que some da paisagem alencarina. Os números dizem também do desmatamento da vegetação ribeirinha - deixam de existir mangueiras, azeitoneiras, pitombeiras, dendê, maniçoba - e do desaparecimento de uma fauna própria. E o verbo segue no presente.

No início deste ano, centenas de peixes mortos foram encontrados em um trecho do riacho. “Um rio não é apenas um espelho d’água. Ele precisa de margens livres e da vegetação lindeira, produzindo condições de vida para inúmeras espécies. Um rio tem muitas implicações, afetando desde a regulação do clima até a saúde pública”, enfatiza Cecília. Sobre a atual qualidade hídrica do riacho, a Secretaria de Urbanismo e Mio Ambiente (Seuma) limita-se a declarar que “a análise realizada na água orienta que não haja banho na área”.


Insurgências a cada quadra chuvosa

Em quase 200 anos, 100% das margens e ecossistema naturais do Pajeú, colocados pelas leis ambientais modernas como Área de Preservação Permanente (APP), foram degradados e substituídos por asfalto, concreto, tubulações, condomínios residenciais, universidades e comércio. Uma história de apagamento dos 4,7 km de extensão do riacho.

 Aproximadamente 4,7 quilômetros de extensão do riacho foram degradados(Foto: Fco Fontenele/O POVO)
Foto: Fco Fontenele/O POVO Aproximadamente 4,7 quilômetros de extensão do riacho foram degradados


Tal situação impermeabilizou o solo e assoreou o Pajeú, mudando a dinâmica de drenagem da região e a capacidade de seu leito. Com isso, mesmo quem desconhece o riacho encontra suas insurgências a cada quadra chuvosa. Não há como suportar o volume pluviométrico e toda degradação deságua em inundações na avenida Heráclito Graça.

“Se Fortaleza tivesse se organizado numa convivência mais amigável com o Pajeú, não sofreria os alagamentos anuais, teria espaços permeáveis para repor os lençóis freáticos e contaria com um microclima agradável”, afirma Cecília. “O Pajeú é um triste testemunho da nossa implantação e desenvolvimento enquanto cidade, nos revela mesquinhos e simplórios.”

 

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Em 2019, a Secretaria Municipal da Infraestrutura (Seinf) estimava que 80% da drenagem do riacho está obstruída por lixo, esgotos clandestinos e outros resíduos sólidos de obras. Em setembro daquele ano, a pasta lançou edital de licitação de R$ 41,7 milhões com o objetivo de contratar empresa para as obras de drenagem e despoluição. Entretanto, a licitação foi revogada e o projeto deve ser reformulado.

De acordo com a Seuma, o Programa Fortaleza Cidade Sustentável desenvolverá ações na Bacia do Riacho Pajeú. Com o propósito de revitalização a secretaria garante que fará ações de educação ambiental e sanitária. Além disso será realizada “fiscalização e serviços de vídeo inspeção, contemplando limpeza e desobstrução da galerias de águas pluviais e o tamponamento de ligações clandestinas”.

De acordo com a Seuma, será realizada “fiscalização e serviços de vídeo inspeção, contemplando limpeza e desobstrução da galerias de águas pluviais".(Foto: Fco Fontenele/O POVO)
Foto: Fco Fontenele/O POVO De acordo com a Seuma, será realizada “fiscalização e serviços de vídeo inspeção, contemplando limpeza e desobstrução da galerias de águas pluviais".

Como conhecer melhor

Além de arquiteta e urbanista, Cecília Andrade é mestre em Artes com a pesquisa "Parque ampliado do Pajeú: uma abordagem site-specific com uso de locative media”. A professora desenvolveu extensa pesquisa sobre o riacho para elaborar sua dissertação e parte do processo está registrada no blog Era uma vez um rio. De seu trabalho publicado em 2017, surgiu o aplicativo Excursão Pajeú. Por meio dele é possível realizar uma caminhada guiada e encontrar trechos do riacho na cidade.

Com o deslocamento do participante, alguns conteúdos de áudio são disparados. São trechos de documentos desde o século XVII até a década passada que abrem novas percepções sobre estes espaços na Cidade. Também é possível, mesmo sem realizar a caminhada, baixar documentos – alguns de difícil acesso. “Acredito que podem ser úteis a pesquisadores, como o relatório de 44 páginas do engenheiro Mansur Daher Elias. Realizando uma ampla vistoria para por todo o trajeto do riacho, ele ilustra o trajeto com várias fotografias desde terrenos que ainda estavam baldios até sua foz”, aponta.

SERVIÇO
Aplicativo Excursão Pajeú
Disponível para Android
Para mais informações, clique aqui.

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