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As mulheres e o amor como fonte de resistência
Reportagem Seriada

As mulheres e o amor como fonte de resistência

No primeiro episódio da segunda temporada da série O que pensam as mulheres, a liderança indígena Áurea Anacé reflete sobre o amor. Para ela, a entrega das mulheres ao amor é a razão da força feminina. Ela defende o sentimento pelo território, pela juventude e pela vida como a faceta mais pulsante da mulher
Episódio 1

As mulheres e o amor como fonte de resistência

No primeiro episódio da segunda temporada da série O que pensam as mulheres, a liderança indígena Áurea Anacé reflete sobre o amor. Para ela, a entrega das mulheres ao amor é a razão da força feminina. Ela defende o sentimento pelo território, pela juventude e pela vida como a faceta mais pulsante da mulher
Episódio 1
Tipo Notícia Por

 

 

Ao nosso redor, tudo é amor

O amor é costumeiramente identificado como força motriz das mulheres. Se não no escopo romântico, então na maternidade. O amor feminino é visto como a delicadeza, a gentileza, a ternura… É verdade, o amor move as mulheres. No entanto, a liderança indígena Áurea Anacé dá uma nova faceta ao amor feminino: o feroz de luta.

Representante do povo Anacé, localizado em Caucaia (CE), Áurea fala sobre como o amor pelo território, pela espiritualidade e pelo povo dá sentido e potência à resistência indígena protagonizada por mulheres e jovens, e demonstra que há muito a se aprender com as mulheres que amam vidas, sejam elas humanas ou não.

 
Oryporan

Áurea Anacé

Liderança indígena

Liderança indígena do povo Anacé, de Caucaia (CE). Áurea representa as mulheres indígenas Anacé e participa como porta-voz de seu povo no ativismo social, participando de eventos como a Marcha das Mulheres Indígenas. É secretária da Articulação de Mulheres Indígenas do Ceará (Amice).

 

 O POVO+ - Áurea, como o amor se materializa para você? Além do amor romântico…

Áurea - Olha, o amor que eu sinto nesse momento é mais pelo território, por isso que vocês estão vendo aqui. A gente luta cada dia mais para que isso não morra, não se acabe. Eu acho que o amor que nós estamos vivendo no momento é de luta, de conquista de tudo que a gente tem do território.

Eu moro aqui com o cacique Roberto, mais quatro filhos e o neto. E eu sou mãe de todo esse povo, né? Que são 26 aldeias localizadas do rio Cauípe ao rio Juá, e eu vivo nessa luta por esse território. Para que essa riqueza não se acabe, porque tem vários empreendimentos tentando destruir isso aqui.

A gente luta pelos rios, pelas lagoas. Tem um amor muito forte por esse território, é daqui de onde essas pessoas, mulheres, tiram o alimento. A gente vive dentro desse contexto, defendendo essa vida, para que as novas gerações tenham um pouco disso tudo que vocês estão vendo.

Áurea Anacé, liderança e uma das representantes do povo Anacé, em Caucaia. A árvore da foto, se encontra em meio à sua terra, ao redor da árvore sagrada de seu povo, onde acontecem os rituais do povo (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Áurea Anacé, liderança e uma das representantes do povo Anacé, em Caucaia. A árvore da foto, se encontra em meio à sua terra, ao redor da árvore sagrada de seu povo, onde acontecem os rituais do povo

OP+ - O que a espiritualidade e a cultura de vocês ensina sobre o amor especificamente?

Áurea - Ao nosso redor, tudo é por amor. Uma árvore dessa, para a gente, um pedaço dela foi um dos nossos antepassados que veio por ela. Se nós temos uma árvore, essa aqui é a nossa árvore sagrada, no meio do terreiro, é onde a gente faz os rituais mais importantes. Os pássaros para nós são importantes, os rios também… A gente tem essa vivência, conquista, e às vezes até perdas.

Então assim, para nós, cada planta dentro desse território tem vida. São vidas que estão aqui dentro. E se eles não podem falar, nós podemos falar por eles; se eles não podem resistir, nós resistimos por eles. É muito importante a nossa vida no território. Se nos tiram do território, tiram um pedaço. E se tiram o território da gente, também se leva outro pedaço.

OP+ - Mas esse já era o seu entendimento sobre o amor desde nova?

Áurea - Eu como era minha irmã mais velha, eu me casei muito nova, né? Tive meu filho com 16 anos e aí passou do tempo e eu fui cuidar dele, depois conheci o cacique Alberto e aí tive o primeiro filho e desde então eu venho acompanhando a luta dele por esse território. Já faz 26 anos, que é a idade do nosso filho mais velho. Há seis anos que eu estou aqui dentro, porque então eu estava lá fora (do território indígena) enquanto eles estavam aqui dentro para fazer a construção.

E aí depois que eu vim conhecer o porquê dele estar aqui dentro, o porquê da luta dele, o porquê ele ficava tão nervoso com algumas coisas que aconteceram e ele não levava muito para a gente…. Foi quando eu realmente eu vim ter todo o conhecimento de toda essa resistência, depois que eu vim morar aqui dentro.

 

 

A voz dE.L.A.S: artigos de opinião

 

 

 
 

OP+ - Como foi perceber que a senhora queria cuidar e proteger esse território?

Áurea - Foi a partir do momento que eu comecei a ver a necessidade das pessoas que estão aqui dentro, principalmente das mulheres. Elas são um grupo de mulheres muito forte, mas também são barradas por algumas lideranças. E eu comecei a perceber isso. A gente tinha um núcleo de mulheres muito forte nas reuniões, onde os seus companheiros ficavam (em casa) e elas vinham. A gente via três homens na frente e 30 a 40 mulheres atrás.

Eu passei seis meses observando isso. E aí diante disso eu fui chamada para uma organização e eu fui conhecendo a história das mulheres, mulheres caciques, mulheres lideranças, mulheres à frente dos seus movimentos. O que é que elas faziam? Quais são as resistências delas dentro dos territórios? Eu comecei a ter essa convivência com elas, andando também dentro dos territórios, para trazer para cá e mostrar para essas mulheres que estavam aqui que elas também podiam falar, lutar pelos seus direitos.

Para Áurea Anacé, o amor das mulheres se expande para a luta da terra e do povo (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Para Áurea Anacé, o amor das mulheres se expande para a luta da terra e do povo

OP+ - E como foi a recepção delas ao finalmente ter um ambiente em que podiam falar?

Áurea - Elas começaram a se empoderar. ‘Eu posso, eu vou falar o que eu quero, eu quero falar, eu quero participar’. Elas começaram a dizer onde era que tava doendo, onde elas estavam sendo mais afetadas… A maioria, quando quer falar alguma coisa, vem onde eu estou e me contam e aí vamos resolver, vamos procurar.

É muito importante para mim, porque ver pessoas que não falavam, que só concordavam, e que hoje estão à frente. A gente tem assembleia de mulheres, nós temos mulheres em convivência com outros povos, com outras culturas. É muito importante ver que elas vão e participam.

 

OP+ - E a senhora acha que existe muita diferença entre a maneira que as mulheres veem, falam e vivem o amor para os homens?

Áurea - As mulheres se entregam mais. Tanto que na maioria das vezes… Nós temos homens, mas as nossas lutas e as retomadas são com mulheres. Elas levam seus filhos, elas vão com os velhos, vão gratas… Tem todo aquele coletivo de pessoas que passam noites e dias. E aí, às vezes os maridos discutem que elas passam o dia ali e elas dizem: ‘Olha, o meu marido tá a ponto de me deixar porque eu tô aqui dentro.’ Então aquilo ali é o amor que elas sentem ali dentro, em resistência com a gente. A mulher, no nosso caso, se entrega mais, se dedica mais.

OP+ - Será que é por isso também que as mulheres acabam sofrendo tanto dentro dos seus relacionamentos?

Áurea - Eu acho que é porque as mulheres se entregam mais, mesmo. A maioria já foi criada com a noção de que tem que casar, ter filhos, cuidar da casa e do marido. E aí elas se dedicam mais nessa parte, elas vivem mais para isso. Já outras que não, já deram tudo e agora querem estudar, caminhar, fazer sua resistência, a sua luta.

Áurea Anacé, liderança indígena, fala do amor, de relacionamento e convivência(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Áurea Anacé, liderança indígena, fala do amor, de relacionamento e convivência

Eu tenho 26 anos de um relacionamento, de uma convivência de marido e mulher. Então, assim, chega um certo ponto que não é mais casal, é uma amiga e um amigo que convivem. Eu acho que às vezes as pessoas sofrem mais por causa da convivência, não é nem do amor, é da convivência.

Porque você tem aquele aquele cotidiano, todo dia acordar, levantar, conversar. Aí quando você se separa fica um vazio, de não ter com quem conversar… Eu digo assim por conta do meu pai e da minha mãe. A minha mãe eu perdi ela tá com dois anos, no dia 1º de dezembro. Então eu vejo o vazio que o meu pai sente, porque ele sente a falta dela, da comida dela. Faz falta dentro de casa. Você tem uma convivência muito próxima, muito longa, e quando se separam, ou perde o outro, fica aquele vazio.

É muito raro, porque hoje em dia não tá existindo isso da convivência. Se tem alguma desavença, vão um para o lado, outro pro outro. Então eu acho que hoje em dia os jovens se separam muito cedo.

Isso não significa que tem que aguentar. Eu nunca aguentei. Eu sempre mostrei a minha força e quem eu era e acabou. Às vezes eu via mesmo algumas coisas da minha mãe e do meu pai, e pensava: ‘Eu não vou aguentar isso do meu marido. Eu não vou suportar que meu marido faça isso’. Eu dizia: ‘Pai, isso não é amor. Isso é uma doença, uma ignorância.’ E ele respondia: ‘Que amor, o quê?!’

E aí para você ver, quando ele perde, a pessoa adoece, ela chora… Meu pai sempre disse que não chorava, então eu ver meu pai, eu da idade que eu tô, ver meu pai chorando… Isso me dói mais ainda. Porque ele só sente falta dela, percebeu naquele momento que gostava, amava tanto.

 

 

Queremos te ouvir!

Que tal responder à enquete abaixo e usar o campo dos comentários para discutir sobre o amor? Como você enxerga o amor? Como você descreveria a influência dele na sua vida? Vamos conversar nos comentários!

Expediente

  • Edição O POVO+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Concepção do projeto Regina Ribeiro
  • Reportagem, dados e recursos Catalina Leite
  • Identidade visual Cristiane Frota e Camila Pontes
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Design Camila Pontes
  • Fotografia Fernanda Barros
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A segunda temporada do especial E.L.A.S. convida cinco mulheres e 15 articulistas para conversar sobre maternidade, trabalho, amor, corpo e menopausa