O Brasil começou bem aqui
Não nos sentimos aculturadas
Temos a memória acesa
E vivemos a certeza de que nossa aldeia
Resistirá ao preconceito do invasor
Somos a voz que ecoa
Resistência?
Sim senhor.
Márcia Kambeba. Trecho de poema inédito "Amazônidas" que estará em livro a ser publicado em 2022
Elas podem ser mães, professoras, auxiliares de limpeza, pajés, caciques. Cuidam dos filhos, dos “troncos velhos” — seus anciãos — dos maridos, do pedaço de terra que lhes cabe, da natureza que as cercam. A luta cotidiana pode ser a falta de uma cesta básica ou mesmo o aparecimento de invasores, sempre ávidos por reivindicar territórios e abocanhar outros nacos.
Elas são mulheres indígenas que lutam pelos direitos de suas comunidades, ainda que nem todas carreguem o título de cacique, palavra aruaque que designava os chefes indígenas do sexo masculino que viviam na América desnudada em 1492. A palavra “cacica”, aliás, é uma invenção do homem branco para nomear as mulheres que guiavam seus povos, a exemplo de Anacaona, uma indígena Taíno, cuja passagem pela Terra não pôde ser apagada nem da história contada pelos seus dominadores.
Essas mulheres não são caciques mas lideram e, para muitas, a liderança é uma espécie de aura carregada desde a infância.
Elas são, também, a metade da atual população indígena brasileira, presente nas cinco regiões, e que totaliza 896,9 mil pessoas, segundo dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Se distribuem em 305 etnias, falam 274 línguas e possuem uma vasta cultura desconhecida por milhões de outros brasileiros, salvo em momentos em que se abrem espaços como estes, ocasiões em que se destacam os tantos povos que formam o país.
No Ceará, são 14 etnias reconhecidas, de acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai): Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tabajara, Tapuia-Kariri, Tremembé, Tubiba-Tapuia e Tupinambá.
Para esta reportagem, O POVO visitou cinco localidades cearenses e conversou com seis lideranças indígenas femininas no Estado. O Ceará elegeu a primeira cacique mulher no Brasil em 1998, a Cacique Pequena, que representa o povo Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz e detém pelos menos um terço das lideranças indígenas no País.
Neste especial, mulheres com idades entre 30 e 76 anos narram suas experiências à frente dos povos indígenas locais e trazem à tona os principais problemas que hoje os afetam, sem esquecerem das heranças culturais que receberam e que transmitem aos mais jovens.
Nos próximos episódios e no webdoc "Mulheres-Sabiás", o leitor conhecerá a voz que narra a luta e a persistência das mulheres que representam povos indígenas do Ceará cearenses Kalabaça e Tabajara (Poranga); Tapeba (Caucaia), Pitaguary (Maracanaú), Tremembé (Icapuí), Jenipapo Kanindé (Aquiraz).
No entanto, apesar delas estarem em tantos lugares, estima-se que no Brasil existam apenas 20 lideranças indígenas femininas. A Funai afirma não possuir essa informação, e elas seguem sendo invisibilizadas, ainda que, aos poucos, o cenário esteja se transformando, pois algumas etnias (que nunca antes haviam considerado ter uma cacique) passaram a eleger suas representantes.
Como exemplos do fenômeno do aumento do protagonismo dessas mulheres, há personalidades com evidência nacional, caso de Sônia Guajajara, candidata à vice-presidência da República pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) nas eleições de 2018, e Joênia Wapichana (Rede), primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal, também em 2018.
Há também o exemplo de Majur Traytowu, que se tornou neste ano a cacique da Aldeia Apido Paru da Terra Indígena Tadarimana, no Mato Grosso. Majur é uma mulher transsexual (não se identifica com o gênero dado no nascimento).
"Hoje se abre um cenário no qual a mulher já é cacique. Na cultura do povo Kambeba, a mulher sempre é liderança. Na nossa língua, a palavra que a define é 'zana'. Mesmo quando um homem assume o papel de zana, ainda assim, são as mulheres que dão a palavra final”, explica Márcia Kambeba, mestre em Geografia, doutoranda em Letras, escritora, palestrante, poeta, ativista e 1ª ouvidora-geral indígena do Brasil, em Belém (PA).
“Ainda que em algumas aldeias não haja, formalmente, o espaço para que as mulheres possam falar, o papel delas não é só o de ser doméstica. É que os homens, ao participarem das reuniões decisivas, levam as questões para as mulheres e retornam com os entendimentos delas sobre os assuntos. De certa forma, ainda que elas não estejam nos espaços de poder, as opiniões delas estarão”, afirma Márcia Kambeba, que é autora do livro "Saberes da Floresta". A publicação aborda a importância da natureza para a educação indígena.
Kambeba é também autora de "Kumiça Jenó: Narrativas Poéticas dos Seres da Floresta" (2021), e "Ay kakyri tama" (2018).
O movimento que mais representa a busca por autonomia e visibilidade para as mulheres é a Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, que teve a primeira edição em 2019 e reuniu 2,5 mil mulheres em Brasília. Em setembro deste ano de 2021, foram 5 mil.
Se no primeiro encontro, as pautas eram várias, ainda que tivesse o direito ao território como tema principal, neste ano, as energias se concentraram em torno de um único assunto, o Marco Temporal.
Pela proposta (materializada no governo Temer), os indígenas somente teriam direito às terras que estavam em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ou que estavam em disputa judicial nesta época.
A votação no Supremo Tribunal Federal (STF) foi suspensa temporariamente porque o ministro Alexandre de Moraes pediu mais tempo de análise.
Não obstante, o Marco Temporal é a apenas a ameaça mais recente, ainda que mais grave, mas é apenas uma da longa série de posicionamentos contrários aos povos indígenas feita pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, tais como a paralisação de demarcações; propostas de mineração e expansão do agronegócio em terras indígenas; “integração” dos indígenas à sociedade e o enfraquecimento dos órgãos como a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Tais ameaças geraram mal-estar em setembro deste ano, quando sete governos europeus usaram a reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU para alertar sobre a situação de povos indígenas no Brasil.
O governo federal também é alvo de denúncias no Tribunal Penal Internacional por conta do mesmo tema, em casos apresentados por povos indígenas e ativistas de direitos humanos. O Tribunal de Haia, na Holanda, é responsável por julgar indivíduos acusados de crimes contra a humanidade, crimes de guerra, genocídios e crimes ambientais em larga escala.
No ano passado, no ápice da pandemia de Covid-19, Bolsonaro vetou trechos do plano emergencial que incluíam as populações tradicionais. O STF confirmou posteriormente uma liminar obrigando o governo a tomar medidas emergenciais para combater a pandemia entre os povos indígenas.
No Ceará, a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará (DPGE), Mariana Lobo, apontou o que seria um grande lapso da Funai no enfrentamento da pandemia, mais especificamente nas medidas para lidar com a vulnerabilidade dos indígenas, tais como falhas e atrasos em relação à montagem das barreiras sanitárias e ao provimento de máscaras e testes.
"Os profissionais de saúde que cuidam da saúde dos povos indígenas no Ceará são muito comprometidos, mas eles têm seus limites. A atuação cotidiana implica, há meses, em enfrentar a ausência de estrutura do Governo Federal", pontua.
Em maio deste ano, em conjunto com a Defensoria Pública da União (DPU), a Defensoria fez uma recomendação para secretarias estaduais e federais (além da Funai) a fim de que providências fossem adotadas na garantia da saúde dos povos indígenas cearenses.
“Se eu fosse definir a atual situação dos povos indígenas no Brasil, as palavras que a resumiriam seriam ‘desrespeito’ e ‘genocídio’”, destaca Samela Sateré-Mawe, 24 anos, estudante de Biologia na Universidade do Amazonas, ativista ambiental pelo Fridays for Future Brasil, apresentadora do @Canal Reload no Youtube e comunicadora na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
“Não vou nem falar da pandemia de Covid-19, que é revoltante, e sim, do principal problema dos povos indígenas brasileiro, que é a demarcação das nossas terras", elenca. "Já a principal dificuldade na minha comunidade, a qual vive em contexto urbano, é em relação à identidade, que sempre é questionada, seja pelo governo ou pela população em geral”, acrescenta.
Líder dos Kariri-Xocó e dos Tuxá no Distrito Federal, Ivanice Tanoné diz que, no atual contexto político, a voz da mulher indígena poderia ser bem mais forte do que as 20 que existem atualmente.
"Muitas mulheres querem ser lideranças, mas os maridos não deixam. é muito machismo e insegurança da parte deles, porque não aceitam as mulheres viajando, sendo respeitadas e ouvidas por muitos", destaca.
Ivanice lembra de suas próprias experiências ao participar de momentos importantes para os indígenas não só do Brasil, mas do mundo todo, como a promoção do livro “Paroles des Peuples Racines – Playdoyer pour la Terre” (Palavras dos Povos Nativos – Apelo para a Terra), obra que contém a Declaração da Aliança dos Guardiães da Mãe Natureza, um movimento pela paz e justiça climática criado em Paris.
O livro lançado em 2019 tem o depoimento de 19 lideranças autóctones de várias partes do mundo, incluindo de Ivanice Tanoné.
Questionada sobre quais as perspectivas para o aumento das lideranças femininas nas aldeias, Tanoné é enfática: "Não vão mais nos calar. Vamos unir nossas forças para impedir os que querem destruir tudo o que o Grande Espírito construiu para os povos indígenas da natureza”.
No dia 2 de novembro, Txai Suruí, jovem ativista de Rondônia que defende o povo Paiter Suruí, na Floresta Amazônica, se apresentou na Cúpula do Clima (COP-26), em Glasgow. A estudante de Direito foi a única brasileira que discursou no evento que é determinante para reduzir os efeitos das mudanças climáticas.
“Meu nome é Txai Suruí, eu tenho só 24, mas meu povo vive há pelo menos 6 mil anos na floresta Amazônica”, ela começou a ler, em inglês, diante de uma audiência de mais de 120 líderes do planeta. O discurso que exortou a participação dos povos indígenas nas decisões sobre as ações do clima repercutiu nas redes sociais e foi replicado por vários veículos de mídia e ongs.
As vozes de mulheres como Txai vêm de todas as partes e precisam ser ouvidas em todos os lugares, assim como as de Ivanice, Márcia, Eliane, Raimunda, Leuda, Conceição, Rosa, Samela, Majur, Sônia, Adriana, Marciane.
São vozes que não podem mais ser silenciadas.
Reportagem especial seriada aborda os principais temas indígenas a partir da perspectiva das mulheres líderes de povos indígenas no Ceará