O avanço do uso da tecnologia no atendimento dos serviços de saúde já era uma tendência prevista há algumas décadas. Eis que, desde 2020, a pandemia da Covid-19 promoveu uma impulsão inesperada para o serviço. A previsão é de expansão, tanto nos planos de saúde quanto no sistema público. Além dos desafios ligados à estrutura tecnológica, há de se ter em vista o acolhimento do paciente: como humanizar o atendimento por meio das telas.
A telessaúde é a prestação de serviços de saúde à distância, por meio da utilização das tecnologias da informação e da comunicação (TICs), envolvendo a transmissão de dados e informações de saúde.
Donizetti Dimer Giamberardino, diretor técnico e chefe do Serviço de Nefrologia Pediátrica do Hospital Infantil Pequeno Príncipe e professor de Medicina da Faculdade Pequeno Príncipe, contextualiza que a telemedicina — que se refere especificamente aos atos médicos — é discutida há mais de 20 anos, embora sem adesão relevante.
“É a mesma medicina, só que com a tecnologia houve a atualização da resolução no sentido de que se torne uma prática com segurança. Um dos primeiros pontos é a proteção de dados e o cuidado com o paciente”, explica Donizetti, que presidiu o Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), onde é conselheiro, e foi o relator da Resolução CFM nº 2.314/2022, que regulamenta a prática da telemedicina no país.
Caio Soares, vice-presidente da Saúde Digital Brasil (SDB), avalia que a pandemia virou o cenário “de ponta cabeça e acelerou” o uso da telessaúde. “Antes da pandemia, a gente fazia um esforço enorme para as pessoas acreditarem (no serviço). Depois, as pessoas passaram a usar e ver que é seguro e eficiente”, afirma.
Conforme Caio, pós-graduado em Administração de Sistemas de Saúde pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP, a questão da humanização “está mais ligada ao comportamento das pessoas do que com relação ao aparelho”. “Às vezes, a gente se sente pouco acolhido. Não é porque a gente não tá próximo fisicamente que a gente não tá próximo emocionalmente”, diz.
O receio em relação ao atendimento à distância precisou ser superado durante a pandemia do coronavírus, demarcada por meses de decretos de isolamento social. Para Luiza Alexandre Medeiros de Almeida, 51, o começo foi “tenso” pelas circunstâncias, não se podia sair de casa, mas o marido estava doente.
“Acabamos sendo consultados também, toda a família. No começo, tínhamos um pouco de incerteza, mas a doutora nos deixou bem à vontade e fiquei muito satisfeita. Até hoje somos atendidos por ela”, compartilha a dona de casa e artesã. Além da medicina da família, eles receberam atendimentos de psicologia e nutrição.
Para ela, “humildade, simpatia e segurança no que diz” são requisitos necessários para que o profissional da saúde possa transmitir segurança ao paciente. “E foi o que aconteceu. No começo parece tenso, mas ela deixa a pessoa à vontade e a consulta vai fluindo bem. Isso é muito bom”, relata.
Conforme a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o uso da telessaúde mais do que quadruplicou entre 2020 e 2022. Saiu de 732.767 no primeiro ano de pandemia, registrou 2,4 milhões em 2021 e fechou o ano seguinte com 3,2 milhões de teleatendimentos.
O órgão explicou que antes de 2020, por não haver regulamentação, a ANS não possui dados qualificados sobre telessaúde. “Já os dados de 2023 ainda estão sendo recepcionados e qualificados”.
Os dados registrados na ANS podem ser menores do que o volume de consultas de fato realizadas em razão da urgência da viabilização da telemedicina em 2020, que não permitiu identificar todas as guias. Em 2022, o maior número de atendimentos foi de médico clínico (885.152), médico de família e comunidade (612.505) e psicólogo clínico (463.720). Ao todo, foram realizados atendimentos de 99 especialidades.
Só no ano de 2023, a Unimed Ceará já realizou mais de 4 mil teleconsultas. Na operadora, “as especialidades que mais atendem por teleconsultas são: médico de família e comunidade, psiquiatra e reumatologista, além da equipe multiprofissional da APS (assistente social, enfermeira, educador físico, nutricionista e psicóloga)”.
Jackeline Frota, médica de saúde e família da Unimed Ceará, diz que a humanização do atendimento de maneira geral se baseia, antes de tudo, em escutar e olhar o paciente.
“Mesmo presencialmente, muitos médicos não fazem. Não só um olhar mais humano, mas um olhar técnico. Com isso, vou ver várias coisas físicas e comportamentais que vão ajudar no diagnóstico. Na telemedicina, pode ser até mais humanizado. Porque por não estar presente, a gente se esforça ainda mais para que possa acontecer a consulta”, destaca.
O Sistema Único de Saúde (SUS) deve finalizar este ano de 2023 com 1.425.000 telediagnósticos. Conforme o Ministério da Saúde (MS), dos mais de 950 mil telediagnósticos previstos para este ano, 616.893 já foram realizados — 78,4% do total. A expectativa é que, até o final do ano, a meta seja ultrapassada em mais de 50%.
Nesta modalidade de atendimento médico, há a transmissão de gráficos, imagens e dados para emissão de laudo ou parecer por médico com registro de qualificação de especialista (RQE) na área relacionada ao procedimento.
Assim, “os médicos têm a possibilidade de discutir e analisar exames de pacientes e elaborar diagnósticos que direcionem o usuário do SUS para o tratamento correto”. Conforme o MS, “o programa é usado por profissionais de saúde cadastrados, nas localidades alcançadas pela internet, em que o serviço está disponível”.
A pasta criou a Secretaria de Informação e Saúde Digital (Seidigi), com o objetivo de fomentar as políticas públicas em saúde digital.
Segundo Angélica Baptista Silva, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a partir de 2008 foram realizadas as primeiras ações federais do SUS em relação à telemedicina nos estados promovidos dentro das universidades e dos hospitais universitários.
“O cenário atual é de revitalização das instituições públicas precursoras e de uma expansão do mercado privado”, analisa. Embora a prática tenha sido regulamentada por lei federal, a pesquisadora destaca que “é preciso criar uma estrutura de fiscalização em relação ao cumprimento da lei para que as instituições possam desenvolver boas práticas, proteger o paciente usuário do sistema”.
Ela frisa, contudo, a necessidade de internet e conectividade. “Não adianta ter isso tudo e ter uma estrutura precária de telecomunicações no território”, alerta. Essa é uma das dificuldades também apontadas pelo MS, “a situação da conectividade no país, que não é igual em todos os lugares”.
Outra questão diz respeito à interoperabilidade entre os diversos sistemas que fazem telessaúde no país. “A Seidigi trabalha para criar um padrão nacional de telessaúde, de modo que os diversos sistemas se interliguem e tenham interoperabilidade, ou seja, dialoguem entre si. O que vai permitir que os núcleos se apoiem através da Oferta Nacional de serviços”.
“A gente tá em uma colcha de retalhos de vários serviços que não se falam e que podem ter condutas erradas. Podem estar trabalhando fora da LGPD (
O terceiro desafio, segundo o MS, é aproximar a população da transformação digital, ou seja, “favorecer que os usuários tenham o que se chama hoje de literacia digital, que significa que as pessoas podem se apropriar das ferramentas tecnológicas mais modernas e utilizá-las a favor da sua própria saúde”.
A ampliação do uso da telessaúde tem capacidade de tornar o atendimento mais célere, com maior rapidez nos diagnósticos e evitar deslocamentos desnecessários. Caio Soares, vice-presidente da Saúde Digital Brasil (SDB), frisa que esse tipo de atendimento pode “não só aumentar o acesso, mas diminuir as barreiras sociais”. “Tem gente que demora seis meses, um ano para falar com um médico especialista. É um ganho de qualidade de vida enorme”, avalia.
“Tirar as pessoas das filas e colocar dentro da unidade de atendimento correto. Uma ferramenta de logística. Navegar o paciente pelo sistema e colocar no ponto que ele precisa de atendimento”, avalia vice-presidente da Saúde Digital Brasil (SDB).
“As ferramentas de apoio ao diagnóstico, como a inteligência artificial, vão ajudar bastante os profissionais na capacidade de realizar diagnósticos. Sofisticação e implementação de prontuários eletrônicos, mas também das ferramentas que possam ter todas informações de saúde do paciente são centralizadas em um ponto”, prospecta Caio Soares.
Pedro Paulo Bicalho, presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), frisa que a categoria regulamentou o teleatendimento ainda em 2018, “foi a primeira da saúde que regulamentou”.
“O que se percebeu na pandemia é que é possível fazer acolhimento, desenvolver vínculos, porque o trabalho do psicólogo se dá efetivamente através da escuta psicológica. É importante que o usuário e o psicólogo estejam em um local que o sigilo seja preservado”, explica.
Donizetti Dimer Giamberardino, médico que presidiu o Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), onde é conselheiro, “o médico só deve fazer se entender que tem capacidade para tal e nos limites dela, e o paciente tem que ter a opção de ser atendido presencialmente”.
Segundo ele, “todas as especialidades podem ser atendidas, mas com limites variados”. “Algumas especialidades permitem mais o uso, como a radiologia, que o laudo está muito desenvolvido, pode ser feito a distância, a dermatologia. Tudo que é visível fica mais fácil, tudo que precisa de apalpação, fica mais difícil”, exemplifica.
Donizetti destaca ainda que é preconizado que haja um consentimento prévio do paciente e o médico pode avaliar que os sinais e sintomas indicam que o paciente tem que procurar atendimento presencial.
"Temos que deixar claro é que é a mesma medicina, com ou sem tecnologia, tem a mesma responsabilidade ética, civil e criminal. Se tiver um insucesso decorrente, é a mesma responsabilidade. É preciso um ambiente com privacidade, preservação de dados, internet com boa qualidade", afirma o membro do Conselho de Medicina.
A modalidade da teleinterconsulta foi implantada em Fortaleza neste mês de julho. “Um clínico atende no posto de saúde, o paciente chega com queixa e o médica precisa que um especialista dê um suporte. Ele envia para um especialista e ele dá um retorno. Do ponto de vista prático, quando o usuário chega, vai ter um suporte de várias especialidade, evitar que vá para uma fila de forma desnecessária. Na grande maioria das vezes, a dúvida já resolve grande parte dos casos”, detalha Galeno Taumaturgo, secretário da Saúde de Fortaleza.
O prazo para retorno da demanda com o médico especialista é de 72 horas, “mas a tendência é que nos possamos abreviar o retorno”. De acordo com o secretário, todos os 118 posto de saúde da capital já têm acesso a esse sistema.
A segunda fase do serviço, a teleconsulta — consulta direta entre médico e paciente — está prevista para ser implementada em setembro. “A teleconsulta exige um tempo maior de adaptação, a estrutura técnica está montada, precisamos ter mais prudência”, afirma.
Luana Andrade, médica generalista que atua com telemedicina no posto de saúde Virgílio Távora, diz que a receptividade a teleconsultoria pela população tem sido positiva. “O paciente já vê um avanço porque sabe que vai ter o acesso sem enfrentar uma fila imensa. Tem sido muito importante na regulação ambulatorial. Redução de grande magnitude no tamanho da fila. Só vai para a fila quem realmente precisa”, relata.
Especial do OP+ sobre os avanços e alcances da telessaúde no Ceará e Brasil