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Armadilhas da linguagem no trato de crimes contra a infância e adolescência
Reportagem Seriada

Armadilhas da linguagem no trato de crimes contra a infância e adolescência

Como a forma de abordar a exploração sexual infantil evoluiu ao longo dos 95 anos de O POVO e o que isso diz sobre nossa sociedade
Episódio 1

Armadilhas da linguagem no trato de crimes contra a infância e adolescência

Como a forma de abordar a exploração sexual infantil evoluiu ao longo dos 95 anos de O POVO e o que isso diz sobre nossa sociedade
Episódio 1
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Uma cobertura jornalística que avança por décadas e cobre mais de meio século traz à tona mais que os meandros e detalhes do assunto abordado. Quando escolhe direcionar repórteres de diferentes perfis e estilos para a sucessiva apuração de uma pauta que se alastra temporal e geograficamente, um jornal manifesta em suas páginas, nas entrelinhas de suas reportagens, matérias e editoriais, um dado que diz muito sobre o contexto em que se constrói e circula aquela publicação.

É o caso da cobertura de quase sete décadas que O POVO vem realizando sobre a questão da exploração sexual infantil no Ceará. Iniciada em 1955 e sustentada até nossos dias, deu origem a conteúdos que, além de lançarem no centro do debate público a urgência de uma tragédia anunciada (e jamais superada), funcionam, enquanto objetos de uma análise posterior, matizada pelo distanciamento temporal, como peças na composição de uma paisagem social, política e econômica que é complexa em sua configuração simbólica.

Crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual devem receber proteção e acolhida por parte de órgãos de proteção e defesa da infância(Foto:  AdobeStock)
Foto: AdobeStock Crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual devem receber proteção e acolhida por parte de órgãos de proteção e defesa da infância

A primeira e mais óbvia marca semântica dessa questão é a expressão “prostituição infantil”, utilizada por veículos de imprensa, em nível global, até meados dos anos 2010. O problema com a expressão é evidente e opera em níveis profundos: associar à criança o substantivo “prostituta”, ou, com intenção generalizante, ligar à prostituição o adjetivo “infantil”, acaba aproximando da vítima a ideia de consentimento e escolha.

“O jornalista deve dominar a nomenclatura correta dos crimes relacionados às crianças vítimas”, afirmou em entrevista a O POVO Maria Carolina Trevisan, que é consultora da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) e Jornalista Amiga da Criança, titulação oferecida desde 1997 pela entidade para reconhecer profissionais da comunicação dedicados à promoção da causa.

Trevisan esclarece: “Não existe ‘prostituição infantil’, existe ‘exploração sexual infantil’. Não existe ‘a adolescente fez sexo’, ela foi violentada, estuprada, explorada. Em relação ao turismo, o termo correto é ‘turismo com fins de exploração sexual infantil’.

Em 2015, a ONG norte-americana Right4Girls lançou uma premiada campanha internacional cujo objetivo era afastar, na cobertura da imprensa, a ideia de culpabilidade de crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual. A entidade partia da afirmação de que não existiriam “crianças prostitutas”, mas “apenas vítimas e sobreviventes de estupro infantil”, para sugerir a substituição de expressões problemáticas em matérias e reportagens.

Peça de conscientização da ONG Rights4Girls com a frase "Não existe criança prostituta"(Foto: Rights4Girls)
Foto: Rights4Girls Peça de conscientização da ONG Rights4Girls com a frase "Não existe criança prostituta"

Segundo os organizadores da campanha, o debate em torno da questão lexical é importante porque falar de “prostituição infantil” acaba alimentando a noção equivocada de que a vítima se submeteu àquela situação por escolha própria, ignorando a profunda rede de necessidades, imposições e manipulações que a conduziu até aquele extremo.

“O termo ‘criança prostituta’ banaliza o abuso flagrante experienciado pelos membros mais vulneráveis de nossas comunidades. Pior ainda, transfere a culpa dos abusadores adultos para as vítimas infantis. Nós devemos a essas crianças traficadas e exploradas deixar claro que a vitimização e o abuso que sofrem não é nem diferente, nem mais tolerável, que outras formas de abuso infantil. Nós devemos a essas crianças responsabilizar aqueles que as compraram e violaram”, afirma a ONG, em inglês, no documento oficial do projeto.

No ano seguinte ao lançamento do projeto, em 2016, uma das principais agências de notícias do mundo, a Associated Press anunciou uma revisão de seu manual de redação e estilo para desencorajar o uso da expressão “criança prostituta” e similares em suas coberturas sobre situações de exploração sexual infantil.

Confira o site completo com as reportagens do O POVO sobre exploração sexual envolvendo crianças e adolescentes.

 

 Como as leis protegem a infância contra exploração sexual

 

 

Uma narrativa estetizante

Já no início dos anos 1990 — quando, conforme demonstrado na linha do tempo da cobertura de O POVO para a questão da exploração sexual infantil, houve uma intensificação do registro de meninas e meninos vitimados, principalmente no contexto de identificação de uma sofisticada rede de turismo sexual — aparecem no universo acadêmico local pesquisas e investigações que se debruçam sobre a questão.

Condições sociais, econômicas e educacionais precárias podem ser responsáveis pela exploração sexual de crianças e adolescentes (Foto: AdobeStocki)
Foto: AdobeStocki Condições sociais, econômicas e educacionais precárias podem ser responsáveis pela exploração sexual de crianças e adolescentes

Em uma delas, publicada em 1990 na Revista de Psicologia, as pesquisadoras Cleide dos Santos, Josiane Rodrigues, Mayra Queiroz e ngla Pinheiro (ligadas ao Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas Sobre a Criança) se dedicam, a partir de entrevistas com educadores que trabalham diretamente com as vítimas, à organização sistemática dos principais fatores envolvidos na “questão da prostituição infantil” em Fortaleza.

“O contexto miserável em que vivem essas crianças e suas famílias, o que lhes impõe a inserção precoce no mercado de trabalho como única forma de sobrevivência, desponta como principal motivo, no Ceará, para a menina de rua se tornar menina prostituída, ou prostituta”, afirmam as pesquisadoras no documento.

 

  Trajetória do tema nas páginas do O POVO (1976-1980)

 

Embora utilizem o termo “prostituta” para se referir às meninas exploradas — o que parecia ser regra na abordagem jornalística e acadêmica sobre o tema àquela época —, as autoras do artigo empregam, como primeira opção, o adjetivo “prostituída”, que retira das vítimas a sugestão de deliberação ou vontade.

Embora na academia já começasse a se operar, ainda que timidamente, uma reforma lexical no que se refere à questão da exploração sexual infantil, a imprensa continuava a reproduzir em suas páginas, de modo geral, vocabulários e pontos de vista narrativos que sinalizavam para a retenção de preconceitos e estereótipos sociais ainda vigentes — ao contrário da academia, historicamente encastelada em um espaço pouco acessível e pouco acessado, os jornais (quase) sempre pautaram e foram pautados (para o bem e para o mal) a partir de um diálogo mais imediato com a população.

Especialistas recomendam que veículos de mídia não façam entrevistas com crianças e adolescentes(Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Especialistas recomendam que veículos de mídia não façam entrevistas com crianças e adolescentes

Levando em conta essa diferença entre os dois espaços de produção intelectual, chama atenção, ao se debruçar sobre a fatia histórica de reportagens e matérias publicadas na época, a percepção de que parte considerável desse conteúdo é elaborado em torno de uma narrativa que mal consegue disfarçar sua intenção estetizante. Em alguns textos anteriores à década de 1990, talvez influenciados pela popularidade arrasadora de Jorge Amado no País, repórteres constroem cenários que em nada ficam devendo ao celebrado autor baiano, situando marinheiros, marginais, prostitutas e “capitães de areia” em um cenário de festa proibida.

“Havia certa romantização da violência”, avalia a jornalista e antropóloga Avelina Oliveira de Castro, que investigou a memória e os discursos sobre violência sexual contra crianças e adolescentes na imprensa paraense. “Falava-se de ‘encontro amoroso’ para se referir a crianças de seis anos que eram abusadas. O termo certo é ‘estupro’. Imprimia-se uma narrativa de romance para algo que não é romance, mas um crime”, completa.

Em outras ocasiões, os profissionais da imprensa costumavam fazer uso de expediente que, segundo a antropóloga, ainda hoje é utilizado como argumento em espaços políticos de extrema direita e em parte da polícia. “Insinuam que a menina já tinha experiência, o que é a mesma lógica de dizer que a vítima do estupro estava usando minissaia, decote. A culpa tem que estar com o verdadeiro culpado, não pode ser transferida ou dividida com a vítima”, explica a pesquisadora.

Em reportagem publicada por O POVO em dezembro de 1980 sobre os espaços de prostituição e exploração sexual na avenida Leste Oeste, as “jovens prostitutas” são citadas como “as donas da festa”. Embora chocante para o leitor atual, o texto oferece peças valiosas para a composição de um cenário específico na história social de nossa cidade: “Algumas ainda aparentam ter menor idade e essas são as mais disputadas do mercado. São simpáticas, frias e sabem farejar quem tem ou não dinheiro”.

Meninas são maioria entre os casos de exploração sexual de crianças e adolescentes no Ceará e no Brasil (Foto: AdolbeStock)
Foto: AdolbeStock Meninas são maioria entre os casos de exploração sexual de crianças e adolescentes no Ceará e no Brasil

Confirmando a afirmação de Avelina sobre a tendência jornalística de destacar uma suposta “experiência” da criança explorada — justificando sua presença naquele contexto por certa “malícia” própria —, a reportagem continua: “Sabem fingir amor e carinho e iludir o ego de cada ‘bem amado’ de qualquer noite”.

Em outra matéria, de 1992, com a fotografia de uma menina explorada sexualmente (com tarja sobre os olhos) exibe a seguinte legenda: “Com apenas 12 anos, a menor prostituída R. C. já tem mais experiência do que mulheres de 42”. Apesar de trazer em seu texto o adjetivo “prostituída”, que retira da vítima infantil a dimensão da vontade, e embora destaque, já no título, que as crianças são lançadas a esse universo “para não morrer de fome”, a sugestão de “experiência” e a comparação com uma mulher de 42 incomodam e ofendem o leitor contemporâneo.

Itamar Gonçalves, superintendente da Childhood Brasil, braço nacional da Childhood Foundation, dedicada a defender os direitos da infância, situa essa estratégia de culpabilização, no universo da comunicação, dentro de um contexto mais amplo e problemático de promoção de abordagens sensacionalistas. “A gente ainda vê casos que são puro sensacionalismo, o que pode ser atribuído à dinâmica comercial dos veículos”, afirma.

“A mídia trouxe com muita força várias situações de exploração ou abuso nas quais você termina a matéria praticamente concluindo que a criança foi a culpada, que ela assediou o adulto”, acrescenta Itamar — que advoga pela causa da proteção dos direitos da infância há mais de três décadas —, reforçando que é papel da imprensa revisar e superar procedimentos que, de alguma forma, reforcem a narrativa de culpabilização.

 

 

Meninas são duas vezes vítimas

Os especialistas ouvidos por O POVO são unânimes ao apontar que, ao lado da culpabilização, o principal problema na forma como questões ligadas à exploração sexual de crianças e adolescentes são abordadas na imprensa é a revitimização. Dito de outro modo, muitos dos procedimentos executados pelos profissionais de comunicação acabam reconduzindo as vítimas de crimes de exploração ao núcleo do trauma e do estresse que elas buscam superar.

“A nossa avaliação e diagnóstico é que a criança vai sendo revitimizada em todo o curso do seu atendimento”, argumenta Itamar Gonçalves, da Childhood Brasil, entidade que promove, em meio a uma série de ações de proteção da infância, um curso voltado para o desenvolvimento de estratégias protetoras e protegidas de escuta.

Discurso que criminalizava crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual dominava mídia (Foto: AdobeStock)
Foto: AdobeStock Discurso que criminalizava crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual dominava mídia

A palavra de ordem na elaboração desses novos fluxos de diálogo e escuta é “acolhimento”. “Não podemos obrigar crianças em situação de vulnerabilidade a reviver esses traumas, violências e violações. Precisamos evitar ao máximo que ela conte mais de uma vez o que houve com ela”, explica Maria Carolina Trevisan, consultora da Andi.

Segundo ela, que também é jornalista, é preferível que o profissional de comunicação abra mão da ideia de entrevistar crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual e opte por formas alternativas de construir suas reportagens. “Podemos acessar documentos da polícia, podemos conversar com a família, com conhecidos, com adultos envolvidos na vida daquela criança”, enumera.

A antropóloga Avelina Castro, que reforça a necessidade de se evitar condutas de revitimização, chama atenção para o caminho de abusos a que essas crianças e adolescentes são submetidos: “Eles são vitimados sexualmente e, quando denunciam, nas delegacias, sofrem outro abuso. Depois, mais um abuso nos procedimentos judiciários. Por fim, quando o caso vai parar na imprensa, muitas vezes nas páginas policiais, outro abuso”.

 

 Trajetória do tema nas páginas do O POVO nos anos 1990

 

Publicado em 2019 pelo Instituto Terre des Hommes (TDH), organização humanitária internacional que figura desde o início dos anos 1990 nas páginas de O POVO em ações de defesa de vítimas de exploração sexual no Ceará, o manual “Comunicação e direitos humanos: Infância e juventude em pauta” é voltado especificamente para a forma como esses temas sensíveis devem ser abordados por jornalistas e comunicadores.

Em relação às entrevistas com as vítimas, o documento faz uma série de recomendações práticas, como indicar que o repórter deve obter a permissão dos pais ou responsáveis, sugestão que se torna ainda mais necessária nos casos em que a criança será fotografada ou filmada. Além disso, a criança ou adolescente precisa compreender que estará conversando com um jornalista e deve ter a capacidade de assimilar o intuito da reportagem e a participação que terá no conteúdo a ser publicado.

Durante a conversa, o repórter deve tomar cuidado com as perguntas, evitando abordagens que possam constranger a vítima e não requerindo descrições minuciosas e desnecessárias da violência sexual. Silêncios devem ser respeitados e entendidos como resposta.

A maior parte dos manuais de imprensa e comunicação dedicados à cobertura do tema, porém, segue a tendência apontada por Carolina Trevisan de desencorajar a escuta, por parte dos jornalistas, de crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual.

 

Léxico amigável e socialmente responsável

 

 

O problema da imagem

“Jamais uma vítima em situação de exploração sexual infantil deve ser identificada, nem pelas imagens, nem pelos nomes”, afirma Carolina Trevisan, destacando que o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) veda a exposição e identificação de crianças e adolescentes em reportagens. Quem o fizer, estará incorrendo em crime tipificado em nossa legislação.

Até o início dos anos 2000, apesar do ECA, não era raro encontrar nas páginas de jornais e revistas e em reportagens de TV imagens borradas ou distorcidas de crianças e adolescentes que haviam sido vítimas de exploração sexual. Antes do Estatuto, a presença desses elementos visuais era ainda mais impactante: as meninas eram retratadas, quando muito, com tarjas pretas sobre os olhos.

A Childhood Brasil recomenda escuta e acolhida às vítimas de exploração sexual de crianças e adolescentes(Foto: AdobeStock)
Foto: AdobeStock A Childhood Brasil recomenda escuta e acolhida às vítimas de exploração sexual de crianças e adolescentes

“Aquela tarjinha preta é o ápice da criminalização”, alerta a antropóloga Avelina Castro, chamando atenção para a sugestão pejorativa associada ao recurso gráfico, ligado historicamente aos programas e páginas policiais. As entidades que se dedicam a lutar contra a exploração sexual infantil são unânimes ao desaconselhar o uso de qualquer tipo de imagem das crianças vitimadas.

“Os fotógrafos dizem que vão usar a contraluz, ou que vão borrar o rosto das meninas, e que elas não serão identificadas. Mas os familiares, os coleguinhas da escola, a professora, os vizinhos, vão reconhecer. Daqui a pouco, toda a vizinhança vai estar comentando, ela vai ser apontada na rua. É uma nova violência que essa vítima vai enfrentar”, argumenta Avelina, que durante oito anos foi repórter de policial em um jornal do Pará e observou íntima e diretamente o tratamento que a questão recebia nas páginas impressas.

 

Confira o trailer do filme "Enterrados vivos"

 

 

Formação constante reduz uso de termos incorretos 

Criado na esteira das políticas de proteção da infância e da adolescência incentivadas pelo surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no início dos anos 1990, o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) tem estado presente de forma constante nas matérias e reportagens publicadas por O POVO sobre a questão há quase três décadas. 

Mara Carneiro, coordenadora-geral da entidade, conversou com nossa reportagem sobre os desafios da cobertura da temática para profissionais de imprensa e indicou estratégias que ajudam a evitar uma abordagem sensacionalista da pauta.

Mara Carneiro, coordenadora-geral do Cedeca Ceará(Foto: Suzana Moreira / Cedeca Ceará)
Foto: Suzana Moreira / Cedeca Ceará Mara Carneiro, coordenadora-geral do Cedeca Ceará

O POVO+: A cobertura da imprensa cearense para os casos de exploração sexual infantil vem passando por diferentes fases em relação à forma de abordagem do tema e tratamento das vítimas. A senhora percebe uma evolução nesse sentido?

Mara Carneiro: Com certeza. Avaliando o último período, a gente percebe a diferença nas abordagens. No entanto, ainda não dá para dizer que é de forma hegemônica, que isso acontece em todas as emissoras, em todas as empresas de telecomunicação. Mas temos observado, sim, passos muito significativos, com a utilização dos termos corretos, não só na abordagem sobre os temas de violência, de exploração sexual, mas inclusive no entendimento da criança e do adolescente como um todo, como sujeitos de direito. Percebemos uma evolução na utilização do “menor”, que era o termo mais comum utilizado antes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Infelizmente, ainda hoje, embora de forma muito menos presente, é utilizado na comunicação. E no tema da violência sexual há muitas mudanças, de não usar mais o termo “prostituição infantil”, de ter mais cuidado com o uso da imagem, de ter cuidado da forma como se realiza a entrevista e abordagem a essas crianças que são vítimas de violência.

"Por muitos anos, passávamos pelas redações, chegamos a fazer um manual, fazíamos seminários e eventos com esses profissionais, sempre nessa ideia de promover uma imprensa cuidadosa e respeitosa aos direitos humanos." Mara Carneiro, coordenadora do Cedeca

OP+: A que a senhora atribui essa mudança?

Mara Carneiro: Acredito que as mudanças estavam muito mais vinculadas ao trabalho das organizações não-governamentais em defesa dos direitos de criança e adolescente, e ao trabalho dos próprios órgãos, mesmo os órgãos estatais, como a Defensoria Pública, o Ministério Público, os órgãos do sistema de justiça que trabalham com o tema, que têm se empenhado a usar os termo correto, bem como a fazer um trabalho, mesmo que indireto, de educação também da imprensa, de estar vigilante a termos incorretos, de fazer a reclamação, de fazer a nota pedindo para alterar o termo, de acompanhar as crianças e adolescentes que por acaso vão ser entrevistadas para matérias. Então acho que há todo um esforço das redes de proteção de modo geral para garantir que as abordagens jornalísticas no tema de violência contra a criança e adolescente utilizem os termos conceituais e jurídicos corretos, um cuidado para que a abordagem da imprensa não seja mais uma violência contra a vítima. É comum, muitas vezes, que a abordagem da imprensa seja mais um fator de revitimização. Então acho fundamental esse trabalho vigilante sobre a mídia e a comunicação.

Queria destacar também o próprio trabalho do Cedeca. Nós, por muitos anos, passávamos pelas redações, chegamos a fazer um manual, fazíamos seminários e eventos com esses profissionais, sempre nessa ideia de promover uma imprensa cuidadosa e respeitosa aos direitos humanos. Inclusive já entramos com ação judicial contra uma emissora de TV que fez uma abordagem do tema da violência sexual que vulnerabilizava crianças e adolescentes. Nós ganhamos, e esse inclusive é um caso histórico.

OP+: De que forma a imprensa ainda pode melhorar (e contribuir) em relação a esse tema?

Mara Carneiro: Acho que com uma formação constante. É dever de todo profissional estar atualizado com os temas, com os termos jurídicos corretos. Também acho que os grupos de imprensa, de modo geral, deveriam ter a preocupação de contribuir para que os profissionais da comunicação conseguissem, de verdade, fazer uma abordagem que não viole direitos e, mais do que isso, que promova direflouritos. Precisamos continuar avançando nesse sentido e a formação dos jornalistas deve ser algo constante.

Além disso, é importante olhar para as pautas a serem cobertas e escritas. A gente ainda precisa distanciar o jornalismo de cobrir um fato de violência focando na dor e no sensacionalismo. Entendo que do ponto de vista comercial, isso rende público e leitura. No entanto, é uma abordagem que, muitas vezes, viola direitos ao invés de promovê-los. Acho que optar por abordagens que esclareçam a população sobre seus direitos, sobre onde procurar ajuda, sobre quais são os lugares que atuam na defesa e promoção desses direitos, optar por fazer abordagens realmente formativas e promotoras de direitos, são formas de continuar avançando nesse tema que, infelizmente, ainda é uma chaga, uma ferida para as crianças e adolescentes brasileiras.

  • Textos Jáder Santana
  • Edição Regina Ribeiro, Fátima Sudário
  • Infográficos Wanderson Trindade, Jáder Santana
  • Identidade Vistual Jansen Lucas
  • Imagens Adobe Stock
  • Pesquisa Roberto Araújo
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História e Cidade: Exploração sexual da infância em Fortaleza (1955-2023)

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