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Cartografia do abandono: histórias e cenários da exploração sexual no Ceará
Reportagem Seriada

Cartografia do abandono: histórias e cenários da exploração sexual no Ceará

Espalhados por diferentes territórios de Fortaleza e do interior do Ceará, focos de exploração sexual de crianças e adolescentes desafiam autoridades e corporificam na geografia das cidades a disfunção de toda uma sociedade
Episódio 2

Cartografia do abandono: histórias e cenários da exploração sexual no Ceará

Espalhados por diferentes territórios de Fortaleza e do interior do Ceará, focos de exploração sexual de crianças e adolescentes desafiam autoridades e corporificam na geografia das cidades a disfunção de toda uma sociedade
Episódio 2
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A exploração sexual infantil sempre compartilhou espaço, em nosso mapa urbano, com outros problemas que vitimavam crianças e adolescentes. Essa correlação aparece no O POVO pelo menos desde o editorial de 9 de janeiro de 1969, no qual “a corrente da delinquência e da prostituição” é situada, em termos geográficos, nas dimensões que também abrigam os “menores abandonados”.

Pratica da exploração sexual na Capital é denunciada desde os anos de 1950(Foto: AdobeStock)
Foto: AdobeStock Pratica da exploração sexual na Capital é denunciada desde os anos de 1950

Uma reportagem de 1991 estima que “18 mil meninos e meninas vivem à deriva em Fortaleza”. Segundo outra matéria, elaborada a partir de dados do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (Nucepec), ligado à Universidade Federal do Ceará (UFC), cerca de 2 mil meninas eram exploradas sexualmente na capital. Quase 100% dessas crianças consumiam algum tipo de droga — álcool, cocaína, maconha ou cola de sapateiro.

Em todo o Brasil, de acordo com matéria de 1992 na qual o jornalista Gilberto Dimenstein foi entrevistado — ele acabava de lançar livro que investigava a questão do tráfico e da escravidão de meninas na região amazônica —, aproximadamente 500 mil meninas seriam submetidas a situações de exploração sexual.

Cena do filme "Iracema: Uma transa amazônica" (1982), de Jorge Bodanzky, clássico do cinema nacional que, acompanhando a relação entre um caminhoneiro e uma menina prostituída de 15 anos no coração da floresta, pretendia desmitificar o "milagre econômico" da ditadura militar(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Cena do filme "Iracema: Uma transa amazônica" (1982), de Jorge Bodanzky, clássico do cinema nacional que, acompanhando a relação entre um caminhoneiro e uma menina prostituída de 15 anos no coração da floresta, pretendia desmitificar o "milagre econômico" da ditadura militar

Nesse cenário, o abandono — ou, como aparece no texto de 1991, o “esquecimento da sociedade” — é tratado como condição determinante para que essas crianças caiam em redes de exploração espalhadas, na capital, por uma variedade de bairros, do Bom Jardim à Praia do Futuro, do Pirambu à Aldeota, da Serrinha à Beira-Mar.

Em entrevista de 2004 ao O POVO, o atual deputado estadual Renato Roseno (Psol), à época coordenador do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), afirmava: “A elite de Fortaleza é sórdida e infame. Como [a situação de exploração sexual] não atinge as suas filhas, ela faz que não vê. Ela [a situação] gera alguma piedade momentânea, mas isso não adianta nada”.

Lida hoje, a crítica de Roseno pode levar a crer que o problema se restringia a bairros da periferia, distantes do olhar das “elites”, mas as reportagens e matérias publicadas no O POVO mostram que também havia focos de exploração nas geografias das prosperidades. Uma cobertura de 1991 destacou a ação conjunta de órgãos oficiais para reprimir casas noturnas que promoviam a exploração sexual de crianças na Beira-Mar, Praia do Futuro e Aldeota. Em uma única noite, das 22h às 3h, cerca de 50 vítimas foram identificadas em estabelecimentos desses bairros.

 

Essa irradiação do problema para regiões mais privilegiadas acontece sobretudo a partir do fim dos anos 1980, quando o Ceará ganha força como destino internacional de turismo. Na esteira dessa nova identidade, começa a se estabelecer na capital uma complexa rede (ou “máfia”, como chama uma reportagem de 1991) de agenciamento e exploração sexual de crianças e adolescentes que envolveria “adultos, traficantes, gerentes de motéis, de hotéis, barraqueiros, doleiros e motoristas de táxis”.

Uma reportagem de 1993, ano que concentra o maior volume de textos publicados pelo jornal sobre a questão, sugere que “prostituição infantil pode fazer de Fortaleza uma nova Tailândia”. Em meados da década de 1990, o problema atinge níveis alarmantes. Em fevereiro de 1997, O POVO publica uma lista com motéis (10), hotéis (11), flats e edifícios (4), pousadas (10), casas de massagem (8) e agenciadores (16) denunciados pelas próprias vítimas.

A lista surpreende por sua extensão e pela presença de estabelecimentos que ocupavam — alguns continuam ocupando — lugar de destaque no imaginário da cidade enquanto espaço turístico. Alguns desses lugares continuam ativos, operando com outros nomes.

Matéria de 18 de fevereiro de 1997 traz lista de estabelecimentos e agenciadores denunciados por exploração sexual infantil em Fortaleza(Foto: Arquivo O POVO)
Foto: Arquivo O POVO Matéria de 18 de fevereiro de 1997 traz lista de estabelecimentos e agenciadores denunciados por exploração sexual infantil em Fortaleza

 

 

Mariposas do farol

Em março de 1976, o jornalista Carvalho Nogueira publica reportagem sobre as “mais de mil crianças” que orbitavam em torno do Farol do Mucuripe, a “velha zona de prostituição” da capital que, até aquela altura, não havia tido “assistência alguma visando a sua recuperação social”.

Os meninos e meninas, alguns deles entrevistados pelo jornalista, viviam “em comum com prostitutas e marginais de toda espécie, crescendo na absorção de vícios os mais tristes e degradantes”.

O Farol do Mucuripe se consolidava, na década de 1970, como espaço central da prostituição em Fortaleza. Seu apogeu resultava de um movimento curioso: quando a polícia realizava batidas contra estabelecimentos de outras regiões — em especial as “pensões alegres” do centro —, as mulheres “corriam” para lá em busca de refúgio. Eram, nas palavras de Nogueira, “mariposas”.

A região do Farol do Mucuripe concentrou, na década de 1970, os principais fluxos de prostituição e exploração sexual infantil em Fortaleza(Foto: Fco. Fontenele)
Foto: Fco. Fontenele A região do Farol do Mucuripe concentrou, na década de 1970, os principais fluxos de prostituição e exploração sexual infantil em Fortaleza

O jornalista aponta ainda outra rota de fuga que desembocava no Farol, esta percorrida especialmente por “mocinhas”. As fugitivas eram meninas que, exploradas sexualmente em cidades do interior do Estado, acabam viajando até Fortaleza e se somando aos grandes bandos que vagueavam em torno da lanterna no Mucuripe. Algumas delas mal chegavam aos onze anos.

Ainda distantes dos anos em que vem à tona e se estabelece a sofisticada rede de turismo sexual envolvendo crianças e adolescentes, os anos 1970 constroem sua estrutura de exploração, na região do farol, a partir dos marinheiros — tripulantes de embarcações que atracavam no Porto do Mucuripe — que percorriam o bairro em busca de diversão.

O poder público, segundo Nogueira, parecia indiferente às cenas de violência, abuso e exploração sexual. O Juizado de Menores, escreve o jornalista, “não impede, de modo algum, os ‘sururus’ e, muito frequentemente, os escândalos de mulheres em estado de embriaguez”. Uma das crianças entrevistadas por Nogueira, um menino de 12 anos com dentes amarelos de nicotina, conta “histórias amorosas” que viveu com as mulheres dali.

Nogueira dava voz, em sua reportagem, a um clamor de “pescadores, comerciantes e até mesmo de prostitutas”. Todos pedem para que “se dê um jeito de evitar a participação das crianças na ‘vida’ do Farol”. Um deles, motorista, resume a situação com um lamento: “Tenho a impressão de que está tudo errado”.

 

 

Entre pontos cardeais

Nos anos 1980, era na avenida Leste Oeste que se concentrava o mercado do sexo de Fortaleza. Segundo reportagem publicada por O POVO naquele início de década, as profissionais que trabalhavam nas noites — oriundas, em sua maioria, das comunidades do entorno — organizavam-se em um esquema de “assembleia geral” para decidir conjuntamente sobre questões ligadas ao preço e locais dos programas.

Em meio ao desfile de mulheres e travestis adultas e bem resolvidas, chama atenção do repórter a quantidade de meninas: “Algumas ainda aparentam ter menor idade e essas são as mais disputadas do mercado”. Publicado no dia 17 de dezembro de 1980, a poucos dias do Natal e do fim do ano, o texto dava voz às preocupações dessas crianças e adolescentes. Uma delas, mãe precoce, relata episódios de violência e agressões físicas.

Vista panorâmica do bairro Moura Brasil e do mar da Leste-Oeste. Na avenida de mesmo nome, a exploração sexual de crianças acontecia em bares e era incentivada pelos proprietários dos estabelecimentos(Foto: Sara Maia)
Foto: Sara Maia Vista panorâmica do bairro Moura Brasil e do mar da Leste-Oeste. Na avenida de mesmo nome, a exploração sexual de crianças acontecia em bares e era incentivada pelos proprietários dos estabelecimentos

A prostituição de mulheres adultas e a exploração sexual infantil eram incentivadas, ao longo de toda a avenida, pelos donos de bares, que ofereciam e elas proteção e caipirinhas: “Onde a concentração de mulheres é maior, é maior também o faturamento em bebidas e tiragostos”, relacionava o repórter.

Na Barra do Ceará, uma casa de massagens “funcionava bem em frente ao Pólo de Lazer das Goiabeiras”. A exploração, mal disfarçada, quase manifesta, se transformava em elemento corriqueiro na composição do tecido urbano. “A posição da sociedade era quase como se as meninas fossem culpadas da própria sorte. Era uma visão distorcida que vinha de uma hipocrisia social e institucional e de uma falsa moralidade”, avalia o ex-deputado estadual Mário Mamede Filho, que presidiu, na década de 1990, a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa.

 

 

O centro de tudo

É no Centro de Fortaleza que o repórter Fernando Ribeiro encontra F., uma menina de 13 anos que, naquele mês de julho de 1987, enquanto tomava cerveja em um “boteco sórdido, mal-cheiroso e de vitrola alta”, aceita lhe contar sua história. “Seviciada aos 10 anos por um soldado de Polícia, passa os dias, noites e madrugadas a perambular pelas ruas e praças do centro da cidade em busca de ‘clientes’, homens com os quais mantém relação sexual a fim de garantir os 100 cruzados necessários para sua pobre alimentação diária”, resume o jornalista.

 

O diálogo entre os dois se deu no Beco da Poeira, “corredor que liga as praças da Lagoinha e José de Alencar”. A história de F., violada todas as noites por “três ou quatro homens”, se confunde com a geografia sinuosa do Centro e abre espaço, na narrativa de Ribeiro, para outra denúncia: muitos dos estabelecimentos onde as meninas eram violentadas no bairro pertenciam a “policiais civis que exploram a prostituição para reforçar seus baixos salários”.

O ex-deputado estadual Mário Mamede Filho é outro que chama atenção para a relação de exploração que se estabelecia entre policiais e meninas do Centro. “Elas circulavam pelas praças José de Alencar, Coração de Jesus, da Estação, e pra ficar nesses espaços e serem protegidas, tinham que pagar um ‘contributo’, um ‘pedágio’, aos policiais. Então, de madrugada, elas eram levadas até as cabines de vigilância e lá eram estupradas”, narra Mamede, que em 1992 reuniu em relatório apresentado na Assembleia Legislativa informações detalhadas sobre as redes de exploração sexual infantil da cidade.

As cenas de exploração se desenrolavam nos mais diversos endereços, revelando uma expressão difícil de se ocultar. “De frente a uma igreja Pentecostal, atrás do colégio Tiradentes, ao lado de residências”, indica uma matéria de 1997, divulgando o endereço de uma casa de massagem que agenciava adolescentes.

Detalhe da praça Coração de Jesus, no centro da cidade, ponto de prostituição e exploração sexual infantil na década de 1980(Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Detalhe da praça Coração de Jesus, no centro da cidade, ponto de prostituição e exploração sexual infantil na década de 1980

F. fala mais. Conta que, às vezes, é obrigada a “fazer” porque alguns policiais “são ruins e botam o revólver na mão e dizem que se eu não ‘fizer’ me botam na cadeia”. Outra menina, C., de 15 anos, explorada desde os 11, afirma dividir seu tempo entre os “programas” que faz, durante o dia, na praça José de Alencar, e em uma casa de prostituição, no bairro Serrinha, durante a noite.

Suas companheiras de violência, outras meninas exploradas, circulam pelos cinemas adultos, como o Cine Paladium, localizado à rua Clarindo de Queiroz e palco de um flagrante de corrupção de menores, em agosto de 1988, que deu início a uma série de interdições em estabelecimentos semelhantes.

A delegada Marliete de Oliveira, da Delegacia de Menores, em entrevista ao autor da reportagem de 1987, resume a situação: “Já recebemos aqui meninas de até oito anos. Claro que elas não fazem ‘tudo’ o que se poderia imaginar. Mas de qualquer forma são usadas pelos homens nas ‘zonas’. Chegam aqui em estado de fazer dó, são apenas formas de gente, mais parecem esqueletos”.

É pelas ruas do Centro que aparecem também os meninos explorados sexualmente, mencionados pela primeira vez por O POVO em reportagem de março de 1991 sobre a expansão dos casos de Aids na cidade. Um dos entrevistados afirma: “Antes, a gente só tinha conhecimento de menina que fazia sexo por dinheiro. Hoje, os meninos também fazem a mesma coisa”.

O professor Hamilton Vale, que na década de 1990 integrou a equipe do Instituto Terre des Hommes (TDH), entidade fundamental para a consolidação de políticas públicas locais contra a exploração sexual infantil, conta em entrevista para este especial que “a questão dos meninos chamava mais atenção” e que, ao contrário da violência ostensiva que vitimava as meninas, “acontecia veladamente”. “Geralmente à noite, [os exploradores] pegavam os meninos, que durante o dia eram vendedores de jornais, e os levavam para os clubes”, explica.

 

 

Beira-Mar dos turistas

No dia 21 de agosto de 1993, O POVO publica matéria com o título “Prostituição infantil faz da Beira-Mar novo Farol”. O texto argumentava que o mercado de sexo e exploração sexual, antes localizado sobretudo na região do Farol do Mucuripe, havia sido transferido para “o trecho do Náutico ao Hotel Esplanada”, espaço mais cobiçado da cidade.

Volta da Jurema, na Beira-Mar, em outubro de 1991(Foto: João Carlos Moura)
Foto: João Carlos Moura Volta da Jurema, na Beira-Mar, em outubro de 1991

A partir de meados da década de 1980, na esteira da consolidação de Fortaleza como destino internacional, a Beira-Mar, cartão-postal da capital, começa a se definir como ponto central de uma sofisticada rede de turismo sexual que se alastra, embora de forma menos vistosa, até os dias de hoje. O título de uma reportagem de janeiro de 1992 é enfático ao promover a associação: “Prostituição infantil convive com turistas”.

O funcionamento dessa rede torna-se evidente inclusive para veículos da imprensa internacional. Em meados da década de 1990, o jornal La Repubblica, um dos mais influentes da Itália, escreve: “O Rio de Janeiro é muito violento para quem está à procura de sexo fácil. Assim como os alemães preferem Recife, os italianos elegeram Fortaleza como cidade ideal”. À época, folders e peças publicitárias exibiam mulheres seminuas para divulgar, em países da Europa, as graças do turismo cearense. Em 1992, 75% dos turistas estrangeiros que visitavam o Ceará eram homens.

Crescimento do turismo internacional no Ceará aumentou a exploração sexual de crianças e adolescentes a partir dos anos de 1980(Foto: AdobeStock)
Foto: AdobeStock Crescimento do turismo internacional no Ceará aumentou a exploração sexual de crianças e adolescentes a partir dos anos de 1980

Segundo reportagem de 1987, a exploração sexual infantil na Beira-Mar ocorria de forma “mais disfarçada e com certo requinte”, o que se opunha à ostensividade que marcava a violência praticada nas boates e praças do Centro. “O ‘trottoir’ nas calçadas é substituído por circuladas em volta das mesas onde os clientes bebem e conversam”, narra o jornalista Fernando Ribeiro em texto daquele ano.

Em outra reportagem, um jornalista da casa aborda um taxista na Beira-Mar, o primeiro que lhe aparece em uma noite de quarta-feira, e este lhe diz que “por Cr$ 10 mil cruzeiros conseguiria qualquer uma das meninas”. O agenciador afirma fazer aquele tipo de negociação há pelo menos nove anos. Sua fala, colocada ao lado dos depoimentos das vítimas do crime, ajuda a desenhar os complexos contornos da rede de exploração.

R., 12 anos, estuprada aos 6, filha de pai assassinado, veio de Juazeiro do Norte e morava no calçadão, nas proximidades da antiga sede da AABB. Nunca teve uma boneca. Ao O POVO, contou: “Todo dia, toda noite, toda hora eu vou pra cama com os caras. Tenho horror a isso, mas se não fizer, morro”.

D., aos 14, era mãe de um bebê e agenciada por um funcionário do Hotel Esplanada. Era abusada entre cinco e seis vezes por noite e gastava as moedas que recebia jogando em um fliperama da região. Dividia espaço com G., 12 anos, que havia perdido a virgindade com um orientador da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor.

Windsurfista na praia do Mucuripe, em agosto de 1999(Foto: Marcos Studart)
Foto: Marcos Studart Windsurfista na praia do Mucuripe, em agosto de 1999

S., de 13 anos, esperava pelos clientes na calçada do Náutico. Já havia sido surrada e presa inúmeras vezes. À jornalista de O POVO, confessou: “Não vale mais a pena estudar. Não espero mais nada do futuro. Abandonei tudo. Eu já pensei muitas coisas. Mas se for aquilo que estou pensando, vai ser assim até o fim da minha vida”.

A exploração ocorria em praticamente toda a extensão da orla marítima, da Barra do Ceará à Praia do Futuro. Em janeiro de 1992, O POVO noticiou a descoberta de uma boate na avenida Zezé Diogo, no Serviluz, cuja dona agenciava meninas trazidas do município de Boa Viagem, distante 217 km da capital, “sob a promessa de trabalho como empregadas domésticas”. As próprias crianças denunciaram a situação.

Um relatório da Polícia Militar a que O POVO teve acesso em maio de 1992 ajudava a entender o perfil das meninas que circulavam pela Beira-Mar. "Essas meninas, antes de se prostituírem, passam por três fases: a mendicância, geralmente influenciadas pelas mães; pequenos furtos e a iniciação sexual com os 'bombonzeiros'" . À época da matéria, o instituto Terre des Hommes (TDH) havia estimado que cerca de 400 crianças em situação de rua viviam na região.

 

O educador social Hamilton Vale, que integrou a equipe do TDH na década de 1990, relata uma de suas experiências de observação: “Uma vez, interessado em entender a dinâmica da madrugada, me sentei em uma barraca que ficava em frente ao atual McDonald 's da Beira-Mar, que era o grande ponto de concentração de meninas e estrangeiros. Fiquei observando o movimento. Os turistas chegavam, davam bebida e comida para as meninas, compravam flores das vendedoras que passavam, e depois saiam para passear de buggy”.

Todos os esforços de sedução por parte dos turistas acabavam conduzindo as crianças, na avaliação de Hamilton, a um estado de encanto que dissimulava o quadro geral de exploração. “Era difícil nosso trabalho de resgate, porque, naquele momento, aquela menina supria uma carência imediata. A vítima, que tem sonhos e desejos, ficava fascinada por essa afetividade”, explica.

Segundo Hamilton, a sociedade “fazia vista grossa, tratava como se fosse natural” quando se deparava com um turista levando uma menina pela mão na Beira-Mar ou dividindo com ela uma mesa de bar . “Era uma rede, havia toda uma linha que ia do taxista ao barraqueiro, passando pelo pessoal do hotel. Dentro de uma sociedade machista, aquilo era feito abertamente, era visto como coisa comum”, completa.

Vista aérea da Beira-Mar de Fortaleza, onde continua a existir, até os dias de hoje, uma rede subterrânea de turismo sexual(Foto: Fco. Fontenele)
Foto: Fco. Fontenele Vista aérea da Beira-Mar de Fortaleza, onde continua a existir, até os dias de hoje, uma rede subterrânea de turismo sexual

 

 

Pelo interior do Estado

Em manchete do dia 10 de julho de 1987 — "Ceará na rota da prostituição infantil" —, O POVO ampliava para além dos limites da capital sua cobertura da rede de exploração sexual de crianças e adolescentes. Baseado em relatório divulgado pela Federação Internacional de Direitos Humanos (FIDH), o jornal noticiava que o município de Crato, na região do Cariri, também albergava casas nas quais meninas de 12 anos, “às vezes menos”, eram exploradas.

Dez anos depois, em 1997, uma fonte comentava com O POVO que era falsa a ideia de “centralização da prostituição infantil na orla marítima de Fortaleza”, e que muitas crianças também eram exploradas “em postos de caminhoneiros e nos forrós da periferia”.

Em dezembro de 1999, O POVO publica matéria com o título “Prostituição preocupa Cariri”. O texto dava conta de que autoridades dos municípios de Brejo Santo, Penaforte e Campos Sales estavam preocupadas com o aumento do registro de casos de exploração sexual infantil em suas cidades. As meninas reuniam-se, em sua maioria, em postos fiscais e bares nas margens de estradas.

Nos municípios do litoral, focos de exploração também começaram a ser revelados. Em maio de 2003, o Ministério Público começou a investigar a denúncia de que bugueiros da Prainha, em Aquiraz, estariam aliciando adolescentes para prostituição.

Na região metropolitana, em um bar às margens da BR-116, em Itaitinga, um bar foi interditado em dezembro de 2003. A dona, uma mulher de 43 anos, agenciava e explorava sexualmente seis adolescentes, com idade entre 12 e 16 anos. Só naquele ano, a Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (Dceca) havia recebido 844 denúncias de “prostituição infantil”.

Em outubro de 2004, a polícia fechou três bares na periferia do município de Reriutaba, a 295 quilômetros da capital. Três comerciantes foram presos acusados de explorar sexualmente adolescentes.

 

Pontos de exploração sexual infanto-juvenil identificados em municípios do Ceará durante apuração do projeto “Documento BR”, de 2006

Em 29 de novembro de 2005, foi a vez de Ipu, município a 346 quilômetros de Fortaleza. O caso foi manchete do O POVO: “Polícia investiga rede de prostituição infantil”. O crime chamava atenção por sua dimensão: onze pessoas, incluindo políticos, comerciantes e um funcionário aposentado do Ministério Público, se beneficiavam da rede. Pelo menos três crianças, de 9, 12 e 14 anos, confessaram terem sido exploradas sexualmente pelos acusados.

As redes de exploração, muitas vezes, se ampliavam em movimentos de tráfico interestadual. Em novembro de 2006, O POVO publicou reportagem sobre adolescentes com idade a partir dos 12 anos que era traficadas de Fortaleza, geralmente do bairro Monte Castelo, para uma casa de prostituição na cidade de Picos, no Piauí. As vítimas relataram à Delegacia da Criança e Adolescente (DCA) que eram obrigadas a fazer até seis programas por dia e que tinham que cumprir uma cota de consumo de bebida dos clientes do bar.

Capa do caderno especial "Documento BR", de 2006(Foto: Arquivo O POVO)
Foto: Arquivo O POVO Capa do caderno especial "Documento BR", de 2006

A maior investida de O POVO no sentido de destrinchar as redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no Ceará foi o premiado projeto especial “Documento BR”, publicado em dezembro de 2006. Uma equipe de cinco jornalistas viajou por cerca de 4 mil quilômetros, por rodovias federais, à procura de focos de exploração, cruzando 26 municípios. Foram identificados quase 50 locais.

Em Jaguaribe, uma mãe havia “vendido” sua filha adolescente por R$ 100 a um caminhoneiro que estava de passagem. Em Tabuleiro do Norte, os casos de exploração aumentavam vertiginosamente durante a festa da padroeira.

Em Sobral, meninas se reuniam em torno de um posto de combustível e eram abusadas entre as fileiras formadas pelos caminhões estacionados. Em Penaforte, na região de um posto de fiscalização da Sefaz, circulavam meninas e prostitutas — cerca de 100, pela contagem do repórter — que eram abordadas à luz do dia. Em Tauá, crianças e adolescentes eram exploradas por pessoas ligadas a um templo evangélico.

Em 2007, outra manchete: “20 meninas são libertadas”. Na primeira semana daquele mês de abril, em um sítio próximo ao município de Tianguá, 20 meninas, com idade entre 12 e 14 anos, foram encontradas no local, que ficava às margens da CE-187, após denúncia anônima.

Um dos destinos turísticos mais procurados do Estado, Jericoacoara também apareceu nas páginas de O POVO após denúncia de exploração sexual infantil(Foto: Fábio Lima)
Foto: Fábio Lima Um dos destinos turísticos mais procurados do Estado, Jericoacoara também apareceu nas páginas de O POVO após denúncia de exploração sexual infantil

Em agosto do mesmo ano, em Jericoacoara, um comerciante de 40 anos foi preso em flagrante. Pela quantia de R$ 2 para carícias e R$ 10 para ter relações sexuais, ele aliciava crianças e adolescentes do município de Jijocaa. 16 vítimas confirmaram o crime.

Em setembro de 2010 foi a vez de Beberibe aparecer nas páginas do O POVO em matéria sobre exploração sexual infantil. Numa ação conjunta de policiais civis e militares, foram presas oito pessoas acusadas do crime, que era cometido em uma casa na zona rural do município.

No ano em que o Brasil sediou a Copa do Mundo, em 2012, O POVO publicou, como parte do especial Infância Sem Copa, a reportagem “Os meninos do pornoturismo”, que apontava que “rapazes também caem na teia do turismo sexual em Fortaleza”. Uma das vítimas ouvidas pelo repórter Mauri Konig, um garoto de 13 anos, afirmou que, certo dia, percebeu que só havia “dois caminhos para escapar da miséria”: o tráfico ou a noite. Escolheu o segundo.

 

 

"Fortaleza foi pensada, especulada e disputada a partir de imaginações e hierarquias sexuais"


Em Fortaleza, a prostituição da primeira metade do século XX pode ser observada a partir de uma configuração social hierarquizante de corpos e sexos. É esse o ponto de partida das reflexões do historiador Humberto Pinheiro, que desenvolve pesquisa na área de história da sexualidade e que conversou com O POVO sobre a evolução (ou, antes, involução) das relações entre a sociedade fortalezense e as mulheres que, por diferentes motivos, foram rotuladas como meretrizes. 

Humberto Pinheiro, historiador(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Humberto Pinheiro, historiador

Na entrevista a seguir, Pinheiro revisita a formação das "zonas de meretrício" na Capital, registra a hipocrisia da sociedade diante do sexo e problematiza o papel histórico da imprensa na manutenção de "gestões patriarcais". 

O POVO+: Sobre quais aspectos da prostituição em Fortaleza sua pesquisa se debruça?

Humberto Pinheiro: Poderia responder que pesquiso a história do meretrício em Fortaleza, entre o final do século XIX e primeira parte do XX. Mas essa seria uma resposta mais para preencher um registro técnico de um banco de dados que ainda reproduziria os termos e as perspectivas do que quero questionar com meu trabalho. Por isso, prefiro dizer que estudo como uma configuração urbana, Fortaleza há cem anos, foi pensada, especulada e disputada a partir de imaginações e hierarquias sexuais, como as que tentavam definir e separar os corpos e espaços da prostituição da cidade para inventar os “bons costumes” das famílias locais.

OP+: Quais eram os focos históricos da prostituição na cidade?

Humberto Pinheiro: Talvez os principais e iniciais “focos históricos” da prostituição em Fortaleza tenham sido o racismo, o ódio de classe e a misoginia das gestões patriarcais da cidade desde a segunda metade do século XIX, quando um chefe de polícia comandou um censo populacional e arbitrariamente identificou quase quatrocentas mulheres que então residiam na capital do Ceará como “meretrizes”, passando por prefeitos, policiais, delegados, empresários, que, ao longo de toda a primeira parte do século XX (eu poderia dizer do século XXI), queriam definir onde estava e onde deveria estar a prostituição fortalezense, como um álibi moral para controlar social e economicamente a ocupação e o fluxo urbanos. Entre os anos 1920 e 1940, a paisagem (e a materialidade) desse “problema” ficaria localizado nas ruas mais centrais de Fortaleza, entre a praça do Ferreira, a rua Barão do Rio Branco e a Sé, depois, entre as décadas de 1950 e 60, no Arraial Moura Brasil, onde foi projetado uma espécie do que chamo de bordel estatal, forjado pela cafetinagem da administração pública do município e do estado, além da colaboração da iniciativa privada. O Mucuripe e o Farol vêm na sequência, nos anos 1960 e 1970.

OP+: Houve uma evolução na forma como a sociedade vem enxergando a prostituta e a prostituição ao longo da história?

Humberto Pinheiro: É importante não pensar a prostituição como algo sempre igual a si mesmo, como um universo fechado em si mesmo. Embora a palavra seja a mesma há muitos séculos, ela já significou muitas coisas diferentes. Portanto, ela tem uma história. Esse cuidado é fundamental para não definirmos a prostituição nos mesmos termos da teologia cristã, da psicopatologia sexual ou da antropologia criminal, estas últimas, desde a segunda metade do século XIX. Ou seja, não devemos essencializar essa prática, como se fosse “sempre” a expressão de uma alma pecadora, uma patologia inata de algumas mulheres, que seriam incapazes de se tornar esposas e mães, como definiu o psiquiatra e antropólogo italiano Cesare Lombroso, há 150 anos, ao concluir que uma “prostituta” seria a versão feminina de uma natureza delinquente, exatamente por ser “incapaz” dos amores conjugal e materno. Aliás, nesse contexto temporal, uma prostituta poderia ser uma mulher que morasse sozinha, ou com um homem, mas não fosse casada com ele, ou fosse uma mãe solo que residia apenas com seus filhos. Foi esse conceito de meretriz, a propósito, que fez a cidade de Fortaleza, num censo de 1887, informar que havia na cidade quase quatrocentas “meretrizes”.

OP+: Por que é importante levar em conta esse processo histórico na análise da consolidação dos discursos ligados ao tema?

Humberto Pinheiro: Porque isso nos permite perceber que a sua definição e classificação pela teologia, pela medicina, pelo direito, pela polícia, pela imprensa, pelo jornal, pela prefeitura de uma cidade foi, muitas vezes, uma estratégia e uma forma de controlar e colonizar os corpos e os desejos das mulheres, principalmente de mulheres pobres e racializadas, fazendo das suas existências objetos de exploração material e ideológica e de rentabilidade financeira.

Por meio do que foi insinuado, definido e classificado historicamente como prostituição, houve muitas histórias de violências contra mulheres, cujas vidas eram desvalorizadas sob esse estigma

OP+: Então é uma história que sempre esteve acompanhada por incontáveis violências.

Humberto Pinheiro: Por meio do que foi insinuado, definido e classificado historicamente como prostituição, houve muitas histórias de violências contra mulheres, cujas vidas eram desvalorizadas sob esse estigma, cujos corpos poderiam ser agredidos, presos, segregados, estuprados, sem qualquer responsabilização dos seus agressores. Aliás, durante muito tempo, eles tiveram amparo jurídico para esses atos.

OP+: Sua investigação também toca a cobertura da imprensa local para o tema da prostituição ao longo da primeira metade do século passado. Imagino que seja impossível dissociar o que foi publicado nas páginas dos jornais dos preconceitos sobre os quais se estruturava a moral da sociedade.

Humberto Pinheiro: Os jornais que circulavam na capital cearense nesse período, como O POVO, o Correio do Ceará, O Nordeste, o Gazeta de Notícias, estiveram diretamente envolvidos na produção da “realidade” do meretrício como um problema de ordem e moralidade pública de Fortaleza, cobrando das autoridades policiais a resolução desse problema, inclusive com a remoção dessas mulheres/meretrizes para um local afastado das áreas centrais da cidade. Portanto, ao longo da primeira parte do século XX, as identificações do meretrício em Fortaleza e as propostas e ações de combates e remoções contra a sua presença nas ruas da cidade emergiram do que chamo de um consórcio estatal-empresarial-moral-científico-jornalístico, que usava a prostituição para movimentar os seus diferentes negócios, seja a distinção moral, o poder policial, a especulação imobiliária ou a venda de jornais.

OP+: E como as mulheres resistiram, historicamente, a essas ações de repressão executadas em tantas frentes?

Humberto Pinheiro: No meio dessas realidades de repressões, violências, marginalizações e confinamentos, as mulheres que sofriam os estigmas da prostituição e suas consequências sociais e físicas tentavam resistir e inventar “fugas” desse cotidiano. Muito provavelmente, algumas dessas mulheres mobilizavam outras identidades para a sua vida, reconhecendo-se em outras atividades ou práticas que eventualmente exerciam. Dentro de bordeis ou casas de pensão, como eram também chamados os lugares do meretrício, muitas considerariam que aquela situação seria provisória ou que estavam ali, mas o local não dizia quem elas eram, ou não totalizavam as várias experiências que poderiam acontecer lá, como amizades, parcerias etc.

OP+: De que forma elaborar uma reflexão histórico-política sobre a prostituição ajuda a nos entender como indivíduos mutuamente implicados em uma construção coletiva da moral e dos costumes?

Humberto Pinheiro: Pra mim, uma forma de inverter e potencializar os sentidos da prostituição seria fazer dela um ponto de vista crítico sobre as relações afetivas e sociais que aprendemos a chamar de “normais”. Concordo com a escritora Amara Moira quando ela escreve que “a prostituição fala da sociedade”. A prostituição, por exemplo, nos ensinaria do nosso cinismo sobre as nossas relações entre amor, corpo, trabalho e dinheiro. Aliás, como a escritora Virginie Despentes disse, “ainda não consigo fazer a distinção clara entre a prostituição e o trabalho legal assalariado, entre a prostituição e a sedução feminina, entre o sexo pago e o sexo interessado”. Félix Guattari já escreveu que a relação entre a prostituta e seu cliente pode ser uma oportunidade para pensarmos outras relações que definimos como necessariamente técnicas e profissionais, como se não estivessem também sob uma lógica de cafetinagem, como entre o analista e seu paciente. Eu quero incluir também: entre o historiador e suas pesquisas.

  • Textos Jáder Santana
  • Edição Regina Ribeiro, Fátima Sudário
  • Infográficos Wanderson Trindade, Jáder Santana
  • Identidade Vistual Jansen Lucas
  • Imagens Adobe Stock
  • Pesquisa Roberto Araújo
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História e Cidade: Exploração sexual da infância em Fortaleza (1955-2023)

Reportagem seriada que resgata a construção do discurso jornalístico sobre o tema da exploração sexual de crianças e adolescentes a partir do acervo do O POVO, além de atualizara abordagem do tema com dados atualizados